HOME

Home

2019: Estudante é queimada viva por denunciar professor por assédio sexual

Saiu no site EXPRESSO – PORTUGAL

 

Veja publicação original:    2019: Estudante é queimada viva por denunciar professor por assédio sexual

.

Uma estudante é assediada sexualmente por um professor e apresenta queixa. Na polícia não só desdenham do relato, como o filmam e partilham com os media. Dias mais tarde, totalmente exposta, a rapariga é morta dentro da sua própria escola por um grupo de homens que a regam com querosene e lhe ateiam fogo. O caso está a chocar o Bangladesh e traz mais uma vez a público as atrozes formas de violência que as mulheres ainda enfrentam em pleno século XXI quando ousam pedir justiça

.

Chamava-se Nusrat Jahan Rafi e tinha 19 anos. Fazia parte da reduzida fatia de miúdas que tinha a possibilidade de seguir os estudos até tão tarde, a maioria delas já estão casadas por esta altura. Mas como tantas e tantas jovens da sua idade a residir no Bangladesh, Nusrat sofria situações de assédio sexual dentro da madrassa. A gota de água foi quando um professor a fechou numa sala e lhe começou a tocar de forma inapropriada. Em pânico, a jovem fugiu e decidiu contar à família o que tinha acontecido. Ao contrário de muitas miúdas do seu país, contou com o apoio deles para apresentar queixa às autoridades locais. Todos estavam de acordo: aquele professor deveria ser punido. O que ele estava a fazer repetidamente com as alunas daquela escola, utilizando a superioridade da hierarquia inerente ao seu cargo, era um crime inconcebível.

.

Nusrat não foi recebida com bons modos pela polícia, revela um artigo da BBC que conta todos os pormenores grotescos desta história. Não só desdenharam do relato considerando a situação “de pouca importância”, como a tentaram culpabilizar a ela pela atitude do professor. Pior, um dos polícias decidiu filmar o depoimento com o telemóvel e sempre que a rapariga tentava esconder a cara porque não queria aparecer ele obrigava-a a ter o rosto à mostra. Escusado será dizer que o vídeo acabou por se tornar público rapidamente, e quando o professor foi chamado à esquadra, um grupo de estudantes do sexo masculino começou com uma onda de protestos públicos, além de variadas formas de intimidação direcionadas à rapariga. A família ficou preocupada e Nusrat não voltou a andar sozinha na rua. No dia em que tinha exames finais na escola decidiu voltar ao estabelecimento de ensino, acompanhada pelo seu irmão. Este foi proibido de entrar, já que não era aluno. O que aconteceu depois foi um cenário de horror num local que deveria ser de segurança máxima para qualquer criança ou adolescente.

.

Nusrat foi basicamente encurralada por um grupo de homens vestidos com burqas para que esta não os reconhecesse, que a obrigaram, sob ameaça de morte, a retirar as queixas contra o professor. A jovem recusou-se, alegando que merecia que justiça fosse feita. O grupo agarrou-a e regou-a com querosene, tendo o cuidado de não o fazer na cabeça. Queriam que parecesse um suicídio. Atearam-lhe fogo e fugiram. Nusrat foi encontrada pouco depois com 80% do corpo queimado, mas ainda com vida. Sobreviveu umas horas, suficientes para fazer um débil depoimento onde contou o que pôde sobre tudo isto, indicando os nomes de algumas pessoas que reconheceu pela voz. “Aquele professor tocou-me. Eu vou lutar contra esse crime até ao meu último suspiro”, foram algumas das últimas palavras gravadas pelo irmão de Nusrat antes de esta perder o sentidos, e acabar por falecer mais tarde. Isto não é um filme de terror, é a vida real em 2019. Infelizmente, a vida real de demasiadas meninas e mulheres mundo fora.

.

Vale mesmo a pena pensar que decidir reportar uma situação de assédio ou de abuso sexual num país como o Bangladesh tem consequências graves para a vítima que decide quebrar o silêncio e desafiar o poder masculino. Não só é frequentemente desacreditada pelas autoridades e comunidade local, como se arrisca seriamente a ser repudiada pela própria família, cujos membros encaram tais atos como uma forma de desonra, já que a menina ou a mulher em causa fica “impura”. Ficar “impura” pode significar coisas como ser expulsa de casa ou uma permanência pavorosa dentro dela, com situações de exclusão tão macabras como a menina ou a mulher ser privada de jantar na mesma mesa que a família, por exemplo. Encontrar um homem que consigo queira casar depois disto – e já se sabe que casar é a única garantia de subsistência de tantas mulheres no Bangladesh – torna-se pouco provável, e a mendicidade pode ser o seu destino. Se a mulher já for casada, não esquecer que em muitos caso de violação esta acaba por ser acusada de ter tido relações sexuais com outro homem. Ou seja, a interpretação é que a mulher violada é simplesmente uma adúltera, e ter sido alvo de um crime que se traduz em sexo não consentido não importa para nada.

