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“Retratos da violência contra a mulher”: a reportagem que ainda pode ser contada, por Maíra Vasconcelos

Saiu no site JORNAL GGN

 

Veja publicação original:   “Retratos da violência contra a mulher”: a reportagem que ainda pode ser contada, por Maíra Vasconcelos

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O medo de ser morta foi uma fala repetida por quase todas as 32 mulheres que abordei na delegacia, e que aceitaram dar seu testemunho para a reportagem.

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Por Maíra Vasconcelos

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Passados dois anos de publicação da reportagem “Retratos da violência contra a mulher”, persistem os fatos relativos à violência de gênero. Por isso, volto à reportagem, pela repetição cotidiana de tudo o que verifiquei, em 2017. Basta abrir qualquer jornal de hoje ou ontem e buscar por crimes de feminicídio ou violência doméstica.

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O medo de ser morta foi uma fala repetida por quase todas as 32 mulheres que abordei na delegacia, e que aceitaram dar seu testemunho para a reportagem. Elas diziam que denunciar também dava medo, mas que talvez fosse melhor. Algumas diziam querer deixar de apanhar e não sabiam como. Algumas viam como resultado positivo o marido ou namorado serem presos, pois assim vislumbravam um fim para as torturas. Outras, quando o marido ou ex-namorado já tinham sido presos, reclamavam da Lei Maria da Penha.

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Uma amostra de 32 mulheres entrevistadas na delegacia, durante um mês e meio, é um número considerável, mas não permite maiores afirmações. Lembro-me da filha, que acompanhava a mãe idosa, para que ela denunciasse o marido por maus-tratos e violência. O alcoolismo ou o consumo de álcool, e com isso o aumento das agressões, na maioria dos casos, também acompanhado de ameaças de morte. Escutaria isso repetidas vezes entre as mulheres na delegacia.

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Também foi situação recorrente a mulher que denuncia o ex-namorado por perseguição, sempre seguida de ameaça de morte, após o fim do relacionamento.

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Estou aqui para pedir uma medida protetiva contra o meu ex-marido. Há dois anos, ele tentou matar a mim e a minha filha, que inclusive é filha dele. 

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Não me esqueço da mulher que foi colocada no carro com os amigos, levada a um lugar onde cortaram seu cabelo, além de ter sofrido a usual ameaça de morte. Esses casos de tentar queimar alguma parte do corpo da mulher, usar faca para ameaçar, cortar o cabelo, trancar a mulher em casa com os filhos, ao que parece, são muito comuns e poderiam até mesmo caracterizar o tipo de violência e crime que se comete contra uma mulher pelo fato de ser mulher.

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A senhora que sofria assédio moral, disse da dificuldade de se provar esse tipo de crime, sendo a terceira ou quarta vez que se dirigia à delegacia. Nesse caso, ela dizia desacreditar completamente da lei, mas insistia em voltar à delegacia porque era o único meio que estava ao seu alcance.

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Tem quatro anos e oito meses que eu terminei o relacionamento e até hoje meu ex fica atrás de mim e fica me ameaçando de morte. Aí eu fico com medo, né? 

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Lembro-me, perfeitamente, do relato da senhora que chegou a tirar a faca para o marido, cansada das agressões diárias, como no dia em que ele atirou nela uma panela com água fervendo. Uma comerciante, da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), festejava a prisão do ex-namorado porque seu medo também era o de ser morta.

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Ele bebe, sabe? E ficava violento.

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Estou separando judicialmente vai fazer três meses, e ele me ameaça porque não aceita a separação. Aí toda conversa que a gente tem, ele fala que vai me matar, vai matar quem estiver perto de mim, vai me perseguir.

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A mentalidade fossilizada que diz, “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, faz com que vizinhos escutem mulheres sendo agredidas e não levantem o telefone para denunciar. Isso foi contado por alguma das autoridades que entrevistei na delegacia, em Belo Horizonte, ao final da reportagem – escrivão, delegada e investigador.

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Eles detalharam momentos do mês e época do ano em que as denúncias de violência aumentam ou diminuem. Por exemplo, dia de jogo de futebol, datas festivas e início de mês, quando é pago o salário.

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Assim, os casos brotavam, toda semana, naquelas cadeiras precárias da delegacia sempre, sempre cheia. A delegacia especializada da Mulher é um poço de casos cotidianos em que muitos deles se parecem e se repetem. Os agressores possuem falas de agressão e intimidação, gestos e modos coincidentes em como violentam as mulheres.

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Em um momento da reportagem, percebi que, ou me enveredava em um estudo mais aprofundado e até estatístico, ou já era suficiente os casos até ali coletados. Dada a repetição que se concretizava a cada testemunho. No final, mudei o tempo de entrevistas na delegacia para um mês e meio, tendo sido finalizado entre janeiro e março de 2017.

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Jornalismo e Estado

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O cotidiano de violência contra a mulher é um trabalho jornalístico ainda por ser escrito e investigado, mais uma vez, ou quantas vezes seja necessário sair a campo para retratar esses casos. Afinal, o que o jornalismo tem feito sobre o assunto? Digo, o jornalismo de rua, de reportagem, de sondagem e análise das narrativas, além da obrigatória cobrança das autoridades públicas. O Estado tem responsabilidade sobre os casos de feminicídio e violência contra a mulher. E, afinal, todos os casos são mesmo casos de polícia?

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Por isso, essa reportagem ainda não termina com esse texto. Não há possibilidade de terminar esse trabalho jornalístico que comecei em janeiro de 2017. Seria um equívoco achar que escutar e transcrever, um a um, dos 32 relatos de violência contra a mulher, que esse trabalho não reverberaria ou traria novos desdobramentos e pensamentos a respeito. Justamente neste 2019, durante um governo autoritário, que em 2017 já o era, mas agora é declaradamente sexista e anti-direitos humanos.

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O jornalismo não tem qualquer razão para abandonar uma reportagem no tempo passado, quando o presente cotidiano insiste em repetir tais fatos. O jornalismo tem o compromisso e a responsabilidade social de desmembrar falas, casos, casas destroçadas, violações dos direitos humanos e sociais, neste caso, contra a mulher.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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