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Justiça de Saia: Cartão vermelho para o machismo

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:

 

Veja publicação original: Justiça de Saia: Cartão vermelho para o machismo

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Por Maria Gabriela Prado Manssur

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Já é de conhecimento público e notório que um vídeo de um grupo de torcedores brasileiros constrangendo uma mulher na Rússia viralizou. Agora somos nós que precisamos virar este jogo

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Chegou junho e a cada quatro anos, junto com a pipoca e o quentão, outra festa vem para alegrar nosso coração: a Copa do Mundo. Não tem como não se emocionar com o clima de união que as partidas trazem.

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Mas nesse ano, a competição nem bem começou e o Brasil já está perdendo. Desta vez, o 7 x 1 foi fora de campo: um grupo de quatro brasileiros se filmou enquanto induzia em erro uma moça russa, que não sabia o que estava falando, a  pular e gritar palavras de baixo calão em português, fazendo tamanha chacota com o órgão sexual feminino. Como se não bastasse enganá-la de maneira vexatória, os mesmos brasileiros ainda tornaram os fatos públicos: postaram o vídeo em redes sociais e a expuseram, literalmente, para o mundo inteiro ver. Um dos vídeos (sim, um deles, pois existem outros circulando por ai), tem mais de um milhão de visualizações.

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A vida, assim como o futebol, é regida por regras. E neste caso a regra é clara: violência contra a mulher NUNCA é brincadeira dos homens, tampouco exagero das mulheres. É crime. Não há nada que justifique uma agressão como aquela. “Mas Gabi, eles não bateram na moça…. O que ela estava fazendo lá no meio de um monte de macho?”

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Há quatro anos desenvolvo o projeto Tempo de Despertartentando desconstruir o machismo e ressocializar os agressores de mulheres, e um dos maiores desafios é fazer com que os homens entendam que a violência contra a mulher não é só física. A Lei Maria da Penha, vigente desde 2006, prevê ainda a violência sexual, psicológica, patrimonial e moral. E o que está sendo divulgado nas redes sociais com repercussão mundial é uma violência muito grave contra aquela moça russa que não sabemos o nome, mas conhecemos o rosto e a cor da pele.

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A brincadeira, a piada, a briga de casal, o ciúmes exagerado, o controle, o sentimento de posse e a não aceitação do “não” são exemplos de comportamentos masculinos naturalizados e que muitas vezes camuflam a violência contra as mulheres: ofende, humilha, discrimina, machuca, isola, estupra, mata. Não é mimimi, é violação de direitos, é crime. E esse episódio mostrou para o mundo que estamos muito conscientes de tudo isso.

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Um amigo me mostrou o vídeo no domingo pela manhã, no dia em que todos os brasileiros se reuniram para assistir à estreia do Brasil na Copa. Ele tinha acabado de receber as imagens num grupo de WhatsApp, formado exclusivamente por homens. Grupo de pais da escola? Dos amigos do clube? Do time de futebol? Amigos de infância? Da turma da faculdade? Do trabalho? Um desses. Ou todos esses. Eu perguntei o que esses homens estavam falando sobre o vídeo: “não tem nada demais”, “estão rindo muito”. E continuei a perguntar: mas ninguém se indignou? “Ninguém, é normal”. A única coisa que sei é que muitos deles repassaram o vídeo como se fosse o toque de bola mais perfeito da Copa. Só que não.

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Quando vi as imagens congelei, fiquei envergonhada, com pena da moça. Pensei que poderia ser minha filha ou a de qualquer um dos homens daqueles grupos de WhatsApp. Mas nenhum deles pensou nisso. Ninguém pensou que aquela mulher russa ganhou uma nova identidade: a moça da vagina rosa. E que assim será conhecida por muito tempo: quando for mãe, esposa, empresária, executiva, política, ou seja lá o que ela quiser ser.

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É torcedores, tarde demais. No mundo da internet, caiu na rede é peixe: o efeito é desastroso. Mesmo que haja decisões judiciais determinando a retirada de uma imagem do ar, elas não são suficientes para que tudo desapareça. Sempre tem alguém que salvou.  Acabei de dar um Google: o vídeo está lá.

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Nisso o Brasil perde de WO:  ainda não há nenhuma legislação específica sobre violência contra a mulher na internet que criminaliza a pornografia de revanche, o registro não autorizado da intimidade sexual, a divulgação e compartilhamento dessas imagens. Nesse sentido, há um projeto de lei no Congresso Nacional (PLC n. 18/2017), mas nada ainda foi aprovado. Quem sabe com esses fatos alguma providência seja tomada.

