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Aplicação da Lei 13.894/19 nos casos de violência doméstica e divórcio

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Veja publicação no site original:   Aplicação da Lei 13.894/19 nos casos de violência doméstica e divórcio

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Interpretação constitucional e dentro da convencionalidade pode garantir a aplicabilidade do dispositivo

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Por Marco Aurélio Souza Mendes

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Contextualizando o objeto e a importância da discussão

No dia 30 de outubro deste ano, foi publicada a Lei 13.894/19 e, dentre suas inúmeras alterações, o diploma normativo inseriu uma nova alínea no art. 53 do Código de Processo Civil quanto ao foro competente para as ações de divórcio ou separação judicial: o domicílio da vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).

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Fredie Didier Jr1. interpreta as disposições do art. 53 do CPC (antes da mudança legislativa) como um rol de foros sucessivos e subsidiários, tal qual colaciono em nota trecho de sua doutrina.

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Com a alteração recente apresentada nas linhas iniciais deste texto, e em face da apresentação do conteúdo doutrinário consolidado sobre a interpretação do dispositivo, indaga-se a respeito de qual deverá ser a diretriz hermenêutica dada à alínea “d”: subsidiária em face as outras alíneas do inciso I do art. 53 ou uma preferência opcional da vítima de violência em face das demais?

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A técnica legislativa adotada pela mudança em questão, principalmente pela posição topográfica em que fora inserida em nossa legislação processual, foi infeliz ao deixar brechas interpretativas como este questionamento proposto2. Entretanto, é possível garantir eficácia para uma norma tão importante como a trazida por esta mudança caso se realize uma interpretação convencional (em face dos Tratados e Convenções Internacionais de proteção à mulher) e conforme à Constituição de 1988.

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A interpretação convencional e constitucional da alínea “d” do inciso I do art. 53 do CPC

O Brasil ratificou em fevereiro de 1984 o texto da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher que fora promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979 (Resolução nº 34/180). Em 2002, o Brasil ainda retirou algumas reservas feitas na primeira ratificação, sendo que a Convenção está atualmente internalizada no nosso ordenamento através do Decreto nº 4377/20023.

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O art. 03º da Convenção possui uma amplíssima abrangência, mencionando que os Estados Partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.

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Perceba que a Convenção frisou que há uma importância nas medidas legislativas que o Estado parte deverá tomar para assegurar a proteção da mulher e a tentativa de assegurar o pleno exercício dos direitos humanos por esse grupo. Inegavelmente, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) surge com o afã de introduzir no arcabouço jurídico inúmeras ferramentas de guarida protetiva para a mulher.

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Também não podemos nos distanciar da Constituição. Além das normas internacionais, nossa Constituição traz inúmeros preceitos protetivos e de elevação da dignidade da mulher. Para o caso da proteção contra a violência, há disposição expressa no §8º do art. 226 da CF88.

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Observa-se que há um perfil criminológico cultural dos agressores, tendo em vista que a maior parte das agressões que chegam ao relato oficial são majoritariamente casos de agressões físicas, psíquicas ou sexuais entre relacionamentos em continuidade ou pretéritos4. Há uma importância criminológica na definição deste foro preferencial para a mulher.

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As lições do magistério de Mazzuoli apresentaram há alguns anos acepções sobre o chamado controle de convencionalidade, surgindo assim o emblemático debate entre a tese da constitucionalidade e supralegalidade5. A ideia de convencionalidade não deve residir apenas no plano abstrato ou como sistema de controle pelos Tribunais. Deve-se existir uma cultura da convencionalidade na atividade hermenêutica e na aplicação do Direito pelo seu operador. Sendo assim, propõe-se um filtro de compatibilidade hermenêutica com a aplicabilidade do novo dispositivo e a Convenção Internacional citada.

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É necessário adotar uma postura de análise global e sistemática do dispositivo, apoiando-se em fundamentos constitucionais e convencionais, para dar guarida de aplicabilidade prática à alteração legislativa. Mazzuoli (2009, p.130) esclarece que a falta de compatibilização do direito infraconstitucional com os direitos previstos nos tratados de que o Brasil é parte invalida a produção normativa doméstica, fazendo-a cessar de operar no mundo jurídico. Para o citado autor, a compatibilidade da norma com os direitos humanos é o que encampa a sobrevivência da lei na pós-modernidade.

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Solução para a excepcional competência territorial especial protetiva

O Superior Tribunal de Justiça já adotou solução semelhante em um caso julgado em 2014. No REsp 875.612/MG, o Ministro Raul Araújo, ainda sob o Código de 1973, definiu que no confronto de normas protetivas invocadas pelas partes (regra do art. 98 do CPC73), deve prevalecer a regra que privilegia o incapaz, visto ele ser a parte de maior fragilidade no processo.

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No caso de violência doméstica, a incapacidade não está sendo relacionada com o sentido de que a mulher possui um status de inferioridade. Na realidade, a incapacidade é ferramenta para garantir uma maior proteção normativa de uma parte já fragilizada pela relação de violência.

