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“Não basta não haver consentimento para haver violação”, diz representante sindical de juízes

Saiu no site DN

 

Veja publicação original: “Não basta não haver consentimento para haver violação”, diz representante sindical de juízes

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Secretária-geral da Associação Sindical de Juízes foi à SIC-N defender o acórdão “da sedução mútua” e definiu o crime de violação como implicando existência de violência. Desde 2015 que o Código Penal não define assim violação.

 

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“Em termos jurídicos a violação não é aquilo que a maioria das pessoas diz que é. Ou seja, a maior parte das pessoas entende que para que exista violação basta a pessoa não dar o seu consentimento ou, neste caso, a pessoa estar inconsciente, e aí temos uma violação. Não temos. Juridicamente isso não é violação. (…) Para que exista violação no sentido jurídico, precisamos essencialmente que o arguido tenha colocado a vítima na impossibilidade de resistir – será o caso de colocar uma droga qualquer numa bebida — ou o caso de usar violência, isto em termos gerais. (…) Quando não se demonstra a existência de violência, não podemos entrar no crime de violação.”

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A explicação é de Carla Isabel de Jesus Oliveira, secretária-geral da Associação Sindical de Juízes Portugueses, na SIC-N. A dirigente sindical, juíza no Juízo Criminal de Almada, tinha sido convidada para falar sobre o acórdão que ficou conhecido como “da sedução mútua”, do qual o presidente da associação e juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto, Manuel Soares, é cossignatário.

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E quis elucidar o público sobre a diferença entre violação e o crime pelo qual os arguidos do caso foram condenados – abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.

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“Se uma pessoa tem sexo contra a sua vontade, é violação. Na atual tipificação do crime no Código Penal, precisa apenas de haver constrangimento. O tipo criminal foi alterado em 2015, para incluir as situações em que não há consentimento. O que se pretendeu com a alteração foi exatamente tornar claro que é crime a prática do ato sexual sem consentimento.”

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Mas a sua definição de violação como um crime que implica o uso de violência e para a existência do qual não basta o não consentimento colide com a atual tipificação do mesmo no Código Penal e com a Convenção de Istambul, ratificada por Portugal.

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“Se uma pessoa tem sexo contra a sua vontade, é violação. Na atual tipificação do crime no Código Penal português, precisa apenas de haver constrangimento”, diz Cláudia Amorim, membro da Comissão de Violência Doméstica da Ordem dos Advogados. “O tipo criminal foi alterado em 2015, em virtude da transposição para o nosso ordenamento jurídico da Convenção de Istambul, para incluir as situações em que não há consentimento. O que se pretendeu com a alteração foi exatamente tornar claro que é crime a prática do ato sexual sem consentimento.”

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Assim, para esta jurista, aquilo que a representante sindical dos juízes disse na SIC-N “é uma interpretação errada. Cingiu-se apenas ao número 1 do artigo 164º [que define o crime de violação].”

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Da mesma opinião é Teresa Quintela de Brito, professora de Direito Penal nas Faculdades de Direito das universidades Nova e de Lisboa: “Não é verdade que seja necessário existir violência física para que haja crime de violação. O atual tipo criminal português de violação inclui as situações em que inexiste violência física, ameaça, ou colocação da vítima em estado de inconsciência ou na impossibilidade de resistir”.

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Fernanda Palma, professora catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, corrobora: “A afirmação da representante sindical é incorreta. O número 2 do crime de violação foi precisamente alterado, em 2015, no sentido de evitar dúvidas nas situações em que o tribunal tenha dificuldade em qualificar como violação casos em que não há violência ou ameaça. É para quando não há consentimento expresso, quando a vítima é colocada perante um dilema, um conflito.”

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“A afirmação da representante sindical é incorreta. O crime de violação foi precisamente alterado, em 2015, no sentido de evitar dúvidas nas situações em que o tribunal tenha dificuldade em qualificar como violação casos em que não há violência ou ameaça. É para quando não há consentimento expresso.”

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E Teresa Quintela de Brito aprofunda: “Há crime quer haja a extorsão de uma prática sexual não consentida/não desejada pela vítima, quer exista consentimento desta, embora não livre, porque o processo de formação da vontade da vítima foi viciado pela actuação (em regra complexa, plurissignificativa e subtil) do agente, que se aproveitou da sua própria posição de superioridade (anterior ou por ele criada) ou de uma situação pré-existente de dependência ou vulnerabilidade da vítima. Isto significa que o bem jurídico da liberdade sexual se alargou da mera liberdade de consentir ou não consentir no “resultado final” da prática sexual, ao próprio processo de autodeterminação da vontade para a prática sexual. Sem liberdade de autodeterminação inexiste verdadeira liberdade, mas somente uma aparência desta.”

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Não é não ou não é?

