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Eu, Leitora: “Fui empregada doméstica e hoje sou deputada”

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:   Eu, Leitora: “Fui empregada doméstica e hoje sou deputada”

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A advogada Andréia de Jesus, 40 anos, fez parte da primeira leva de mulheres negras eleitas para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, no ano passado. Andreia foi empregada doméstica dos 12 aos 17 anos, até que uma de suas patroas a inscreveu em um concurso público. Há dois anos, foi trabalhar no gabinete coletivo de duas vereadores e em 2018 foi eleita deputada, fazendo parte da primeira leva de mulheres negras a ocupar no estado de Minas Gerais

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Por Andréia de Jesus em Depoimento a Kamille Viola

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Sou a filha mais velha de um casal que, faço questão de contar, é analfabeto. Meu pai era padeiro e minha mãe lavava roupa para fora. Ele tinha um traço de alcoolismo muito forte, inclusive com violência doméstica. Tenho duas irmãs, e a gente cresceu vendo isso como se fosse normal. Até porque não era só na nossa casa, mas na dos vizinhos também. Ao mesmo tempo, nosso pai tinha uma participação social boa, ele mexia com time de futebol de campo de terra, e participava de escola de samba, tocando tambor, pandeiro.

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Morei na Região Metropolitana aqui de Belo Horizonte, em Venda Nova, que já mudou bastante. Mas a gente viveu ali numa época em que não tinha transporte público no bairro, eu tinha que andar quilômetros para pegar ônibus. Então os passeios eram concentrados no fim de ano. Também porque, no Natal, tinha décimo-terceiro. Minha mãe nunca foi religiosa, mas obrigavaa a gente a ir à igreja, então era aquele era um espaço também que eu tinha de sociabilidade, de me colocar como figura pública.

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Até meus 12 anos, vivemos nessa região. Depois, a gente se mudou, justamente porque no bairro não existia escola de ensino médio. Muita gente passou por isso. Então, fomos morar num bairro que se chama Concórdia. É um bairro hoje em dia bem tradicional do ponto de vista da cultura afro. Tem congado, escola de samba…

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Boa parte da minha vida, fui empregada doméstica. Comecei com 12 anos, assim que a gente foi para esse bairro, e fiquei até os 17 anos no trabalho doméstico sem vínculos. Depois, fui para uma padaria e acabei voltando a ser empregada doméstica, até porque o salário era melhor.

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O Paço Municipal, no Centro de Belo Horizonte, era o único lugar para onde minha mãe me deixava ir sozinha. Lá, conheci o homem com quem me casei, assim que saí do ensino médio. Era natural: já terminou a escola, está na hora de formar família. Eu tinha 18 anos. Ele era servente de pedreiro. Fomos morar em Ribeirão das Neves, que é bem distante de Belo Horizonte. Com 19, tive meu filho, Thiago. Assim que ele nasceu, abri mão do emprego fixo e passei a trabalhar como diarista, porque não tinha com quem deixar ele. Trabalhava dia sim, dia não. Assim, tinha flexibilidade para cuidar dele sem ficar tanto tempo ausente.

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Deixei de ser empregada doméstica quando uma das minhas patroas me inscreveu num concurso público. ‘Você gosta muito de ler, eu acho que você dá conta de passar’, disse. Foi em 2008. Passei para trabalhar como educadora infantil, no espaço de cuidado da creche.

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Aí consegui um tempo maior para estudar, porque o trabalho era de seis horas e meia e dentro da cidade. Então montamos um cursinho pré-vestibular para estudar entre amigos. Coordenei ele durante uns três anos e, com isso, todo mundo foi passando no vestibular e eu fui ficando para trás, porque, como coordenadora, tinha que manter o espaço. Andava quilômetros para abrir e fechar a escola, que funcionava num prédio do estado emprestado para nós. Mas foi um período muito rico. Muita gente da cidade passou por esse cursinho, nessa lógica cooperativa, auto-organizada, cada um tirava um tanto do bolso para garantir o estagiário para nos ajudar na formação, principalmente na aula de exatas, era complicado

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Meu filho tinha nove anos quando a gente fez o cursinho. A gente estudava à noite. Tinha vez que ele ia comigo, tinha vez que ele ficava em casa. Já nessa época, meu casamento estava com problemas. Meu marido saía de casa, voltava. Na época do pré-vestibular, ele ainda estava lá, mas já começava a dormir na mãe, até porque não concordava de eu estudar. Achava que era um absurdo eu, casada, abandonar a casa para ficar a maior parte do tempo na rua. Divórcio, na minha família, fui eu que inaugurei. Minha mãe ficou casada com o meu até ele morrer, 2012. Foram 48 anos juntos.

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A gente estudava entre colegas. Alguns conseguiram ir para universidade federal, e eu consegui bolsa do ProUni, de 100%, usando o sistema de cotas também. Passei na faculdade de Direito, no Instituto Metodista Isabela Hendrix. Só aos entrei aos 35 anos, já divorciada. Foi uma das primeiras turmas com alunos de cota, erámos 15 de 70 alunos. Foi uma turma bem ‘cotada’, no sentido de uma ação social, tinha até ex-presidiário.

