HOME

Home

“Virei influenciadora lutando para combater o preconceito contra o islamismo”

Saiu na MARIE CLAIRE

Veja a Publicação Original

Quando meu pai e minha mãe se conheceram, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, nenhum dos dois tinha hábitos religiosos. Libanês, ele havia nascido muçulmano, mas nunca tinha sido praticante da doutrina. Minha mãe, por sua vez, acreditava em Deus, mas não frequentava igreja alguma. Ela era gerente do restaurante de comida italiana (!) que ele havia montado desde que, depois de uma volta ao mundo, se estabeleceu no Brasil. Curiosa, quando começaram a namorar, ela se interessou pelo islamismo, começou a estudar o tema e se converteu. Não por imposição, até porque homens muçulmanos podem se casar com cristãs e judias. Foi iniciativa dela mesmo, que sentia falta de uma orientação religiosa. Um ou dois anos depois, minha mãe engravidou de mim. Nasci, então, em uma família praticante, moldada pelos preceitos do islamismo.

Aos 5 anos, obedecendo meu pai, comecei a frequentar a escola de véu. Pura ignorância. Só depois da primeira menstruação é que as mulheres precisam usar o hijab quando saem de casa. Até nos lares mais ortodoxos é assim. Mas, depois de me apresentar para meus coleguinhas com o cabelo coberto, achei que iria chamar atenção se aparecesse de outro jeito e, mesmo com minha mãe insistindo para que eu o tirasse, segui daquela forma. Também porque, para mim, aquilo era a coisa mais natural do mundo. Morava em São Bernardo, onde vive uma grande comunidade islâmica, e meu colégio, apesar de ter alunos de outras religiões, era muçulmano. Tudo que me cercava estava ligado ao islã.

“A responsável pelo RH queria saber por que eu usava véu, se minha mãe também usava, e várias outras coisas que, a meu entender, não tinham nada a ver com a vaga”

Só quando entrei para a faculdade (de nutrição) entendi que ocupava um lugar diferente do da maioria. Em todo o câmpus, além de mim, só havia uma mulher que usava o hijab. No começo, ninguém falava comigo e, muito tímida, eu também não tentava me relacionar. Com o tempo, porém, fiz amizades e me integrei ao grupo. A dificuldade real começou depois que me formei e comecei a procurar emprego. A primeira oportunidade surgiu no hospital em que já estagiava. Havia entrado lá via universidade e minha chefe, que gostava bastante do meu trabalho, avisou que me contratariam. Segundo ela, já estava tudo certo, eu só precisava passar pelo processo burocrático no departamento de RH. Superanimada, cheguei à entrevista cheia de expectativa. A responsável então começou a me questionar. Queria saber por que é que eu usava lenço, se minha mãe também usava, e várias coisas que, a meu entender, não tinham nada a ver com a vaga. A resposta viria no dia seguinte, mas uma semana se passou sem que eu recebesse qualquer satisfação. Mandei então um e-mail para a nutricionista-chefe explicando o que tinha acontecido. Dias depois, ela me respondeu pedindo desculpas. Disseram a ela que eu era muito séria para o cargo. Fiquei triste, decepcionada. Mas tinha a vida toda pela frente e, apesar de saber que estava sendo vítima de preconceito, não haveria de desanimar no primeiro ‘não’. Minhas amigas todas estavam conseguindo boas colocações profissionais, minha hora certamente chegaria.

Mariam Chami  (Foto: Reprodução / Instagram)
Mariam Chami (Foto: Reprodução / Instagram)

Outra vez, já tinha assinado o contrato em uma rede de padarias, quando fui conhecer o dono da empresa. Na apresentação, ele me estendeu a mão. Acontece que nós, muçulmanos, não podemos ter contato físico com o sexo oposto, e expliquei que não poderia cumprimentá-lo por questão de respeito. “Você não vai dar certo aqui”, disse ele. Fiquei totalmente sem reação. O cara então apontou para os homens que trabalhavam na cozinha. “Eles não vão saber lidar com uma pessoa como você.” Uma pessoa como você… O que ele queria dizer com aquilo? Minha função ali seria exclusivamente com os alimentos, não precisava ficar abraçando, beijando, pegando nos colegas. Saindo de lá, corri para o carro e assim que fechei a porta comecei a chorar, chorar, chorar. Dirigi aos prantos até a minha casa. Estava humilhada, nunca havia sido tratada daquela forma.

