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“O Henrique me matou”, escreveu a mulher antes de ser assassinada pelo marido

Saiu no site METRÓPOLES

 

Veja publicação original:   “O Henrique me matou”, escreveu a mulher antes de ser assassinada pelo marido

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Depois do feminicídio, o corpo da vítima foi enrolado em lençóis e jogado em um bueiro, como se fosse lixo

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Maria tinha um sonho: passar o Natal deste ano com a mãe, em Marcos Parente, no Piauí, onde nasceu. “Não morro antes de voltar pra casa”, prometia a uma das conhecidas na Praça Vila Dimas, em Taguatinga Sul. Lá, como ambulante, vendia capas de celular e potes de plástico.

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Em maio, uma facada no peito enterrou o sonho e a promessa de voltar à terra natal. No armário do barraco onde vivia, deixou gravado em vermelho – de esmalte ou tinta: “Culpado. O Henrique me matou. Eu te odeio”.

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Henrique era o companheiro com quem dividia a vida, parece, havia cinco anos. Foi ele o autor do golpe certeiro no lado direito do peito. À polícia, o suspeito relatou que Maria, caída no chão e sangrando, foi deixada agonizando. Sem olhar para trás, conta que fechou a porta do barraco e foi beber na Praça Vila Dimas, onde também trabalhava como guardador de carros e “faz-tudo” para alguns comerciantes locais.

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CASAL

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Voltou de madrugada, enrolou o corpo de Maria em lençóis e ajeitou no carrinho de supermercado usado pelo casal no ir e vir com a mercadoria de ganhar a vida. Num terreno acidentado de terra batida, com muita lama, empurrou o carrinho até o bueiro mais próximo e atirou ali, como se fosse lixo, a companheira morta. Os vizinhos duvidam que tenha feito isso sozinho. A polícia não.

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Passe o dedo ou o mouse sobre as bolinhas vermelhas:

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Nos dias seguintes, aos que perguntavam sobre Maria, dizia que ela havia ido para a casa dos parentes, no Riacho Fundo. Vez por outra, resmungava: “Rapaz, onde foi parar essa mulher?”.

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A vida seguiu. Ninguém foi atrás de Maria nem estranhou que Henrique tenha passado a dormir numa poltrona velha posta na porta da casa.

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Culpado

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O assassinato aconteceu no começo da noite de quinta-feira, 9 de maio, pouco depois das 19h30. Na segunda-feira seguinte, moradores da vizinhança da Chácara Santa Luzia reclamaram à Caesb que faltava água na região havia dois dias. O corpo de Maria de Jesus, encalhado numa manilha, bloqueava o fluxo até as bicas.

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Vizinhos reconheceram a vítima e a polícia foi ao barraco do casal. Sangue seco tingia o chão da casa. Na parede do armário, a denúncia, escrita em letras mal desenhadas, apontava o assassino: “Culpado. Henrique me matou”.

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Não se sabe se Maria teve forças para escrever enquanto agonizava, ou, como numa premonição, teria escrito antes – após alguma das muitas brigas. O assassino confessou. Não se periciou o escrito.

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Até ali, Maria vivia na mesma sombra que abriga milhares de mulheres invisíveis da população mais pobre do Brasil. A existência dela era pouco percebida. Suas dores permaneciam retidas nas DPs onde registrou desditas.

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JP Rodrigues/Metrópoles
Maria de Jesus era uma mulher triste, de poucas palavras. Apenas após a morte, ganhou visibilidade
Maria de Jesus era uma mulher triste, de poucas palavras. Apenas após a morte, ganhou visibilidade

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Henrique também colecionava boletins de ocorrências. Tinha acusações de violência doméstica e por porte de drogas – algumas delas, inclusive, eram anteriores ao relacionamento com Maria. Cometidas em outras cidades do DF, ficaram invisíveis até que ele fosse além – matasse.

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Três dias depois do crime, Henrique tentava vender uns pertences – duas bicicletas e um botijão de gás. E, contaram os vizinhos, rodava com a bicicleta rosa da vítima. Foi ao quiosque do açaí, próximo da Praça Vila Dimas, abraçou forte o dono, disse que ia embora. Indagado sobre o motivo da partida, resumiu: “Aconteceu umas paradas aí…”.

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Quem o viu naquele dia, relata que os olhos do assassino estavam inchados. Uns acham que de lágrimas, outros acreditam que de insônia e muita bebida.

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Ciúme

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Henrique foi preso. Confessou o crime e alegou ciúme. Disse que, naquela tarde, havia chegado em casa e encontrado Maria na cama e um homem no banheiro. E aí a briga começou. Não soube dizer quem ele era nem como teria saído do local, pois o barraco tinha uma única porta. No horário do assassinato, ninguém viu outra pessoa ali, a não ser Henrique. “Invenção dele. Ela não tinha amantes. Não era dessas”, reage uma das vizinhas.

