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‘Seria libertador’: mulheres tentam retirar sobrenomes paternos na Justiça

Saiu no site Uol

Veja publicação original: Seria libertador’: mulheres tentam retirar sobrenomes paternos na Justiça.

A assistente de atendimento Karine Santos, 40, vive uma encruzilhada. Ela se entusiasmou ao ler sobre uma decisão dos desembargadores dos TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), divulgada na última semana, que autorizou uma mulher a retirar seu sobrenome paterno por conta de abandono afetivo e material. Karine viveu uma infância conturbada com o pai, e cogitou fazer o mesmo.

Ao contar para sua mãe sobre o desejo de mudar o sobrenome, disse que foi repreendida. “Percebi no semblante dela que não gostou de ouvir isso. Outras pessoas de confiança também me falaram que eu tinha de ‘superar esse assunto’. Meu pai já está com quase 80 anos, e me falaram que posso magoá-lo. Eu tenho esse direito [de retirar o sobrenome], mas ao mesmo tempo não quero entristecer ninguém”, disse ela ao UOL.

“Para mim, seria libertador” Na decisão do TJ-SP, publicada na semana passada pelo site especializado Conjur, a 3ª Câmara de Direito Privado do tribunal decidiu que uma mulher poderia retirar o sobrenome para proteger sua personalidade. À ação foram anexados laudos psicológicos que, no entendimento dos desembargadores, mostraram uma situação de sofrimento e constrangimento por conta do nome paterno.

Karine, que vive em Belo Horizonte, diz que a notícia “mexeu muito” com ela, e que a reação da mãe foi um “balde de água fria”. “Para mim seria libertador, me ajudaria muito no meu processo terapêutico. Eu tenho esse desejo, essa vontade, é como se eu fosse culpada por isso. Eu sofri, sofro até hoje. E, depois de conversar com as pessoas, percebi que se tomar essa decisão, posso carregar ainda outra culpa comigo. Eu não posso me libertar disso, e imagino que essa realidade não seja só a minha.”.

A alteração em seu nome, afirma ela, seria também em homenagem à mãe, substituindo o paterno pelo segundo sobrenome materno. “Ela é minha mãe e meu pai.”.

Casos de mães que tentam mudar os nomes dos filhos por conta do abandono paterno também têm chegado à Justiça. Há alguns anos, Juliana Vargas, 30, disse ter ficado constrangida quando foi à formatura de seu filho na escola de educação infantil e ouviu, pelos alto-falantes, o nome do pai do menino ser citado junto com o dela. “Aquilo me fez pensar que, quando ele tiver 18, 20 anos e se formar em uma coisa mais importante na vida, vou ter que ouvir que é filho de uma pessoa que nunca fez nada pelo filho”, disse. Juliana se relacionou no começo da vida adulta com um amigo de infância e, segundo ela, quando ele soube que seria pai, rompeu a amizade longínqua e negligenciou a criação.

Depois de começar um novo relacionamento e ter outro filho, Juliana passou a estudar formas de alterar o nome do primogênito. O padrasto, diz ela, foi o pai de fato do menino mais velho, que sempre o enxergou desta maneira.

No ano passado, com o auxílio da Defensoria Pública, ela moveu uma ação para que o sobrenome paterno do primeiro filho fosse substituído pelo do padrasto. O atual marido dela também entrou com um processo de adoção, para ser reconhecido como pai de direito.

Após entrevistas, fotografias comprovando que o filho tinha boa estrutura na casa e o depoimento da criança, o pai biológico teria de ser ouvido no processo. Ele, no entanto, não compareceu às três audiências que foram marcadas (uma delas por videoconferência), segundo Juliana. “O juiz disse que isso contou ao meu favor”, disse Juliana. Em março deste ano, ela obteve uma decisão favorável na 2ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre. A mudança ainda não foi consolidada por conta da pandemia, que alterou o funcionamento dos cartórios.