Cansada de tantos ‘nãos’, abri com duas amigas uma empresa de controle de qualidade para atender restaurantes. Esse foi meu primeiro emprego. Pouco tempo depois, já estava trabalhando paralelamente no restaurante dos meus pais, em Santo André, e, como o negócio não ia lá muito bem, saí da sociedade. Naquela época, já falava muito sobre o islamismo. No caixa do mercado, na rua, muita gente me questionava sobre a religião. Até que uma amiga muçulmana, que não sabia praticamente nada sobre nossas práticas, quis aprender mais comigo e eu montei um grupo no WhatsApp com várias outras meninas curiosas para conhecer o islã. A experiência foi tão bacana que estendi o grupo para o Facebook. Me espantei quando percebi que várias pessoas não muçulmanas começaram a se interessar pelo tema. Passei então a publicar vídeos com a ajuda de um líder religioso próximo e, com o tempo, ganhei alguns seguidores no Instagram, que até então era restrito a família e amigos.

Na época, meu assunto principal na rede era beleza e moda. Fazia tutoriais de maquiagem, postava meus looks e algumas mensagens positivas. Os anos se passaram, eu me casei e vim morar em Florianópolis. Até que, em 1º de fevereiro de 2018, Dia Mundial do Hijab, fiz meu primeiro vídeo engraçado. Era um diálogo entre mim e um cara que questionava o fato de eu estar de véu em pleno verão. O pessoal gostou e, vez ou outra, fazia nova gravação. Nunca prestei muita atenção em números, mas notei que a quantidade de mensagem que eu recebia estava crescendo e, cada vez mais, era solicitada a falar sobre o islamismo.

“Quando eu era pequena, meu pai sonhou com Deus dizendo a ele que eu divulgaria a religião para o mundo”

Demorei um ano para chegar a 10 mil seguidores. Foi quando criei a Jenifer, uma personagem preconceituosa, ignorante, que não sabe nada sobre religião, com quem contraceno. Sem nem perceber, vários vídeos meus começaram a viralizar e meu público começou a crescer ainda mais. Nessa época, lembrei de uma história que meu pai gostava de contar. Quando era pequena, ele teve um sonho em que Deus dizia a ele que eu divulgaria a religião para o mundo. Tem lugar melhor de fazer do que na internet? Comecei então a usar as redes sociais com esse propósito. Engajada, passei a dominar as ferramentas do Instagram. Sei que, em janeiro do ano passado, tinha 20 mil seguidores e, em dezembro, mais de 300 mil no @MariamChami_.

Meu objetivo nunca foi converter ninguém, mas mostrar que somos iguais a todo mundo. A gente estuda, come, toma banho pelado… E acabar com o preconceito que sofremos. Por que não se questiona o cara na Paulista, naquele sol, com terno, gravata, sapato fechado? Ninguém diz: ‘Que absurdo essa empresa obrigá-lo a vestir essas roupas nesse calor’. Se o que ele usa é determinado por seu empregador, não tem problema; quando é a fé da pessoa, tá errado. Se um muçulmano agride alguém, vai aparecer no jornal: ‘Muçulmano ataca não sei quem’. Se for um cristão, um judeu ou uma pessoa de qualquer religião, aparece: ‘Homem ataca não sei quem’.

Ouço críticas de mulheres que se dizem feministas. Mas, pelo que eu entendo, o feminismo prega que as mulheres devem ser o que elas quiserem. Essa coisa da mutilação do clitóris, por exemplo, de que muito se fala, não é islâmica, é cultural de alguns países africanos. Pode ser que aconteça com muçulmanas que moram em lugares com aquela determinada tradição, mas o islamismo não prega isso. Ao contrário. Tem uma passagem, um dito do profeta, que diz que, numa relação sexual, o homem não pode se satisfazer se a mulher não o fizer antes. É fundamental na religião o marido dar prazer para a esposa também.

Mariam Chami  (Foto: Reprodução / Instagram)
Mariam Chami (Foto: Reprodução / Instagram)

Hoje, apenas 10% do meu público é de muçulmanos. A grande maioria é de curiosos, e é com essa gente mesmo que quero falar. Porque ali consigo mostrar que, mesmo usando looks que não mostram muito as formas do corpo, posso vestir tendências e ter informação de moda. Apesar de a maquiagem não ser algo recomendável, posso fazer uso dela. Porque meu objetivo não é chamar atenção, e o islamismo diz assim: ‘Nossas ações são baseadas nas nossas intenções’.

Todo mundo se apega ao que não pode no islamismo, mas a gente pode muito mais coisas do que não pode. No cristianismo também não pode haver sexo antes do casamento. Não podemos comer carne de porco, por exemplo, mas os judeus podem? Matar e roubar é proibido, mas isso é legal em algum lugar? Existem várias mulheres que não usam véu ou que bebem, mas, como já disse, cada um conhece sua intenção e o livre-arbítrio existe para isso. Ninguém é 100% nada. Prefiro então me entender com Deus e com minhas precariedades do que com quem só quer apontar o dedo contra meu povo.”

Veja a Matéria completa Aqui!

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

HOME