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Ciúme é a causa alegada na maioria dos casos de feminicídio. Relatório da Secretaria de Segurança Pública do DF, de 2018, aponta que, nos últimos três anos, 82% desses assassinatos tiveram o ciúme como principal motivo para o crime. “Esse sentimento de posse transforma a mulher em coisa, propriedade sobre a qual o homem tem todo o direito”, avalia Fernanda Jota, mestre em Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), psicóloga da Secretaria de Saúde (SES) do DF.

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Muitos contam – e está no processo – que dias antes, depois de mais uma das brigas do casal, Henrique prometeu: “Ela (Maria) vai ser o próximo feminicídio do DF”. E foi. Apareceu como o 13° caso registrado na estatística de violência contra as mulheres deste ano, no Distrito Federal. Hoje, são 14 crimes.

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CarrinhoCarrinho

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Maria de Jesus do Nascimento Lima, de 29 anos, foi mais uma personagem da conhecida história de violência continuada que acaba em morte. Agredida, torturada, humilhada e jurada de morte, seguia vivendo o cotidiano de abuso com seu agressor. Havia denunciado o marido três vezes – uma em 2018 e outras duas em março de 2019. Esteve em uma Casa Abrigo para mulheres em situação de risco. Mas, assim como muitas, saiu e voltou para o marido.

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Por que tantas vítimas saem e voltam? “Encerrar o ciclo da violência é muito difícil. Na maioria dos casos, há uma repetição da situação na família”, diz Fernanda Jota, que atua no Núcleo Ampliado de Saúde de Família e Atuação Básica (NASF), da Unidade de Saúde Básica (UBS) 1, da Asa Sul. “Não podemos culpabilizar as mulheres nem mesmo as que retornam ao agressor”, ensina.

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Tortura

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Quem era Maria, consagrada a Jesus no nome, mas tão desprotegida na vida? Não foi encontrado nenhum registro da sua vida anterior ao Henrique. No processo, há apenas o indicado no RG — filiação, data e local de nascimento. O corpo foi retirado do IML, para ser enterrado, por um primo, Luís Valério.

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A história contada no processo é baseada nas denúncias contra o companheiro registradas em delegacias – uma no Recanto das Emas, com testemunhas, e duas em Taguatinga, feita um mês antes da morte. São ocorrências de abusos e tortura. Maria relatou ameaça com faca e xingamentos constantes. Dizia que Henrique a impedia de ter acesso ao próprio dinheiro, além de ter sido vítima de queimaduras, enforcamento, pauladas, tapas, chutes, empurrões, socos e puxões de cabelo.

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Descreveu, ainda, que “uma vez” foi estuprada. E, em outra, foi castigada por estar menstruada. Indignado, Henrique a obrigou a comer pimenta e, em seguida, a trancou no banheiro, onde não havia pia. No depoimento prestado à polícia, revelou ter bebido água do vaso sanitário para aliviar a ardência.

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Os donos do barraco onde o casal vivia — também vizinhos — ouviam as brigas, as ofensas trocadas, os gritos e o choro de Maria. O homem diz que não interferia. “É complicado se meter nessas coisas. No dia seguinte, eles ficam de bem e sobra pra gente.”

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A mulher conta que interferia. Batia na parede. Uma vez, o obrigou a abrir a porta e acabar com a briga. “No dia seguinte, ela me estranhou. Disse que era assunto dela.”

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Regularmente, depois dos desentendimentos, viam Henrique sair e deixar Maria trancada em casa. “Era comum. Sempre acontecia. Era mais frequente nos fins de semana, quando os dois bebiam. No dia seguinte, estavam de boa.”

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“A violência contra a mulher em ambiente doméstico tem dinâmica e sistemática repetidas”, diz Fernanda, da NASF. “Há o aumento de tensão, o ato violento e a lua de mel. Mas, a violência é sempre crescente e vai se agravando em desrespeito e crueldade”, pontua.

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JP Rodrigues/Metrópoles
Maria de Jesus trabalhava como ambulante na Praça Vila Dimas, em Taguatinga Sul, vendendo capas de celular e potes de plástico
Maria de Jesus trabalhava como ambulante na Praça Vila Dimas, em Taguatinga Sul, vendendo capas de celular e potes de plástico

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Enredo

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Na Praça Vila Dimas eram corriqueiras as cenas de briga. “Por ciúmes, por qualquer bobagem… Ele batia nela, ela batia nele”, relata um dos vendedores do Berê Açaí. Ali, onde o casal passava sempre, os conhecidos assistiam as brigas, ouviam as queixas e as recaídas – as juras de amor. “A gente achava que ia acabar dando uma coisa mais grave. Mas nunca pensamos em morte.”