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Em março desse ano tivemos um importante avanço, a Lei 13.642/18 (Lei Lola Aronovitch), que autoriza a Polícia Federal a investigar os crimes de misoginia e de ódio contra a mulher na internet.

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Mas, falando do caso concreto, dos fatos cometidos pelos brasileiros na Rússia, o que a PolÍcia Federal irá investigar? Como se dará eventual punição? O que pode acontecer?

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Os brasileiros podem ser processados na Rússia (condenados ou absolvidos) e cumprirem a pena por lá. Porém, se antes disso eles voltarem para o Brasil, por aqui serão processados criminalmente(princípio da extraterritorialidade da lei penal e da não-extradição de nacional): aplica-se a lei brasileira aos crimes cometidos por brasileiros no exterior, desde que eles tenham retornado para o Brasil. Em outras palavras, nosso país não “devolve” o réu brasileiro para o país em que ele cometeu o crime, mas obriga-se, internacionalmente, a processá-lo e puni-lo.

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Se já houver um processo criminal iniciado na Rússia, por uma cooperação internacional entre os países, esse processo é traduzido e encaminhado para o Brasil para a continuação das investigações, processo criminal e eventual punição, de acordo com a legislação brasileira. E tendo ou não iniciada investigação ou processo na Rússia, o Ministério Público Brasileiro também poderá dar início às investigações. Houve, no caso concreto, violação aos direitos humanos das mulheres.

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Nesse aspecto, em que pesem as críticas à legislação russa no tocante à violência doméstica e à ausência de legislação específica no Brasil para os crimes contra as mulheres por meio da internet, ambos os países são Estados-membros da ONU, ONU Mulheres e signatários da Cedaw (Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres): se comprometeram internacionalmente a erradicar, prevenir, combater e punir todas as formas de preconceito, discriminação e violência contra meninas e mulheres.

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E qual o crime cometido, do ponto de vista da legislação penal brasileira (meu entendimento, respeitando opiniões em sentido contrário)?

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Li, reli, consultei jurisprudências, conversei com colegas, especialistas e após patinar entre a possibilidade de enquadrar a conduta em uma contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor ou o crime de constrangimento ilegal, cheguei a conclusão de que se trata de um crime de injúria racial praticada por meio que alcançou um maior número de pessoas (aumenta-se a pena).

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Com efeito, o grupo de homens está ofendendo a dignidade de uma pessoa (nesse caso, a mulher russa que aparece nas imagens) colocando a honra subjetiva dessa mulher em cheque, expondo a sua intimidade, causando-lhe sentimento de vergonha, indignação e injustiça. E, para praticar essa ofensa, o grupo se valeu de elementos referentes à etnia (eslavo oriental), origem (Europa Oriental) e cor da pele, causando-lhe humilhação pública, discriminação e preconceito, ainda que mascarado por aparente piada ou brincadeira.

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Mas vai além. Os brasileiros se esquecem que ao ofender a honra de uma mulher russa, praticando esse tipo de conduta fora do nosso país, em época de copa, em que os holofotes do mundo estão voltados para nós, ofendem a honra de todas as brasileiras, nossa honra nacional, a nossa pátria amada, Brasil. Para mim, que busco defender as mulheres todos os dias e amo futebol, de todos os nossos vexames, sem dúvida, este é o nosso pior 7×1.

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Resta saber agora, qual será o desfecho jurídico do caso.

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Segundo notícias veiculadas ontem na internet, a jurista russa Alyona Popova fez uma denúncia para as autoridades russas e escreveu uma petição contra os atos machistas cometidos pelos torcedores brasileiros, por violência e humilhação pública, à honra e à dignidade de outra pessoa.

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Ainda que demoremos a ter notícias sobre a punição dos torcedores, acredito que ela já ocorreu: a “punição virtual”. Esse tipo de conduta é altamente reprovável socialmente e não será aceita. Quem duvidar, que assuma os riscos e arque com as consequências. E tenho certeza que serviu de recado para muita gente. Após a repercussão do caso, testemunhei um machista de carteirinha apagando um post do seu Instagram, em que ele reproduzia o vídeo e fazia brincadeiras com as mulheres. O post sumiu. Golaço!

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Mais uma vez as mulheres usaram as redes sociais para soltar o grito de liberdade. Fizemos eco. Fizemos a nossa Justiça. “Querida moça russa, não queremos saber a cor da sua pele, mas sim o seu nome. Nossas sinceras desculpas”.

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Viramos o jogo, mostramos que não estamos no banco de reserva e que o nosso lugar é onde nós quisermos. Cartão vermelho para os machistas. Queremos o Brasil campeão e as mulheres livres de violência.

 

 

 

 

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