HOME

Home

Um fantasma chamado relacionamento abusivo

Saiu no site DOC

 

Veja publicação original: Um fantasma chamado relacionamento abusivo

.

Conheça histórias de mulheres que viveram esse tipo de violência e saiba como identificar e denunciar um abusador

.

Por Fernanda Testa e Francine Micheli

.

“Ele era um príncipe no início”. É assim que a vendedora Marina Zunfrilli, 31 anos, descreve o comportamento de um ex companheiro no início de um relacionamento que durou pouco mais de um ano, mas deixou inúmeras marcas. Vítima de um relacionamento abusivo, Marina relata as dificuldades que teve desde admitir que vivia uma situação desconfortável a dois até ter a coragem de denunciar o parceiro à polícia.

.

“Conheci meu abusador pela internet. Tínhamos amigos em comum, trocamos a trocar mensagens pelas redes sociais e depois por telefone. Mais ou menos um mês depois disso, nos encontramos pessoalmente e logo começamos a namorar. Ele era sempre muito agradável e cordial, era um príncipe no início”, conta.

.

Aos poucos, no entanto, Marina começou a notar uma mudança sutil no comportamento do parceiro. Ele, que antes incentivava a namorada a sair com amigas, receber amigos em casa – hábito que a vendedora tinha antes de conhecê-lo – passou a agir de forma diferente.

.

“Para tudo que íamos fazer, ele me convencia de que estava certo e eu errada. Era exaustivo. Meus argumentos nunca eram suficientes. Demorei para perceber que ele era uma pessoa manipuladora. Chegamos a um ponto em que eu não tinha mais opinião dentro do relacionamento”, afirma.

.

Aos poucos, alguns amigos começaram a se afastar do casal. De acordo com Marina, a partir daí a pressão psicológica que o ex exercia só aumentou. “Ele fazia questão de dizer o quanto ele era maravilhoso e eu não. O quanto eu tinha conseguido alguém bacana, apesar dos meus defeitos. Eu me sentia muito fraca, ele reforçava meus pontos fracos e me convencia de que eu era inferior”.

.

Além de brigas e chantagens constantes, a vendedora conta que o ex a manipulava de diversas formas. “Se insinuava para outras mulheres e fazia questão de que eu soubesse, me traía. Eu via, ninguém precisava me mostrar. Mesmo assim ele me convencia de que eu estava equivocada. Eu me tornei uma pessoa insegura e dependente daquilo”, recorda.

.

.

TERAPIA  

Marina conta que recorreu à terapia na época, mas que por medo escondeu do parceiro o real motivo. “Perdi o controle emocional. Já não dormia direito. Na minha cabeça, como ele nunca tinha me batido, eu achava que não era nada grave. Que era só briga. Que eu o havia deixado nervoso. Eu ainda me culpava”, diz.

.

A vendedora, que a esta altura já havia se isolado dos amigos e não se abria com a família, afirma que a terapia foi um processo importante para fortalecê-la e encorajá-la a tomar alguma atitude.

.

.

O ESTOPIM  

.

Depois de mais um dos incontáveis términos do casal, Marina relata que passou pela pior briga do relacionamento. “Ele começou a me humilhar falando sobre nossas relações sexuais, me comparou com as outras ex, disse que eu era a pior namorada que ele teve e começou a recolher, na minha casa, tudo o que ele havia me dado de presente até então”, conta.

.

De acordo com a vendedora, o ex a fez entregar até a roupa que ela vestia naquele dia. “Ele não gostava muito do meu estilo quando começamos a namorar e me presenteou com muitas roupas. Eu disse: desde que você vá embora, pode levar tudo. Quando ele percebeu que eu não ia voltar atrás, se irritou. Pegou uma tesoura e começou a cortar todas as outras roupas que eu ainda tinha no armário. Foi quando ele foi até a cozinha e voltou com uma faca”, lembra.

.

Depois de encurralar a vendedora e ameaçá-la, o abusador deixou a casa. No entanto, os próximos dias foram de pânico na vida de Marina. O ex começou a prossegui-la, a ponto de ela ser obrigada a pedir afastamento no trabalho e voltar a morar temporariamente na casa dos pais.

.

