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Doca matou Ângela e abalou país: lembre caso que inspira “Coisa Mais Linda

Saiu no site Uol

Veja publicação original: Doca matou Ângela e abalou país: lembre caso que inspira “Coisa Mais Linda

Culpar a socialite Ângela Diniz pelo próprio assassinato, em 1976, foi a estratégia da defesa do autor do crime, Doca Street, companheiro de Ângela, para inocentá-lo. Na época, em pleno julgamento, Ângela foi chamada de “Vênus lasciva”. Provocadora e sensual, teria atiçado outros homens e mulheres mesmo estando em um relacionamento com Doca, o que o fez perder o brio.

Doca matou Ângela, em 31 de dezembro daquele ano, com quatro tiros. A tese da legítima defesa da honra foi aceita pelo juiz, que deu uma punição simbólica de dois anos com dispensa de cumprimento da pena. O playboy Doca saiu do tribunal pela porta da frente.

O enredo de um dos crimes mais emblemáticos do Brasil agora se repete na ficção. A segunda temporada da série brasileira “Coisa Mais Linda”, da Netflix —atenção, daqui para a frente há spoilers—, traz o julgamento do assassinato da personagem Lígia (Fernanda Vasconcellos), morta pelo ex-marido no último episódio da primeira temporada. As falas do réu, de familiares dele, de sua defesa e a decisão do juiz se assemelham ao caso de Doca e mostram um sistema judiciário que aceitou culpar mulheres por crimes cometidos contra elas. A Netflix afirma que a história de Lígia foi inspirada “naquelas que sofreram e sofrem diariamente com essa violência”. Relembre, abaixo, o caso Ângela Diniz.

De vítima a vagabunda O julgamento de Doca foi em 1979. Seu advogado era Evandro Lins e Silva, advogado de presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985) e ligado à área de direitos humanos. Lins e Silva foi quem montou a tese de legítima defesa da honra, que costumava ser bem aceita nos tribunais brasileiros na época.

“Existia a ideia de que o homem poderia lavar sua honra com sangue, e esse caso ficou muito marcado pela maneira como a tese foi construída. Ele [Lins e Silva] afirmou que foi homicídio, que o réu praticou o crime, mas que, naquela situação, um homem deveria defender a sua honra”, explica Maíra Zapater, professora de Direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e especialista em relações de gênero.

Ângela virou a “mulher fatal”, nas palavras do advogado, que disse na sustentação da defesa: “Esse é o exemplo dado para o homem se desesperar, para o homem ser levado, às vezes, à prática de atos em que ele não é idêntico a si mesmo, age contra a sua própria natureza. Senhores jurados, a mulher fatal encanta, seduz, domina, como foi o caso de Raul Fernando do Amaral Street [nome completo do réu].”.

O embasamento do advogado levou o juiz a decidir pela condenação e pena de dois anos de prisão, mas o réu seria beneficiado por um mecanismo chamado sursis, que extinguia a necessidade do cumprimento da pena. O crime causou uma comoção nacional. Era o casal perfeito: duas pessoas lindas, ricas e famosas que figuravam em colunas sociais. Reportagens da época mostram Doca saindo do tribunal ovacionado. Ele era parado nas ruas por pessoas pedindo autógrafos, uma vez que o julgamento o alçou à fama como o homem que matou por amar demais.

Ângela, em contrapartida, foi alvo de uma campanha difamatória e, na sociedade, acabou condenada pela própria morte, já que sua vida sexual foi exposta a tal ponto durante o julgamento que virou a “vagabunda”.

Em “Coisa Mais Linda”, Augusto (Gustavo Vaz) assassina Lígia na beira da praia, também no Réveillon, mas de 1960. Ela queria seguir a carreira de cantora no bar da amiga Malu (Maria Casadevall), mas é impedida pelo então marido. “Você realmente está me saindo uma bela de uma cantora. Uma bela de uma puta”, diz o personagem em determinada cena. Para seguir sua carreira, Lígia se separa de Augusto, que não aceita a decisão dela.

No julgamento da série, o fato de querer ser cantora e de preferir a carreira à família é utilizado para atacar a reputação de Lígia, colocada como uma mulher que não seguia as normas morais da época. Uma vagabunda, como Ângela. Assim como na vida real, Augusto é condenado, mas também não precisa cumprir sua pena em regime fechado e termina o julgamento sorrindo.

“Quem ama não mata”

Se em 1979 um grupo de pessoas defendia Doca em frente ao tribunal por representar a moral e os bons costumes, dois anos depois, o Brasil era outro. O primeiro veredito foi anulado a pedido do Ministério Público e, em 1981, montou-se um novo júri para avaliar o caso. Dessa vez, eram mulheres com faixas contra Doca que o receberam quando chegou para o segundo julgamento.

Foi por causa dos movimentos feministas e pelos direitos das mulheres que o caso foi retomado. Ainda em 1979, grupos feministas criaram a campanha “Quem Ama Não Mata”, que circulou o país e impactou diretamente na mentalidade vigente. A segunda condenação foi de 15 anos —- dos quais cumpriu três em regime fechado, dois no semi-aberto e, nos outros, conseguiu liberdade condicional. Doca já não era um justiceiro em nome da moral, mas o playboy que assassinou a companheira. “As feministas fizeram um bom trabalho”, disse Doca em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 2006, ano em que lançou o livro “Mea Culpa”, falando sobre o caso. Ele se casou novamente e continua vivo.

“A legítima defesa da honra nunca esteve no Código Penal, mas, até o segundo julgamento de Doca era plenamente reconhecido pelos tribunais. Essa pressão social, vinda principalmente das mulheres, provocou uma mudança de perspectiva e acabou marcando esse tipo de crime”, diz Maíra. “Hoje, acredito que essa tese [da defesa da honra] já não seja mais difundida. A própria criação da Lei do Feminicídio, em 2015, é um indicativo do reconhecimento da gravidade do crime.”.

Voltando para a série novamente, um dos momentos em que se faz uma referência mais clara a essa história é quando a personagem Malu dá entrevista para uma rádio falando sobre a amiga Lígia, já morta, dizendo que ela foi assassinada por querer seguir a própria vida, e não porque o marido a amava demais, a ponto de ter enlouquecido de paixão. “Se tem uma coisa que o amor não é, é violento. O amor não é morte”, diz a personagem vivida por Maria Casadevall.

 

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