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Uma mulher no meu caminho

Saiu no O GLOBO

São exatos dez minutos de caminhada. Em tempos normais, saio de casa às 8h17, para ter tempo de esperar o elevador, dar bom dia ao porteiro e aguardar o sinal da Jardim Botânico com a Maria Angélica.

O clube está a 600 metros de casa. Desde outubro saio às 8h16, acrescentei um minuto ao trajeto. É o tempo de medir a temperatura na entrada, assim como desinfetar as mãos com álcool gel.

Nado entre 8h30 e 9h15, todos os dias. Mil e oitocentos metros. Chego em casa exatamente às 9h30, já contando o tempo de me secar, guardar a toalha e seguir pelo mesmo caminho pelo qual cheguei. Às 10h estou pronto para começar a trabalhar. Termino às 20h. Durmo cedo, para não perder a hora no dia seguinte.

Hoje, vá saber por que, foi diferente.

Enquanto passava por aqueles predinhos de três andares em frente ao Parque Lage, um carro parou. Saiu, pela porta de trás, uma mulher, de vestido preto e salto alto. Maquiada. Trinta ou quarenta. Talvez cinquenta. Sem relógio.

De longe, a primeira coisa que me ocorreu é que estava voltando de uma festa. Que irresponsável! Nestes tempos de pandemia, está contribuindo para espalhar o vírus pela cidade. Não à toa estamos como estamos. Deveria ter a consciência mais aprumada, tem idade suficiente para não ceder a impulsos juvenis. Segui resmungando, sem perder o ritmo.

Ela me olhou sem culpa, sorriu sem notar a reprovação e fez um caminho sinuoso até uma orquídea pendurada na árvore, que ajeitou com graça e cuidado. Depois seguiu, com passos leves e despreocupados, rumo à sua casa.

A minha indignação cívica foi sumindo, sumindo, até ser trocada por lembranças enevoadas: como eram as festas de onde se sai de manhã? Fui a muitas, mas faz tempo, e tanto isolamento me fez perder algumas memórias. Talvez ela não estivesse voltando de uma festa, talvez tenha sido apenas um pequeno encontro entre amigos. Menos mal, pensei, quase perdoando o pecado capital destes dias. Eram boas as reuniões de amigos, era bom se perder nos assuntos da noite, nas conversas que só acontecem na madrugada. Era bom esquecer a hora e, de repente, se dar conta de que já estava nascendo o dia. Era boa a vida assim, sem horários, sem preocupações, com tempo, com amigos. Disso ainda me lembro, mesmo quando não quero.

Talvez ela tenha conhecido alguém no mundo virtual e, cansada da solidão da longa quarentena, tenha arriscado um encontro real. Talvez tenha sido bom. Talvez a noite tenha sido longa e o dia tenha nascido feliz, como são felizes todos os dias depois das noites longas. Há coisas que, mesmo com o tempo, não se esquece.

Envolvido em pensamentos e lembranças, desses que a quarentena não conseguiu levar, quase passei a entrada do clube, quase cheguei atrasado na aula. Quase. Mil e oitocentos metros. Voltei pelo mesmo caminho. Às 9h30 — exatamente — cheguei em casa. Às 10h — em ponto — estava pronto para escrever esta coluna. Pensei em lamentar o carnaval que não vai acontecer, em reclamar do atraso das vacinas, em me indignar com a tragédia nos hospitais de Manaus.

Mas, vá saber por que, o passo leve e despreocupado daquela mulher, no seu caminho sinuoso, não me sai da memória.

Veja a Matéria Completa Aqui!

 

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