Quando Marina voltou a trabalhar, o ex passou a persegui-la novamente. Foi aí que ela finalmente resolveu ir à delegacia. “Fiz o primeiro boletim de ocorrência. Não foi suficiente. Ele falou que eu podia ir atrás dos meus direitos, da lei Maria da Penha, que eu podia chamar a polícia e não ia adiantar. Deixou bem claro que ele não ia me dar sossego”.

.

Foi preciso um segundo boletim de ocorrência e a constatação na delegacia de que outras seis vítimas já haviam registrado abusos contra o ex de Marina para que as perseguições diminuíssem. A vendedora afirma que levou um ano para que pudesse se recuperar totalmente do trauma.

.

Hoje, Marina está em outro relacionamento. Está grávida, inclusive. “Foi difícil acreditar de novo nas pessoas, em mim mesma. Mas acho que há males que vêm para bem. Eu me tornei outra mulher e tenho outra visão hoje. Olho com carinho para mulheres que passam o mesmo que passei, até porque eu nunca imaginava que poderia acontecer comigo”, conclui.

.

.

QUANDO O ABUSO ULTRAPASSA FRONTEIRAS  

.

A história da professora de filosofia e enfermeira Joice Zaparolli, 35 anos, é semelhante. O detalhe é que ela foi vítima de abuso do outro lado do mundo. Joice conheceu o ex-marido, um finlandês, no Brasil. Namoraram, casaram-se e ficaram no país por três anos e meio, até que se mudaram para a Finlândia, em 2011.

.

Joice relata que levou um tempo até perceber que havia algo diferente no comportamento do então marido. “Quando morávamos no Brasil já havia alguns sinais, mas estamos tão acostumado com certos tipos de comportamento machista e abusivo que a gente pensa: tá tudo bem, não é nada demais. Percebi mesmo quando nos mudamos para a Finlândia”, diz.

.

Quando acompanhou o ex rumo à Finlândia, Joice não falava nada da língua. Ela conta que dependia dele para fazer tudo no país e se recorda de uma das primeiras situações em que o parceiro foi agressivo e a humilhou.

.

“Fomos a um restaurante. Pedi ajuda para escolher um prato, porque o cardápio estava em finlandês. Pedi para ele traduzir, mas ele ficou muito nervoso e disse que, se eu quisesse aprender uma língua, eu deveria andar com um dicionário. Não traduziu nada para mim, escolhi algo aleatório e veio uma sopa de tomate horrível”, conta.

.

Com a justificativa de que a mulher deveria se dedicar a aprender a língua, o ex brigava todas as vezes que ela falava ao telefone ou pela internet com a família no Brasil. “Ele dizia que era perda de tempo e que eu devia estudar. Chegou a esconder meu computador para eu não ter contato com minha família”, diz.

.

Naquele primeiro ano no país, ele ainda desenvolveu alcoolismo, o que só pirou a situação, segundo Joice. “Era agressividade disfarçada com aquela coisa de: estou fazendo isso só pra te ajudar. E o alcoolismo junto. Nessa época eu não conhecia absolutamente ninguém no país, não tinha amigos. Era inverno, fazia -25ºC e ninguém saía na rua. Não podia falar nada para minha família porque tinha acabado de chegar. Como eu ia voltar? Nem dinheiro para isso eu tinha”.

.

Em janeiro de 2013, uma briga a convenceu de que não havia mais jeito de seguir no relacionamento. “Eu estava de camiseta e calcinha e ele me colocou para fora do apartamento. Arrancou a campainha do lado de fora para eu não ficar tocando. Fiquei no hall do prédio, nem sei por quanto tempo. Depois ele voltou a abrir a porta, acho que por medo dos vizinhos. Foi quando eu voltei para o Brasil. Tinha juntado um dinheiro do seguro social, que é um auxílio ao estrangeiro que estuda a língua, e voltei”, conta.

.

A intenção era ficar de vez no Brasil e tentar o divórcio, mas em novembro do mesmo ano Joice voltou à Finlândia. O ex teve um problema sério com o alcoolismo e tirou uma licença de seis meses no trabalho. “Ele precisava de alguém, porque tomava remédios fortíssimos e a mãe dele me convenceu a voltar, porque segundo ela, ele precisava desse apoio e era minha responsabilidade como mulher ajudá-lo. Eu realmente comecei a acreditar nisso, que eu precisava ajudar, mesmo eu tendo sofrido muito. Voltei”.