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Nessa faculdade, eu conheci as Brigadas Populares, a organização onde milito hoje. Eu tinha duas professoras que eram ‘advogadas de sem-terra’ e com elas comecei a acompanhar melhor a luta fundiária, dos sem-teto, sem-terra. Inclusive numa entidade com a qual a gente cooperava, a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade. Passei a acompanhar principalmente mulheres que tinham filhos presos, a maioria passava do tempo de cumprimento de pena (lá dentro), outros desapareciam do presídio — muitos se suicidavam, e o estado não informavam às famílias. Então comecei a acompanhar esses casos de violência praticada pelo estado dentro do sistema prisional.

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Tudo isso me gabaritou para participar dos debates sobre questões raciais, de gênero, classe. Aí eu fui chamada pela prefeitura de Ribeirão das Neves para compor a Secretaria de Educação na assistência pedagógica aos professores para implementação lei que obriga a  inclusão da História da África e dos afrodescendentes e dos indígenas no currículo escolar. Ainda é um desafio.

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Por estar na secretaria, fui chamada depois para estar no gabinete da Áurea Carolina e da Cida Falabella, eleitas em 2016 (as vereadoras trabalhavam em com mandatos integrados, em único espaço, chamado de ‘gabinetona’). Fui indicada pela Bella Gonçalves (também vereadora). Tudo isso fez parte dessas mudanças que vivi de uns anos para cá. Eu indico muito isso a partir do ingresso na faculdade. Outros avanços se deram a partir disso. Na minha família, eu sou a única pessoa com curso superior.

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Quando me formei, eu virei a referência da família. Minha mãe ainda está viva, tenho tias bem mais velhas que a minha mãe, tem uma que tem quase 90 anos, mas eu virei quase que a matriarca. Porque é assim: sou a que sabe ler, que dá conta de ler uma intimação, de se posicionar em lugares, consegue ir à delegacia, resolver alguma coisa no judiciário. Então virei meio que a guardiã. Inclusive, isso é um peso gigantesco. Irmãs, primos, ficam na expectativa: ‘A Andreia vai vir e vai resolver.’ É uma cobrança muito grande. Por isso o entendimento também de que a gente tem que fazer isso como política pública. As pessoas terem acesso à informação, terem condições de ter acesso à Justiça, ao Direito é algo que tem que ser massivo, não pode ser uma ação individual. A família preta ainda está nesse lugar de não dar conta de ler fatura de cartão de crédito, não entender por que estão sendo cobradas algumas tarifas. Eu estou falando de uma população ainda analfabeta do ponto de vista de cidadania.

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Não voltei a me casar. A gente faz muito esses debates da solidão da mulher negra como fenômeno social, do quanto que essas mulheres são abandonadas até pelo seu posicionamento político, pela sua trajetória de vida. São mulheres que assumem muitas vezes o papel desse patriarca, desse patriarcado, de dar conta desses dois lados. E o quanto isso a isola. Ainda há um desejo desses homens de terem mulheres sob controle. Aí as mulheres brancas conseguem esse lugar, de quem precisa ser cuidada, de quem tem legitimidade e respeito. As mulheres pretas, não. É um corpo que ainda é considerado público, que qualquer um pode pegar, pelo qual os homens têm um desejo sexual, mas não têm o compromisso com a luta, a trajetória e os anseios dessas mulheres, e elas ficam sozinhas, do ponto de vista afetivo.

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Mas é sozinha desde a infância, da escola. Você é última a ser escolhida para a quadrilha, no teatro, é a última da fila, a professora só pega na mão da menina do cabelo liso. Essa solidão perpassa. E aí chega na solidão de estar aqui hoje, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, também com um número mínimo de mulheres negras, para disputar essa mesma narrativa antirracista. Então a solidão perpassa toda a trajetória de vida. E é político: você isola pra poder controlar.

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Em 2018, fui eleita deputada pelo estado de Minas Gerais. Sou parte da primeira leva de mulheres negras a ocupar esse cargo aqui. No país todo, assumiram cadeiras políticas que vêm com um discurso intolerante em relação às pautas que eles chamam de identitárias, à presença de mulheres, então os ataques começaram já na diplomação. Eu e uma parlamentar do PT trouxemos cartazes, eu denunciando a morte da Marielle, e ela, a prisão do ex-presidente Lula. Isso tudo gerou uma ação intolerante sobre os corpos das mulheres. A gente percebeu que, se fosse com um homem, não teriam reagido da forma que reagiram, de tomarem as placas, de quererem retirar isso da gente.

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Isso reverbera no cotidiano: há um certo isolamento, tem que estar o tempo todo tensionando para ser vista. Os homens geralmente ficam aglutinados em grupos, tem uma bancada grande militar hoje, que vem sempre com o discurso de ‘bandido bom é bandido morto’, falam sempre gesticulando para a gente, sabendo que o corpo que é atingido é o corpo negro, é o corpo da mulher. A mesa diretora ainda é composta majoritariamente por homens brancos, sempre os mais velhos da casa. Não é um racismo de um xingamento, de jogar uma banana pro jogador, mas sob a estrutura do lugar é uma estrutura impermeável. Você está aqui, mas não tem penetração.