.

Quem realmente deveria ser castigado nestas situações escapa quase sempre impune nesta equação. No caso de Nusrat, a família apoiou-a, o que também nos mostra como, pouco a pouco, e embora numa escala bastante pequena, há mentalidades que estão a mudar em países como o Bangladesh. Mas a jovem estudante levou com todas as outras consequências que a maioria destas vítimas também enfrenta: o julgamento público dos demais, o assédio constante na rua e online, as perseguições, as ameaças, a violência verbal e física e, por fim, a morte. Sim, a morte continua a ser uma consequência bastante comum para meninas e mulheres mundo fora que denunciam abusos sexuais.

.

Não nos podemos esquecer que o Bangladesh continua a ser um país altamente perigoso para se nascer com o sexo feminino. Basta pensarmos em dados de organizações como a ONU ou a OMS, que nos mostram que este é o quarto país do mundo onde existem mais casos de casamentos forçados de menores, com 59% das miúdas a serem obrigadas a casar antes dos 18 anos e quase 25% forçadas a fazê-lo antes dos 15. A isto soma-se outra realidade que está totalmente interligada: cerca de 70% da população feminina daquele país é vítima de violência doméstica. E a percentagem de abuso sexual de mulheres dentro do próprio casamento ronda os 40%. Dados da Odhikar, um associação de proteção de Direitos Humanos do Bangladesh, mostram que em 2018 foram registados 635 casos de violação, 176 mulheres adultas, 457 crianças; 89 destas mulheres e 88 destas crianças foram violadas em grupos por mais do que um agressor. Mas isto deverá ser apenas a ponta do icebergue, entendam. Os casos que ficam silenciados, que nunca chegam nem a associações nem às autoridades, são uma enormidade atroz.

.

Quando o tema é a violência sobre as mulheres, a justiça pouco ou nada faz, com as autoridades competentes a serem as primeiras a desdenharem destes casos. Em vez de porem em marcha investigações e ações concretas de proteção às vítimas dado o conhecimento geral sobre as consequências de tal contexto, não, são os primeiros a considerarem as vítimas culpadas. Os depoimentos de quem quer apresentar queixa conseguem ser verdadeiros momentos vexatórios para boa parte das meninas e mulheres que o fazem. Mesmo com mudanças à lei nestas matérias – que, sim, têm acontecido nos últimos anos – as mentalidades misóginas continuam a falar mais alto dentro de instituições como a polícia ou até mesmo os próprios tribunais.

.

Aliás, das muitas centenas de casos de violência sexual reportados à polícia nos últimos 5 anos, estima-se que apenas 3% dos agressores tenham sido condenados em Tribunal. E não são raras as represálias e sede de vingança daqueles que ficam em liberdade, mas isso parece ter pouca importância. Afinal, quanto vale a vida feminina num país que ainda vê as mulheres e as meninas como cidadãs de categoria menor?

.

Não é portanto de estranhar que tantas e tantas vítimas de violência prefiram remeter-se ao silêncio. Carregando consigo situações traumáticas que as marcam para a vida toda, mas com as quais têm de aprender a sobreviver porque denunciar os agressores ainda pode ser sinónimo de uma violência consequente ainda pior. Mesmo por parte daqueles que as deviam amar. Tudo isto funciona como uma abjeta bola de neve: o silêncio das vítimas e a inação das autoridades ajuda a fortalecer a normalização de tais atos e os agressores vão ficando à solta, sentindo-se totalmente impunes e, consequentemente, no direito de repetirem tais atos. É urgente a educação desde tenra idade para contrariar o status quo desequilibrado que está totalmente enraizado. Até porque invariavelmente quem agride e sai impune repete o ato vezes sem conta sobre diferentes vítimas. E são sempre estas que sofrem todas estas consequências. Tudo isto é tão perverso e injusto que me chega a dar náuseas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

HOME