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“A morte costuma ser o fim do enredo quando o casal – ou um dos dois – não consegue sair da dinâmica violenta. Os dois precisam de tratamento. A agredida tem autoestima baixa no limite máximo. Nas situações extremas, está paralisada. Pode até reagir, mas não consegue se desvencilhar da prática de violência que envolve o casal”, observa a psicóloga Fernanda.

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Foi assim com Maria de Jesus, que pelo marido era chamada de “capeta”, “demônia”, “monstra” e “mulher mais feia e fedorenta do mundo”. “Isso dói demais”, queixava-se Maria à vizinha do local onde montava sua mercadoria para vendas. “Ela sofria com ele. Dizia que ia largar, mas não largava…”

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É a história repetida de tantas outras mulheres – Vanilma, Diva Maria,VeiguimaCevilhaMaria GaudêncioIsabellaLuanaEliane Maria, Jacqueline… No caso da Maria, que vivia vizinha a um ponto clandestino de lixo e foi jogada no esgoto, o mais triste é a sua não história. Os conhecidos não querem o nome “envolvido com o crime”, como disseram os entrevistados. Contam que ela falava pouco, nada sobre sua vida. Tinha na bicicleta rosa o único sinal de vaidade. E vivia de touca, porque arrancava os cabelos.

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Maria de Jesus, está no processo, sofria da Síndrome de Tricotilomania, desordem comportamental caracterizada pelo impulso incontrolável de, sob estresse, arrancar pelos, fios ou tufos de cabelo. Por isso a cabeça raspada e a touca.

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maria de jesus

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Em tom de voz baixo, como que contando um segredo, vários dos conhecidos da Praça Vila Dimas contaram: “Tomava remédio controlado. Não batia bem da cabeça, por isso recebia uma pensão do governo”.

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O cartão para a retirada do benefício era um dos motivos das brigas. Ficava com o Henrique e ela o queria de volta.

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No dia do assassinato, Maria havia dito aos conhecidos do quiosque do Açaí que pegaria o cartão para ir embora. O bate-boca começou na praça e deu início à briga, seguida de morte.

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Jamaica

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Henrique, de 36 anos, era popular na Praça Vila Dimas. Lá, atendia por vários apelidos – Virgil, Minas, Jamaica, David.

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Virgil, em alusão ao personagem do desenho animado Super Choque (Static Shock), um jovem negro, da periferia de Dakota (USA), que, exposto acidentalmente a um gás desconhecido, ganhou superpoderes eletrostáticos e virou super-herói.

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Minas por ser mineiro de Buritis. David porque, franzino, tinha mania de provocar grandalhões. Jamaica porque, apaixonado por Bob Marley, usava dreads rastafáris. O guitarrista, cantor e compositor jamaicano, que morreu em 1981 e ficou famoso por popularizar reggae, deu nome ao vira-lata do casal – Bob Marley.

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Divulgação
O assassino era popular na Praça Vila Dimas, onde atendia por vários apelidos – Virgil, Minas, Jamaica, David
O assassino era popular na Praça Vila Dimas, onde atendia por vários apelidos – Virgil, Minas, Jamaica, David

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O reggae era também o som preferido de Henrique. “Ele era pra frente, se achava”, conta a vendedora da farmácia. “Vivia dizendo que era livre, que tinha sete filhos, com várias mães, mas que a maioria das mulheres não servia nem pra pano de chão.”

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“A violência contra as mulheres – mais visível e notificada desde a Lei Maria da Penha – não é uma questão social. É de saúde pública”, defende a psicóloga Fernanda, relembrando que o desrespeito às mulheres é cultural, herança do patriarcado, cevada pelo machismo e pela cultura do estupro.

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Mais uma

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Os homens que conheciam Henrique o descreviam como “um cara gente boa”, que ajudava todo mundo, e honesto. “Até pagava conta pra gente. Pegava dinheiro vivo e trazia o troco e a conta paga”, relata um comerciante. “Ele até garantia a segurança da praça. Coisa errada por aqui, só na segunda, quando o Virgil não trabalhava. Ninguém imaginava isso que aconteceu…”

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Mas aconteceu. Seis mulheres são assassinadas a cada hora mundo afora, 12 é a média diária no Brasil, o quinto país do mundo em taxas de feminicídio. Oito em cada dez são assassinadas dentro de casa, pelo companheiro, namorado ou algum parente.

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Maria de Jesus do Nascimento Lima foi mais uma.

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A mulher triste, de poucas palavras, que só ganhou visibilidade na morte, sentada junto da sua lona de vender coisas, em tom de lamento, cantava baixinho, quase inaudível: “Nesta rua, nesta rua tem um bosque, que se chama, que se chama solidão. Dentro dele, dentro dele mora um anjo, que roubou, que roubou meu coração”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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