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Há um incentivo quando você vê que os servidores, principalmente da limpeza, da segurança, os motoristas, olham para você e dizem: ‘Existe esperança, é possível que um dia isso venha mudar’. Mas, de fato, a gente percebe que, sozinhos, em número menor, o que a gente faz é muito pouco mesmo. Mas a gente tenta trazer pautas. Tem aqui uma discussão muito forte do 8 de março (Dia Internacional da Mulher), construindo ações. Mas aí você vê: majoritariamente as mulheres que vêm para essas reuniões são brancas, porque elas acontecem sempre no horário comercial, que quando as pretas estão trabalhando, limpando casa, ou no comércio. Então, mesmo quando a gente debate políticas para mulheres, as que vêm falar são brancas. E aí você fica: ‘E as mulheres pretas?’. Só na porta do presídio lá, dormindo a noite toda para visitar o filho no outro dia.

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Passei dois terços da vida limpando privada dos outros e impedida de usar elevador social, só de serviço. Nos dias que antecederam a posse como deputada estadual, fui informada de que tinha direito a elevador privativo na Assembleia. Isso me deixou pensativa. Ainda estou tentando fazer a digestão de algumas coisas. Porque eu entrei e a minha entrega real é mudar a estrutura onde eu estiver. E às vezes isso é abrir mão do que é considerado privilégio. E me ver nesse lugar me fez me perguntar: ‘Como é se construir sem se perder também a legitimidade de quem está aqui, de também ser parlamentar como os outros?’. Temos um elevador separado. E eu falei: ‘Poxa vida, gente, você não tem contato com o povo.’

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Por uma questão de segurança do parlamentar, e por essa situação em que estamos vivendo após a morte da Marielle, a gente nunca sabe se o cuidado com a segurança como está dado — que é o carro blindando, a cerca, o arame —, se isso é exagero, se isso também não é nos retirar desse lugar de povo, de cidadão. Você começa a ser uma entidade passando a receber o povo, você tem um lugar secreto, separado para transitar, é muito estranho isso, eu não vejo com naturalidade. Isso é importante. Por mais que eu faça uso desses equipamentos, desses instrumentos — porque, do mesmo jeito que Marielle, Freixo, Jean, que são do meu partido, vêm sofrendo violência por se posicionar como esquerda, como outra leitura de sociedade, nas redes sociais eu também sofro essa violência, então eu tenho que ter cuidado pra não sofrer isso cara a cara, presencialmente. Mas preciso manter esse lugar de estranhamento. Banheiro separado, elevador separado, carro blindado, essas coisas que colocam à sua disposição, você fala: não é isso. Porque eu não vou estar rompendo com essa lógica de privilégios se aceitar tudo. Mas como isso tem que ser construído não destruindo quem eu sou? Porque as empregadas domésticas continuam usando elevador de serviço, e são fuziladas se não usarem. E aqui na casa também tem elevador de serviço, então de vez em quando pegar o elevador de serviço e andar com o pessoal da limpeza é romper com essa coisa que está imposta. Quem sabe um dia vão entender que figura política é desde o porteiro até o parlamentar, todo mundo está fazendo política aqui dentro.

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Esperam sempre que nós, mulheres negras, sejamos uma fortaleza. A gente não tem tempo de adoecer, de ser pessimista. Tem uma cobrança. Mas esse espaço que as mulheres brancas e as psicólogas chamam de autoajuda, de autocuidado, não faz parte do povo negro, de procurar esses colos, terapia… Porque é muito caro, o acesso não é fácil. O que eu vejo que o povo negro faz, que eu fiz a vida inteira e deu certo são as magias: banho de sal grosso, varrer a casa com vassoura de capim. Ter esse cuidado que é ancestral, que é o trabalho espiritual, e isso indiscutivelmente mantém a gente em pé, porque não somos só nós, tem todos os ancestrais e as vozes deles caminhando conosco, caboclos, orixás. Talvez agora, com acesso e o privilégio de ter esse plano de saúde privado que a casa oferece, talvez eu adote outros cuidados. Até porque a cobrança também é muito grande. Nossa! De assumir a linguagem do branco, para se manter e ser ouvido. Então talvez a gente adote outras, de ter uma terapia. É algo que eu estou estudando.

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O sistema é tão perverso que escolhe alguns (negros) para subir. As histórias são idênticas entre mulheres que superaram a situação de opressão no privado, no subterrâneo. Se você fosse entrevistar a minha mãe, ia ver que ela reuniu lavadeiras para poder questionar coisas. A minha mãe me garantiu estar aqui. A da Marielle garantiu ela. Ele teve que ter uma mãe foda para ela ser foda. Eu tive que ter uma. E tenho que ser foda, para o meu filho também ser. Então, enfim, as histórias se repetem porque racismo é estruturante, ele repete o encarceramento em massa, a seleção de quem vai preso, ele repete mesmo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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