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Mas vejamos como se define o crime, tipificado no artigo 164º do Código Penal. Em cujo número 1 se lê: “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

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Já o número 2 do artigo 164º aplica-se a quem, “por meio não compreendido no número anterior” — ou seja, sem usar violência, ameaça grave, ou não a tendo posto inconsciente ou na impossibilidade de resistir –, constranger outra pessoa aos mesmos atos, sendo punido com pena de um a seis anos.

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Em nota ao artigo 164º, que, como já vimos, foi alterado em 2015 para acolher no nosso ordenamento jurídico a Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 2011), o site da PGR de Lisboa cita o dito tratado e a sua definição de “infrações penais de violência sexual, incluindo a violação”: “Todos os atos sexuais impostos intencionalmente a outra pessoa sem o seu livre consentimento.” Quanto ao que deve ser entendido como livre consentimento, está explicado no artigo 36/2 da Convenção: “O consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes.”

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“Todos os atos sexuais impostos intencionalmente a outra pessoa sem o seu livre consentimento” são infrações penais de violência sexual, diz a Convenção de Istambul, ratificada por Portugal em 2013. “O consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da vontade livre da pessoa, avaliada no contexto das circunstâncias envolventes.”

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A Convenção, ratificada por Portugal em 2013, estabelece que as partes devem adotar legislação penal que tenha em conta a noção de ausência de livre consentimento em relação aos atos sexuais elencados, deixando-lhes a tarefa de decidir a formulação exata da legislação e os fatores considerados exclusivos do livre consentimento.

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Quando em 2015 se discutiu a transposição da Convenção de Istambul para o ordenamento jurídico português, o Bloco de Esquerda quis que a expressão “não consentimento” figurasse explicitamente no artigo 164º, indicando, em sucessivas alíneas, várias formas de agravação, incluindo aquelas que são referidas no atual número 1 do artigo.

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Mas essa proposta não passou, pelo que há interpretações do novo tipo criminal, como a do juiz desembargador e anterior presidente da ASJP, José Mouraz Lopes, em que se considera que “o legislador não assumiu, ainda e apenas, no não consentimento da vítima a fronteira entre o lícito e o ilícito”.

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E Jorge de Figueiredo Dias, uma das grandes autoridades portuguesas em Direito Penal, cuja visão conformou a geração mais idosa dos juristas – e juízes – portugueses, escrevia ainda em 2012, já após a Convenção de Istambul, sobre o artigo 164º: “Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer resistência corporal.”

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“É ignorância ou preconceito histórico”

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Existe assim uma corrente interpretativa dos crimes sexuais, e nomeadamente da violação, que continua, apesar das alterações legais e de estas terem de ser “lidas” à luz da Convenção de Istambul – ou seja, o seu espírito tem de ser tido em conta pelos juízes ao interpretarem as normas do Código Penal que a acolheram -, a considerar que “só” não consentir não chega para haver crime.

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Essa corrente interpretativa não está porém adstrita a juristas conservadores; inclui também a Amnistia Internacional, que em maio acusou Portugal de fazer parte do rol de países que consideram violação apenas o sexo forçado através de violência física, ameaça ou colocação da vítima em incapacidade de se defender, considerando que o nosso Código Penal ainda não define a violação com base na inexistência de consentimento, ou seja, não transpôs adequadamente a Convenção de Istambul.

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Mas Cláudia Amorim é cortante: “O crime de violação está tipificado na lei e o rigor interpretativo na lei penal obedece a princípios muito específicos. Há um tipo legal de crime que inclui o número 2. Atualmente não é preciso haver violência estrito senso, no sentido de violência física. E afirmar que sim explica-se ou por ignorância ou preconceito histórico.”

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“O crime de violação está tipificado na lei e o rigor interpretativo na lei penal obedece a princípios muito específicos. Há um tipo legal de crime que inclui o número 2. Atualmente não é preciso haver violência estrito senso, no sentido de violência física. E afirmar que sim explica-se ou por ignorância ou preconceito histórico.”

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Acresce que, frisa, mesmo o conceito de violência como apenas violência física é já anacrónico: “Quando o tipo de crime violência doméstica (artigo 152º) inclui várias outras formas de violência além da física — “maus tratos físicos ou psíquicos” –, o conceito de violência tem de ser interpretado de forma menos restritiva.”

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Fernanda Palma concorda: “O conceito de violência é polissémico. Aquilo a que se chama hoje violência integra a violência psíquica, outras formas de violência para além da agressão física. É violência aquilo que verga a vontade do outro.”

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“O conceito de violência é polissémico. Aquilo a que se chama hoje violência integra a violência psíquica, outras formas de violência para além da agressão física. É violência aquilo que verga a vontade do outro.”

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Assim, considera que a redação atual do crime de violação não é feliz. “O Código Penal quis resolver um problema, tornando claro que não era preciso existir violência física para haver violação – ou seja, mesmo que alguém queira fazer uma interpretação restritivíssima de violência no crime de violação há o número 2 do artigo 164º –, mas criou outro.” E esse outro problema é, explica, o de criar um tipo de violação “menos grave” – porque tem uma moldura penal muito mais baixa — e que na sua redação implica que há uma forma de violação “não violenta”.

