HOME

Home

Vidas silenciadas: vítimas agredidas por serem mulheres

Saiu no site GAZ

 

Veja publicação original:   Vidas silenciadas: vítimas agredidas por serem mulheres

.

Feminicídios cresceram 40,9% e bateram recorde em 2018 no Estado. Na maior parte dos casos, mulheres foram mortas dentro de casa

.

Por Leandro Porto e Maria Regina Eichenberg

.

Vanessa da Silva, 32 anos. Andiara da Fonseca, 35. Lúcia Theis, 50. Francine da Silva, 13. Nara Friedrich, 54 anos. Jéssica Pinheiro, 27. Francine Ribeiro, 24 anos. Diferentes idades, histórias, classes sociais, formações, planos e sonhos. No entanto, elas têm uma coisa em comum: tiveram as vidas brutalmente interrompidas apenas por serem mulheres. Elas são as sete vítimas de feminicídio em Santa Cruz do Sul de 2015 a 2018.

.

Somente no ano passado, o município registrou dois casos, mesmo número de 2017. No Rio Grande do Sul, porém, esse tipo de crime bateu recorde em 2018, com 117 vítimas. No ano anterior foram 83, ou seja, um aumento de 40,9%. Conforme o Observatório da Violência Contra as Mulheres, da Secretaria Estadual de Segurança, na maior parte dos casos, as mulheres foram mortas dentro da própria casa por homens com quem tinham alguma relação.

.

Para a responsável pela Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Santa Cruz (Deam), delegada Lisandra de Castro de Carvalho, a dependência financeira em relação ao agressor é um dos motivos mais frequentes da manutenção do ciclo de violência doméstica. Segundo Lisandra, em muitos casos a mulher sequer se compreende como vítima. “Ela pode estar em um contexto em que até ache bonito ou valorize o ciúme, a posse. Mas o amor não está ligado à violência e essas são diferenças, para muitas, sutis”, observa.

.

De janeiro a novembro de 2018, 1.259 ocorrências relacionadas à violência contra a mulher foram registradas pela Polícia Civil de Santa Cruz, a maioria por ameaça e lesão corporal. Nesse período, 23 agressores foram presos em flagrante. Porém, a delegada estima que boa parte desses crimes sequer é comunicada. O comandante da 1ª e 2ª Companhias da Brigada Militar, capitão Rafael Menezes, observa que geralmente os primeiros atendimentos a vítimas são comunicados pelo 190. Em média, informa, cinco ocorrências diárias são atendidas em Santa Cruz.

.

Se na área urbana estima-se que muitos casos não chegam ao conhecimento da polícia, no meio rural, segundo a assistente social e secretária do Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares de Santa Cruz, Salete Faber, o problema é ainda mais velado. Conforme ela, as agricultoras enfrentam mais dificuldades para buscar ajuda por morarem em pontos mais distantes da cidade. “Em Alto Paredão, por exemplo, que não pega telefone, que tem ônibus só em horários específicos, e muitas vezes a violência acontece de noite ou nos fins de semana, quando aumenta o consumo de bebidas alcoólicas, a mulher vai fazer o quê?”

.

.

OS NÚMEROS DE SANTA CRUZ*

.

384 ocorrências de ameaça
228 ocorrências de lesão corporal
195 ocorrências de vias de fato
127 ocorrências de perturbação
87 ocorrências de desobediência de medida protetiva
12 ocorrências de estupro

(*) De janeiro a novembro de 2018, segundo a Deam

.

.

SAIBA MAIS

.

Segundo o Observatório da Violência contra as Mulheres, a maioria dos feminicídios no Rio Grande do Sul em 2016 (67,7%) ocorreram dentro da residência das vítimas. A segunda situação mais comum (18,9%) é em via pública.

.

Em 39,6% dos casos, a ferramenta usada nos assassinatos foi arma de fogo. Já em 36,6% foi arma branca.
A maior parte dos crimes (30,2%) foi praticada à noite, enquanto 27,1% dos casos aconteceram à tarde.

.

A maior parte das vítimas eram brancas (82,8%), com ensino fundamental (52,5%) e idade entre 18 e 24 anos (23,2%). Os dados mostram ainda que a maioria delas (48,4%) tinha alguma relação com o assassino no momento do crime. A maioria delas (71,7%) não havia solicitado medida protetiva de urgência contra o assassino.

.