..

 

Um relacionamento nunca começa abusivo. Ele vai se tornando ao longo do tempo (Foto: Pexels / Divulgação)

.

.

MAIS PESADELOS  

.

Quando voltou, Joice conseguiu se matricular em uma escola de enfermagem e passou a fazer um estágio também. A novidade não agradou o ex, que acreditava que ela devia se dedicar 100% a ele. “Quando eu saía com amigos, ele me ligava dizendo que sabia que eu estava com outro, que quando eu chegasse ia me matar, esse tipo de coisa”, diz.

.

Nesse período, Joice perdeu o pai e ela não conseguiu voltar ao Brasil para o sepultamento. “Eu não podia chorar no apartamento. Tinha que sair de casa para chorar e voltar quando terminasse. Era como se eu estivesse atrapalhando a recuperação dele. Ele voltou a beber, e a culpa foi jogada em mim”.

.

Já nessa época, Joice conta que apenas dividia o mesmo teto com o ex. “Não dormíamos juntos há muito tempo, mas ele dormia com uma faca embaixo do travesseiro para me aterrorizar. Dava murros na parede quando eu estava dormindo, esfaqueava a parede”, relata.

.

A gota d’água, segundo a enfermeira, aconteceu em uma situação em que ela estava na varanda do apartamento, no telefone com uma amiga, quando o ex se aproximou no intuito de agredi-la. “Fiquei com medo de ele me jogar da varanda, gritei no telefone e minha amiga falou: você tem que sair daí agora”.

.

Ainda sem trabalho e sem renda fixa, Joice passou um tempo morando de favor na casa de amigos. E decidiu ir até a polícia para denunciar o ex, além de entrar com um pedido de divórcio.

.

“Fiz boletim de ocorrência, mas não me deram muita credibilidade porque eu não tinha nenhuma marca de violência física. Apontei testemunhas, mas falaram apenas com uma amiga minha. Depois fui chamada para um interrogatório com um tradutor”, conta.

.

Mais de seis meses depois, Joice recebeu uma notificação que dizia que o abusador havia sido ouvido, mas não havia dados suficientes para abrir um processo criminal. A assinatura do divórcio só ocorreu porque o ex se envolveu com outra mulher. Mesmo casados em comunhão de bens, a enfermeira não teve direito a nenhum tipo de ajuda na Finlândia.

.

Com o passar do tempo, Joice conseguiu um emprego, alugou um apartamento e hoje segue vivendo na Finlândia. O divórcio, no entanto, só foi formalizado no país. “Até hoje ele não me deu o divórcio no Brasil. Ele só precisaria assinar um papel. Ainda sou casada no Brasil. Isso me causa vários problemas, principalmente em relação a passaporte. Tenho que carregar o sobrenome dele em todos os meus documentos. Cada vez que tenho que assinar algo, um pedacinho de mim morre”, diz.

.

Quando relembra a situação que viveu, Joice percebe que levou tempo até admitir que estava sendo vítima de abuso. “Eu tive acesso à informação, fiz uma universidade, o que não é a realidade de muitos brasileiros. Você acha que nunca vai acontecer com você e depois que acontece você se pergunta: como eu pude, como eu normalizei isso? É um conjunto de coisas: é preciso se dar conta de que o que acontece é grave, não é só bobeira de casal”, diz.

.

A enfermeira ainda aconselha que as vítimas não tenham medo de se abrir para expor um relacionamento abusivo. “Quem tem que ter vergonha é o abusador, não a vítima. E é só se abrindo e tendo contato com outras histórias que a gente começa a entender que isso não é normal, que esse tipo de coisa não deve acontecer. É crime. Não tenho vergonha de expor o abusador e se expor. A culpa nunca foi de quem sofreu”, conclui.

.

.

SERÁ QUE ESTOU NUM RELACIONAMENTO ABUSIVO?  

.

Como identificar se você está sendo vítima de um relacionamento abusivo? Segundo a psicóloga Juliana Saldanha de Castro, inicialmente é preciso entender o que é esse tipo de relacionamento.

.