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Recorda, a propósito, que a noção “clássica” ou tradicional de violência nos crimes sexuais é completamente diversa da que informa a definição dos crimes contra o património: “O crime de roubo [artigo 210º do CP) é definido como um furto praticado “com ofensas corporais ou violência”, o que torna claro que a violência no roubo não tem de significar ofensas corporais. O tipo criminal até diz “quem constranger a que lhe seja entregue.””

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“Violação é sempre violência”

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Ou seja, se o conceito de violência utilizado no artigo 164º (violação) for o mesmo que consta no artigo 210º (roubo), o número 2 do 164º também implica, obviamente, violência. Porque alguém constrangeu a que lhe fosse “entregue” o corpo da outra pessoa.

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Por estes motivos, Fernanda Palma considera até que, “no sentido contemporâneo de violência, não se pode dizer que não há violência no crime tipificado no nº 165 do Código Penal, o “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência” [pelo qual foram condenados os agressores no acórdão que ficou conhecido como “da sedução mútua” – o caso de uma jovem de 26 anos que numa discoteca em Gaia foi submetida a relações sexuais de “cópula completa”, enquanto inconsciente, por dois funcionários do estabelecimento]. Nesta situação no meu entender não haveria dúvidas de que há violência.”

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“No sentido contemporâneo de violência, não se pode dizer que não há violência no crime tipificado no nº 165 do Código Penal, o “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência” [pelo qual foram condenados os agressores no acórdão que ficou conhecido com “da sedução mútua”]. Nesta situação no meu entender não haveria dúvidas de que há violência.”

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E vai mais longe: “O atual artigo 165º, o abuso de pessoa incapaz de resistência, deveria estar compreendido no artigo 164º, a violação. A pessoa é coisificada, usada como objeto. Em termos culturais há violência. Do ponto de vista social e cultural é errado fazerem-se estas distinções todas. O caso é gravíssimo e deve fazer-nos pensar numa alteração do crime de violação e num agravamento das penas.”

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Nesse aspeto, Fernanda Palma vai ao encontro da representante sindical do juízes, que pôs a hipótese de ser necessária uma alteração da lei. O DN tentou chegar à fala com Carla Oliveira, mas esta não respondeu às várias tentativas de contacto, que incluíram informação sobre o tema deste artigo.

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Esta quarta-feira, cerca de 400 pessoas manifestaram-se, no Porto, contra a decisão do Tribunal da Relação e aquilo que consideram “uma justiça machista”. Com palavras de ordem como “É violação, não é sedução”, o protesto, convocado pelo grupo feminista A Coletiva, ocorrerá também esta quinta-feira em Coimbra, às 18, na Praça 8 de Maio, convocado pela UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, e sexta em Lisboa, às 18.30, na Praça da Figueira, por iniciativa do movimento Por Todas Nós.

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“O abuso de pessoa incapaz de resistência, deveria estar compreendido no artigo 164º, a violação. A pessoa é coisificada, usada como objeto. Em termos culturais há violência. Do ponto de vista social e cultural é errado fazerem-se estas distinções todas. O caso é gravíssimo e deve fazer-nos pensar numa alteração do crime de violação e num agravamento das penas.”

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Em Espanha, recorde-se, os protestos que encheram as ruas após ser conhecida a decisão do caso La Manada — no qual uma jovem de 18 anos foi violada por um grupo de cinco homens nas festas de San Fermin, em Pamplona, quando estava embriagada — com mais de um milhão de pessoas a assinarem uma petição que pedia a destituição dos juízes responsáveis, levaram a que os partidos e governo reconhecessem ser necessário alterar o Código Penal no sentido de que ficasse expresso na lei que sexo sem consentimento é crime.

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Os cinco homens foram condenados a nove anos de prisão por abuso sexual – um tipo criminal que não existe no ordenamento jurídico português e que corresponderá, no caso (por ter havido penetração) ao número dois do artigo 164º –, considerando os juízes que não era violação, em Espanha um crime cujo nome é “agressão sexual”, por “não ter havido violência”.

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Para a condenação, porém, os juízes valorizaram o facto de a vítima não ter dado o seu livre consentimento aos atos sexuais: “Todos os arguidos, através da sua atuação em grupo, criaram, pela sua vontade e com conhecimento de que assim era, um cenário de opressão que lhes possibilitou uma situação de superioridade sobre a queixosa, da qual se aproveitaram para provocar a sua submissão, impedindo que atuasse de acordo com o exercício livre da sua autodeterminação em matéria sexual e que portanto não prestou o seu consentimento livremente,mas antes de forma viciada, coagida e pressionada pela situação”, lê-se na página 108 da decisão.

 

 

 

 

 

 

 

 

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