Ainda de acordo com o estudo, a maioria dos autores dos feminicídios eram brancos (76,9%), com ensino fundamental (58,7%) e idade entre 35 e 39 anos (18,3%). Entre eles, 37,5% já tinham ocorrências com outras vítimas e 23,1% cometeram suicídio após o crime.

.

.

PERGUNTAS E RESPOSTAS

.

1. Quais entidades compõem a rede de proteção à mulher em Santa Cruz?
Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher (Deam), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar, Escritório de Defesa dos Direitos da Mulher, Gabinete de Assistência Judiciária da Unisc, Faculdade Dom Alberto e Casa de Passagem.

.

2. Quais os canais para denúncia?
Brigada Militar, pelo telefone 190; Polícia Civil, pelo 197; Disque-denúncia (anônimo), pelo 180; Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento, pelo 3719 9917; Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, pelo telefone 3713 4340; e Escritório de Defesa dos Direitos da Mulher, pelo 3715 9305.

.

3. O que acontece quando a mulher procura ajuda?
Ao procurar ajuda ou quando a violência é constatada, a mulher é encaminhada para a rede de proteção do município. O primeiro contato com a vítima serve para esclarecimentos jurídicos ou até ajuda psicológica. A partir de uma entrevista, verifica-se a necessidade de registro policial.

.

4. Como funcionam as medidas protetivas de urgência?
A autoridade policial ou o Ministério Público encaminham o pedido ao juiz. A lei prevê que a autoridade judicial deve tomar uma decisão em um prazo de 48 horas. As medidas podem ser concedidas ou não, dependendo da gravidade do caso. Para o deferimento, é preciso que haja ao menos indícios de que o conteúdo da denúncia é real. Em 2018, 632 solicitações foram encaminhadas à comarca de Santa Cruz do Sul de janeiro a novembro. Destas, 200 foram concedidas.

.

Quando a medida protetiva é deferida, o magistrado poderá aplicar ao agressor, em conjunto ou separadamente, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas; o afastamento do lar ou local de convivência com a ofendida; e a proibição de condutas como aproximação da vítima e de pessoas relacionadas a ela, com limite mínimo de distância entre estes; contato por qualquer meio de comunicação; restrição de frequentar determinados lugares e restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores.

.

As decisões são tomadas levando em consideração cada um dos casos em específico, conforme a lei 11.340, artigo 22. Desde o ano passado, o agressor que descumpre a medida protetiva pode ser preso em flagrante.

.

.

“Fui longe demais aguardando uma mudança”

.

Para vítimas de violência doméstica, encontrar a coragem necessária para denunciar o agressor e procurar ajuda é um desafio. Há quem conviva durante anos com a dor psicológica e física. Perder a guarda dos filhos, o emprego e a estabilidade financeira são só alguns dos medos de mulheres humilhadas, espancadas e abusadas.

.

A história de Ana (nome fictício) é um exemplo. Militante dos direitos das mulheres desde 2012, ela foi casada por 24 anos. Primeiro, sofreu violência psicológica. Pensou em sair de casa, mas resolveu ficar, na esperança de que o marido mudasse. Porém, quando a filha do casal estava com 4 anos, as duas foram agredidas fisicamente. Ele havia bebido. “Ele me atirou na estante com a minha filha no colo. Essa foi a primeira agressão grave.”

.

Ana buscou nos estudos uma possibilidade de, aos poucos, planejar um divórcio e sair do casamento com estabilidade financeira. Enquanto era vítima, passou a acompanhar mais de perto informações sobre direito das mulheres. Foram pelo menos três ocasiões em que sofreu violência física e, em todas, registrou na delegacia. Um desses casos foi emblemático para que compreendesse que precisava dar um basta. “Ele bebeu e aí foi o fim de tudo. Pegou uma arma e só deu sorte que eu saí de dentro de casa com a minha filha, senão eu nem estaria mais aqui.  Eu poderia ter morrido. Fui longe demais aguardando uma mudança.”

.

Após o episódio, Ana buscou abrigo na casa de amigos e encaminhou o divórcio. Ela e a filha passaram por tratamento psicológico. O agressor também. Para Ana, mulheres vítimas de violência doméstica precisam procurar auxílio.

.

.

“O que me deixa com mais raiva é que eu conhecia ele”

.