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Interessante ainda mencionar que em recente julgado no CC 160.329/MG, a Ministra Nancy Andrighi esclareceu em nova oportunidade o caráter relativo da competência territorial protetiva do incapaz, agora no art. 50 do atual CPC. No caso julgado, havia um conflito entre a competência territorial especial (relativa) com uma competência funcional por prevenção (absoluta), o que lhe fez decidir que a incapacidade superveniente de uma das partes, após a decretação do divórcio, não tem o condão de alterar a competência funcional do juízo prevento.

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Tratando-se dos casos expostos nas alíneas do inciso I do art. 53 do CPC, quando analisamos um suposto conflito de competência entre suas hipóteses, temos tipos de competência territorial especial, o que permite que façamos uma análise de compatibilização de conflitos hipotéticos sem violar pressupostos processuais basilares, como os que foram trabalhados no Conflito de Competência anteriormente citado.

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Conclusão: a dupla análise preferencial

Mediante o exposto, fica clarividente que após a alteração legislativa recente, é necessário que se faça um novo juízo de interpretação no art. 53 do CPC. A matéria foi tratada sob um prisma constitucional e convencional para apresentar irrefutáveis argumentos de uma sobremaneira importância para alteração legislativa, o que urge uma metodologia de operação que não lhe faça ser letra morta, nem usurpe construções tradicionais da processualística civil.

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Sendo assim, propõe-se que a partir da entrada em vigor da Lei 13.894/19, deve-se operar da seguinte maneira com o inciso I do art. 53 do CPC:

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(i) Em primeiro lugar, é verificada se a questão base do divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável está fundamentada em caso de violência doméstica ou familiar. Caso seja positivo, a competência poderá ser firmada de maneira inicial no foro de domicílio da vítima. Nesse caso, ainda que a vítima seja o guardião do incapaz (exemplo: a mãe está com a guarda de filho ou filha), haverá um duplo juízo protetivo entre domicílio do incapaz ou da vítima da violência, sendo que quem decidirá qual é o foro competente será a mulher ao ajuizar sua ação. Perceba que a vítima “poderá”, ou seja, não se impõe isto como uma competência absoluta. Na verdade, o que esta interpretação propõe é que a mulher possa exercer o juízo de escolha inicial neste caso, ainda que seja guardiã do incapaz ou que mesmo sem incapaz nenhuma das partes residam no último domicílio do casal.

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(ii) Caso não se trate de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável fundada em caso de violência doméstica ou familiar, parte-se para a postura de interpretação da doutrina tradicional do processo civil, seguindo a ordem de subsidiariedade entre as três alíneas do inciso I do art. 53: foro do domicílio do incapaz, foro do último domicílio do casal se um deles ainda residir naquele ou foro do domicílio do réu na ausência do anterior.

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Em linhas gerais, espera-se que a nova norma protetiva não seja ineficaz. Pelo contrário, almeja-se que ela traga resultados eficazes e de demonstração prática na proteção da mulher contra atos de violência. Com uma postura fundamentada, a sugestão para uma hermenêutica convencional parece ser um caminho acertado em todos os sentidos.

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Referências bibliográficas

COSTA, Dirceu Lopes da. Os aspectos da criminologia sob a ótica da Lei 11.340/06 e do feminicídio. 2018. Disponível em: <https://direitodiario.com.br/os-aspectos-da-criminologia-sob-a-otica-da-lei-11-340-06-e-do-feminicidio/>. Acesso em: 06 nov. 2019.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 21ª ed., 2019.

MAZZUOLI, Vicente. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista Direito do Estado (RDE), Brasília, v. 46, n. 181, p.113-133, jun. 2009. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/194897>. Acesso em: 05 nov. 2019.

ROVER, Tadeu. Sancionada lei que prioriza divórcio em caso de violência doméstica. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-out-30/sancionada-lei-prioriza-divorcio-violencia-domestica>. Acesso em: 06 nov. 2019.

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1 O art. 53, I, CPC, estabelece o foro para as causas que envolvam casa mento e união estável. Determina-se o foro de domicílio do guardião de filho incapaz, para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento, reconhecimento ou dissolução de união estável (art. 53, I, “a”); caso não haja filho incapaz, a competência será do foro de último domicílio do casal (art. 53, 1, “b”); se nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal, será competente o foro de domicílio do réu (art. 53,1, “c”). Há foros subsidiários; não são foros concorrentes: o primeiro é preferencial ao segundo, que é preferencial ao terceiro (DIDIER JR., Fredie, 2019, p. 229).

2 Destaque de semelhante importância foi realizado nos comentários da alteração legislativa publicado pelo Juiz Federal Márcio Cavalcante no blog Dizer o Direito. Para maior aprofundamento, ver: https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/lei-138942019-altera-lei-maria-da-penha.html

4 Em artigo consultado, por exemplo, o DF apresentava uma margem de reincidência dos agressores de 2017 para 2018 de 8,8% a mais que o período anterior. Para maiores detalhes, ver: https://direitodiario.com.br/os-aspectos-da-criminologia-sob-a-otica-da-lei-11-340-06-e-do-feminicidio/.

5 Para maior aprofundamento, ler o voto-vista do Ministro Gilmar Mendes no RE 466.343-1/SP.

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