O caminho para a mudança de nome

O processo para mudança de nome costumava ser mais complexo e trabalhoso, mas os entendimentos recentes dos tribunais têm alterado esse cenário, em especial o que envolve o argumento de abando afetivo e emocional.

Esse tipo de ação tem como parte o Ministério Público, o pai ou mãe que porta o sobrenome e a pessoa que quer fazer a mudança. O MP observa se a alteração não vai prejudicar processos criminais ou outras questões legais. O requerimento para a mudança do primeiro nome deve ser feito entre os 18 e 19 anos; não há lei específica para a alteração do sobrenome.

Diz o artigo 56 da Lei de Registros Públicos: “O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa.”.

“O nome traz uma ideia de estabilidade, e a regra básica do sistema é a imutabilidade. A lei prevê exceções, mas agora passou-se a entender que o nome é atrelado ao direito de personalidade”, afirmou o advogado Ricardo Calderón, que coordena a pós-graduação de Direito das Famílias e Sucessões da ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional).

Nesses processos, os “donos” do sobrenome opinam sobre a mudança. Se uma mulher quiser retirar seu sobrenome paterno, o pai será ouvido. Se uma mãe quiser substituir ou retirar o sobrenome paterno de seu filho, o pai será chamado para dar sua declaração.

Na ação julgada na semana passada, o pai disse em depoimento que estava havia pelo menos seis anos distante da filha, e que se afastou “em razão de desavenças profissionais com o núcleo materno da apelante”, conforme dito pelo desembargador Donegá Morandini. Juízes, desembargadores e o Ministério Público já foram mais conservadores em relação às mudanças, dizem os especialistas consultados pela reportagem. As decisões recentes, no entanto, sinalizam que a Justiça está mais flexível.

O papel da Defensoria Pública

As defensorias públicas nos estados têm papel importante para as pessoas que buscam a mudança no sobrenome e não têm condições de arcar com os custos. No caso de São Paulo, o órgão atende gratuitamente quem têm renda familiar de até 3 salários mínimos.

“Pela experiência que tenho, acontece muito mais o abandono afetivo por parte do pai. É uma questão social, estrutural, tanto as destituições de poder familiar [medida mais grave imposta aos pais, caso estes não cumpram com seus deveres perante os filhos] são muito mais frequentes em relação ao pai”, diz uma defensora pública de São Paulo que preferiu não se identificar.

Ela atua em caso semelhante, no qual um adolescente de 15 anos tenta substituir o sobrenome paterno pelo materno, e que corre sob segredo de Justiça. O jovem argumenta que nunca foi criado pelo pai, e cita o abandono afetivo como um dos fatores pelos quais ele quer a mudança.

“Este é um termo [abandono afetivo] muito subjetivo em termos jurídicos, e o Ministério Público pediu para eu comprovar isso. Vou ter de pedir uma prova pericial, para que ele seja analisado por psicólogos, para verem como ele se sente”, diz a defensora. “O pai já declarou que não se opõe à mudança, curiosamente ele é advogado.”.

Não há um número fechado de casos de mudança de sobrenome que correm nos tribunais brasileiros; por se tratar de questões de foro íntimo, os processos costumam ser colocados sob sigilo.

O jovem que pede a mudança, além de ter somente sobrenomes paternos, também carrega o nome “Júnior”, posto que foi registrado de forma idêntica ao pai. O menino é conhecido pela alcunha e quer mantê-la, e a defensora cita este como um dos empecilhos do processo. Ela diz, no entanto, que vai tentar contornar a situação.

“Por que o adolescente tem de carregar o sobrenome paterno que incomoda?”, questiona, citando um caso de retificação de nome em que a pessoa defendida por ela ficou emocionada após a decisão favorável. “Ela chorou, ficou muito emocionada. Tiramos uma foto em frente ao tribunal, aquilo tinha um significado.”.

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