Francine Rocha Ribeiro saiu para caminhar em uma tarde de domingo de temperatura agradável e não voltou mais. O trajeto em torno do Lago Dourado foi interrompido. Mais do que o trajeto, foi uma vida interrompida brutalmente aos 24 anos. Do lado oposto à entrada do complexo, Francine foi coagida a ir até a barranca do Rio Pardinho, a aproximadamente 370 metros da pista. Nese local foi amarrada, estuprada, espancada e estrangulada até a morte.

.

Foram horas de buscas pela jovem que não saem da memória do pai, Runor Rocha Ribeiro (foto). O domingo em que ela sumiu era 12 de agosto, Dia dos Pais. Pela última vez, o aposentado de 51 anos recebeu as duas filhas gêmeas em casa, em Rincão da Serra, interior de Vera Cruz, para comemorar. De lá, o noivo de Francine, Lucas Seelig de Lima, levou-a à residência da mãe, por volta das 14h30. No local, ela trocou de roupa e foi se exercitar no Lago Dourado.

.

No fim da tarde, a família começou a se mobilizar, pois estranhou o sumiço da jovem, que sempre avisava onde estava. Tentaram achar pistas pelo localizador do celular de Francine. Um dos lugares que apareceram, conforme o pai, foi a Praia dos Folgados, no Bairro Várzea. Runor foi até lá e, sem saber, esteve no local onde morava o assassino da filha. Na manhã do dia seguinte, por volta das 8h30, o grupo decidiu procurar próximo à barranca do Rio Pardinho. Foi então que o pai se deparou com a imagem forte do corpo de Francine.

.

Bastaram 11 dias até a Polícia Civil prender o assassino de Francine, Jair Menezes Rosa, de 58 anos, após encontrar amostras de sêmen dele no cadáver. Passados cinco meses, Runor revela que, ao descobrir quem era o autor do crime, deu-se conta de que já o conhecia. Cerca de dez anos antes, ele havia convivido com Rosa em uma localidade em Vera Cruz, onde tinha uma casa na beira do rio. “O que me deixa com mais raiva é que eu conhecia ele. Ele estava seguido lá pescando. O dia em que pegaram ele e mostraram a foto, eu conheci ele de cara.”

.

Foto: Divulgação

.

.

“É uma ferida que jamais cicatriza”

.

Jéssica Aline Junkherr Pinheiro temia ser morta. E o perigo estava bem perto. Mais precisamente, dentro de casa. Aos 27 anos, ela era constantemente ameaçada e agredida pelo marido, José Alberi Ramos, 39 anos, o Jô, com quem vivia há pelo menos oito anos.

.

Em 2 de julho de 2018, Jéssica procurou a Deam para denunciar que José a teria ameaçado durante uma discussão sobre a separação e divisão dos bens. Nessa ocasião, porém, ela não quis representar criminalmente. Dez dias depois, retornou à delegacia, contou que tinha decidido sair de casa definitivamente e solicitou uma medida protetiva.

.

Isso, no entanto, não evitou um fim trágico. Na madrugada do dia 28 de julho, após dias sendo perseguida e torturada psicologicamente, Jéssica foi assassinada. José espancou a parceira, matou-a com dois tiros no rosto e depois cometeu suicídio no Cemitério Parque Guarda de Deus.

.

Passado menos de meio ano, a mãe de Jéssica, Joeli Junkherr (foto), de 65 anos, conta que a filha já sofria com ameaças e agressões há cerca de dois anos. Entre o encaminhamento da separação e o assassinato, decorreram cerca de duas semanas. Apavorada, a jovem trocou duas vezes de endereço, acompanhada do filho. Dois dias antes de ser morta, mudou-se para a casa da mãe. Na noite do crime, o assassino chegou em uma motocicleta e chamou pelo filho. Enquanto ela tentava proteger o neto no porão da casa, José coagiu Jéssica e os dois saíram no carro dela. No clarear do dia, a polícia trouxe a notícia das mortes. “Ele quebrou ela toda. Só a gente para ver, sentir e dizer o quanto dói e o quanto é triste uma mãe criar uma filha e depois um bandido matar. Não tem explicação, é uma ferida que abre e nunca mais cicatriza”, desabafa Joeli.

.

