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O princípio da proibição do retrocesso e o aborto legal

Saiu no CONJUR.

Veja a Publicação original.

Ganhou dimensão nacional o aborto realizado em uma menina de 10 anos que foi submetida à violência sexual, aparentemente, conforme indicado pela investigação policial, pelo próprio tio. O tema ganhou interesse nacional, para minha perplexidade e tristeza, pela prática do aborto legal, e não pelo ato de violência sexual contra uma criança indefesa de 10 anos que teve a sua infância roubada por membro da família que deveria defende-la.

Fiquei ainda mais escandalizado pela  violência praticada contra ela, não apenas pelos seu violentador, mas por parte da sociedade que reagiu contra o fato de ela estar realizando um aborto legal. A reação deste grupo mostra o quanto ainda existem pessoas tolerantes com o ataque e a agressão praticados contra as mulheres e as nossas crianças.

Na sequência da divulgação na mídia nacional da realização do aborto, o Ministério da Saúde adotou a Portaria 2.282, de 27 de agosto de 2020, determinando a notificação obrigatória à polícia quando da realização de abortos legais e criando um procedimento que, sob a justificativa de proteger os profissionais da saúde, é destinado, essencialmente, à expô-los e constrangê-los.

O aborto legal decorre de situação agressão à mulher ou risco à sua vida, em que a terminação da gravidez é autorizada. O ato é praticado mediante um procedimento médico cuja justificativa vinha sendo regulada, no âmbito do Sistema Único de Saúde, pela Portaria 1.508, de 2005. No caso, a nova Portaria 2282 veio a revogar a anterior para estabelecer a necessidade da notificação da prática do aborto à autoridade policial.

Novamente, fica a perplexidade de ver que o Estado está mais atento e preocupado com o aborto legal do que com o crime perpetrado contra as mulheres brasileiras e, no caso em questão, contra as crianças. Ao mesmo tempo, surge a questão da legalidade e constitucionalidade da notificação à polícia. Ela é legalmente válida e necessária, ou o médico está dispensado de  fazê-la em face do sigilo médico para com o seu paciente?

De início, as atividades profissionais que guardam sigilo, como as médicas, não estão obrigadas a produzir provas contra os seus clientes/pacientes. Veja-se o que dispõe o art. 207 do Código de Processo Penal.

São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

E aqui surge o problema: sendo o aborto um ato legal, não criminoso, o que justifica a sua notificação? Obviamente, não estou aqui a falar do crime de estupro e dos elementos de materialidade da sua ocorrência, os quais, conforme interessante artigo do Desembargador Guilherme de Souza Nucci do Tribunal de Justiça de São Paulo, não estariam protegidos pelo sigilo profissional. Todavia, não se trata de notificar apenas o crime de estrupo ou preservar as evidências do mesmo, mas de notificar à polícia  própria prática do aborto que, no caso, não é ilegal. Ser obrigado notificar à polícia um evento não criminoso é uma exigência ilegal e violadora da ética do sigilo médico. É um esforço de constrangimento  do detentor de um direito estabelecido em lei e do impedimento de um evento que tem uma razão humanitária de existir.

O aborto praticado em alguém que sofreu uma violência sexual e/ou sofre risco de vida é uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, seja no sentido de continuar a existir (no caso de risco de vida), seja o direito de existir com dignidade, livre para decidir como lidar com  o  trauma imposto por quem praticou um ato abominável (no caso da violência sexual).

A decisão médica de realizar o aborto, como no caso da criança de 10 anos, é tomada como decorrência da necessidade de proteção da vida e da dignidade da existência. A Portaria 2282, portanto, não só padece de legalidade (violação do sigilo médico), mas viola a própria constituição, especialmente o princípio da proibição do retrocesso, já que o direito de optar pelo aborto, nos casos da lei, é uma decorrência do direito à dignidade da pessoa humana.

Tenho esperança que o Brasil possa avançar de forma que as pessoas comecem a demonstrar indignação contra quem prática violência sexual contra as mulheres, homens e crianças, e não contra os profissionais de saúde e as próprias pessoas abusadas física e mentalmente.

 

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