“É qualquer tipo de relação (até amizade, relação profissional) em que uma das partes exerce ou busca exercer uma influência excessiva ou poder sobre a outra, tolhendo a pessoa de ser quem ela é. Uma das partes está num lugar de inferioridade, e essa parte tem sentimentos muito negativos em relação ao relacionamento e ao abusador”, explica.

.

Nas relações heterossexuais, são mais comuns os casos em que o homem é o abusador. Segundo Juliana, nenhum relacionamento começa abusivo. Ele torna-se abusivo ao longo do tempo. “O abusador vai minando a outra parte e utilizando de mecanismos sutis para que a vítima se molde ao que ele espera. E com isso a vítima vai perdendo a identidade”, afirma.

.

De acordo com a psicóloga, alguns sinais podem ser indícios de que uma pessoa está passando por um relacionamento abusivo. Juliana destaca os três principais:

.

– Perda da individualidade: coloca-se um valor maior ao que o parceiro gosta e deixa-se de lado coisas que davam prazer à vítima. “O que a vítima deixou de fazer por conta do relacionamento? Seja ir à academia, estar com os amigos, trabalhar. Isso é perder a individualidade”, diz.
– Sentimento de culpa: “Há culpa por coisas que a vítima nem fez. Culpa por não ser a parceira ideal, por não corresponder às expectativas do parceiro”, afirma.

.

– Manipulação: Como o parceiro busca exercer controle sobre a vítima, seja este controle financeiro, de relações sociais, familiares, invasão de privacidade, menosprezo, influência na autoestima, etc.

.

A paixão, em alguns casos, deixa a mulher cega para a situação que está vivendo (Foto: Pixabay / Divulgação)

.

.

MUITO ALÉM DA VIOLÊNCIA FÍSICA  

.

Um fato muito comum que prejudica as vítimas a entenderem que estão num relacionamento abusivo é a questão da violência psicológica. Segundo Juliana, relacionamentos abusivos que não têm nenhum tipo de violência física são muito comuns. “É difícil (identificar) porque é comum as mulheres falarem: ele nunca relou um dedo em mim”, explica.

.

O melhor jeito de desmistificar isso, segundo a psicóloga é informar-se. “É preciso saber que humilhação, coação, por exemplo, é uma forma de violência doméstica, prevista em lei. E nessa informação é importante ressaltar como isso é prejudicial, as perdas que a vítima tem com isso”, diz.

.

.

BUSCANDO AJUDA  

Ajuda psicológica é extremamente importante para as vítimas de relacionamento abusivo. De acordo com Juliana, é o profissional quem irá ajudar a identificar a existência de um relacionamento abusivo, bem com ajudar a vítima a se fortalecer internamente, de modo a romper o vínculo destrutivo com o parceiro.

.

“A ajuda de um profissional também é importante para que a vítima consiga seguir a vida sem aquela pessoa, consiga ter autonomia de seguir em frente e, mais que isso, saiba agir para que esse tipo de relacionamento não se repita e para que consigam se relacionar com outras pessoas sem medo”, conclui Juliana.

.

.

COMO DENUNCIAR  

Vítimas de relacionamentos abusivos são asseguradas pela Lei Maria da Penha (Lei 11340/2006), que determina que só haverá um relacionamento saudável quando não apresentar violência física, psicológica, moral, patrimonial e/ou sexual.

.

Segundo Andressa Soares Cardoso, advogada especializada em Direito das Mulheres, vítimas devem denunciar a violência sofrida em delegacias especializadas (DDM Delegacia de Defesa da Mulher) ou em qualquer outra delegacia comum.

.

Mas não é só isso: a advogada também reforça a importância de uma rede de apoio à vítima. “Família, amigos e conhecidos mais próximos. Eles deverão saber o que aconteceu para estarem alertas a qualquer outro sinal. Recomendo também a procura por um psicólogo para ajudar na libertação daquele relacionamento, além de resgatá-la e acolhê-la”, afirma.

.

As penas que incidem sobre o abusador/agressor variam de acordo com o crime cometido, explica Andressa. “Os agressores podem ser condenados por lesão corporal ou lesão à saúde, ameaça, tentativa de feminicídio ou o próprio feminicídio, estupro, divulgação de imagens ou vídeos íntimos (também chamado de revenge porn ou “pornô de vingança”), crimes contra a honra ou até mesmo crimes patrimoniais, como é o caso de furto e estelionato”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

HOME