O comandante das 1ª e 2ª companhias da Brigada Militar de Santa Cruz, capitão Rafael Menezes, recorda que o caso foi simbólico, justamente porque ela havia solicitado medida protetiva e seria encaminhada à rede de proteção do município. De acordo com o capitão, foram feitas ligações e abordagens no antigo endereço da jovem, mas ela não atendeu e não foi localizada. Além do filho, da mãe e do pai, Jéssica deixou três irmãos e uma irmã. De acordo com Joeli, a falta da filha é uma dor diária e latente. “Acho que um câncer, uma facada, um tiro, não doem tanto como a falta que eu sinto.”

.

.

Foto: Divulgação

.

.

E o agressor?
Uma novidade na rede de proteção, que começou em novembro de 2018 em Santa Cruz, é o Grupo reflexivo para homens envolvidos em situação de violência contra a mulher. O trabalho é realizado na Deam e coordenado pela psicóloga Andréia Inês Hermes. A iniciativa conta com 12 participantes, 11 encaminhados pelo Poder Judiciário em caráter obrigatório e um voluntário. Segundo Andréia, o foco do trabalho está em buscar a conscientização dos homens para que a violência não se repita. “Tentamos desmistificar a violência como sendo algo banal. Entendemos que cuidando deles, estamos cuidando das vítimas, dos familiares e da sociedade como um todo.”

.

.

OUTRAS VÍTIMAS

.

 

Andiara da Fonseca, 11/2/2016
É o único dos sete feminicídios registrados em Santa Cruz de 2015 a 2018 cuja investigação ainda não teve um desfecho. Andiara, 35 anos, foi morta na frente da filha de 6 anos, com seis tiros. O acusado é Sérgio Aldemir de Andrades, 52 anos, conhecido por Sema, com quem tinha um relacionamento. Sema está foragido há quase três anos. A mãe da vítima, Rejane Margarete da Fonseca, que sequer sabia do envolvimento amoroso da filha, clama por justiça. “Espero que as autoridades possam ir atrás dele em qualquer lugar.” Desde a morte de Andiara, os problemas de saúde se tornaram frequentes. Rejane passou a fazer tratamento psicológico e tomar remédios.

.

.

Foto: Divulgação

Nara Friedrich, 9/2/2017
Aos 54 anos, Nara, que era professora, foi encontrada morta no apartamento onde morava na Rua Tiradentes. O companheiro, Léo Marcos Paranhos Luz, de 60 anos, matou-a com 13 facadas nas costas. Nara já havia registrado boletim de ocorrência contra ele. Queria terminar a relação, mas tinha medo de Léo. Ele confessou a autoria do crime e, em fevereiro do ano passado, foi condenado a 18 anos de prisão em regime inicialmente fechado. “É uma dor eterna, de uma saudade que dói. Eu nunca tinha sentido uma saudade que doesse fisicamente em mim”, conta o filho de Nara, Roberto.

.

.

 

Vanessa Pinheiro da Silva, 16/1/15
Vanessa tinha 32 anos e foi morta pelo ex-companheiro enquanto dormia em casa, no Bairro Senai. Arcelino José da Silva, que não aceitava o fim do relacionamento, assassinou-a com quatro tiros. Uma das filhas do casal, de 4 anos, estava em casa quando o crime aconteceu. Nos seis anos que antecederam o crime, Vanessa já tinha registrado pelo menos 22 ocorrências contra o ex. Em agosto de 2016, ele foi condenado a 25 anos de prisão.

.

.

Lúcia Teresinha Theis, 1o/9/2016
Lucia havia registrado uma série de ocorrências contra o assassino, José Adolfo Gonçalves, com quem teve dois filhos. O primeiro registro foi feito em 1998. Gonçalves não aceitava o fim da relação, mesmo após dez anos do término. Ele invadiu a casa dela, em Linha do Moinho, no interior de Santa Cruz, e a agrediu com uma barra de ferro e golpes de foice. O acusado foi encontrado morto, enforcado em um matagal a cerca de três quilômetros da cena do crime, 15 dias depois. Lucia tinha 50 anos.

.

.

 

Francine Sins da Silva, 14/4/2017
A adolescente tinha 13 anos e foi encontrada em Rio Pardinho, onde morava. Ela estava amarrada em uma árvore e havia sido estuprada e asfixiada. O inquérito concluiu que o padrasto da vítima, Ronaldo dos Santos, foi o autor. A mentora do crime teria sido a própria mãe, Geni Sins, movida por ciúmes, o que ela nega. No dia 11 de maio, Geni recebeu da Justiça o direito de permanecer em prisão domiciliar. Já Ronaldo confessou ter matado a enteada e está preso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

HOME