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Sexismo politicamente correto? Precisamos falar sobre o cavalheirismo e as mulheres no mercado de trabalho

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Julia Rezende, Mestranda em Administração de Empresas e Pesquisadora em Estudos Organizacionais (FGV-EAESP).

Muitos estudos na área das ciências sociais e da saúde trabalham na tentativa de buscar soluções sistêmicas ao que poderia ser entendido como uma cultura do estupro – uma cultura onde o número de mulheres estupradas é crescente, e há uma grande necessidade em criar mecanismos de proteção e entendimento do que é o consentimento, e a ausência dele. A partir disso, políticas públicas de saúde, ações legais e normas de comportamento e conduta são continuamente melhoradas.

Mas apesar dos casos de estupro serem muitos e crescentes, por vezes essa é uma realidade que parece distante do ambiente corporativo. Neste universo empresarial, a grande maioria das empresas possui códigos de conduta, mecanismos de controle e supervisão e mesmo uma cultura que pode atuar de forma a proteger as mulheres de situações de abuso mais graves, como é o estupro. E com isso, fica um questionamento importante pairando no ar: de que forma o sexismo e a misoginia que faz com que mulheres sejam estupradas está presente no ambiente de trabalho? Afinal, uma jornada de trabalho ocupa boa parte do dia de qualquer pessoa, de forma que é difícil desassociar padrões de comportamento de uma sociedade da cultura de trabalho encontrada nos diversos ambientes corporativos.

E é neste contexto que precisamos falar sobre sexismo benevolente. No final da década de 90, Peter Glick e Susan Fiske, uma dupla de pesquisadores americanos incomodados com a visão simplista de um sexismo estereotipado na figura do homem que não gosta de mulher, se aprofundou em estudos de gênero e psicologia para criar o que chamaram de teoria de sexismo ambivalente.

A partir dessa visão, podemos entender o sexismo como tendo duas caras. A primeira delas é a que normalmente assumimos quando pensamos em sexismo ou machismo – ou seja, são comportamentos ou pessoas que vêem mulheres como inferiores aos homens, nutrindo sentimentos de hostilidade, a partir da visão de que a igualdade entre gêneros é um ataque à masculinidade e aos valores tradicionais. É este tipo de sexismo que legitima comportamentos abertamente misóginos e pode ser diretamente conectado com atos de agressão às mulheres como o estupro e outras formas de abuso. Podemos entender este como o sexismo hostil.

O outro lado do sexismo apresenta um caráter mais brando. É o sexismo benevolente. Isso significa dizer que é uma forma de sexismo que vê a mulher como uma figura de adoração: dóceis, afetuosas, acolhedoras, maternais, frágeis. A partir dessa visão, as mulheres devem ser adoradas e também protegidas, valorizadas em seu digno papel de mães e cuidadoras, sendo que a motivação vem de um sentimento subjetivo positivo, de carinho e cuidado. E aqui entra uma grande questão: e isso é ruim? Como, por quê?

Apesar de muito diferentes em suas formas de expressão, esses dois tipos de sexismo se originam em raízes comuns: uma diferenciação de gênero, um padrão que pressupõe heterossexualidade e um sentimento paternalista. Mas, como o sexismo benevolente é muito mais sutil do que um comportamento declaradamente misógino, é também muito mais facilmente legitimado e bem visto nas mais diversas esferas da vida pública e privada, permitindo com que essas intenções positivas de proteção abram espaço para uma grande discriminação da mulher em relação ao homem, especialmente em âmbitos como o mercado de trabalho.

Alguns estudos recentes começaram a se aprofundar na relação complexa entre uma atitude sexista benevolente e o apoio às políticas de diversidade e inclusão, especialmente com foco em questões de gênero. As conclusões apontam para o fato de que apesar de superficialmente haver o entendimento de que pessoas com atitudes sexistas benevolentes apoiam políticas de promoção de igualdade de gênero (motivadas por um sentimento genuíno de empatia e compaixão), isso só é verdade quando essas políticas promovem a representação de mulheres em posições e espaços vistos como femininos, de forma que o resultado final seja um aumento na segregação ocupacional de gênero.

Além disso, desde o começo dos anos 2000 muitos estudos já relacionavam o tratamento sexista benevolente às mulheres à subestimação da capacidade cognitiva e performance das mulheres no trabalho, a partir da distribuição de trabalhos menos desafiadores por parte de gestores e o apoio à manutenção do status quo.

Trazendo essas indagações e provocações para um campo de políticas de trabalho e benefício, como licença maternidade que tanto está em voga, ganhamos um grau a mais de complexidade na discussão. De um lado, temos políticas de benefícios que valorizam a importância da maternidade no trabalho de funcionárias que também são mães, oferecendo licença de maternidade estendida, horas flexíveis no retorno da licença, e diversos outros auxílios. São políticas pensadas em inclusão, que buscam criar um ambiente de trabalho mais acolhedor para mulheres que querem ser ou são mães e reduzir a discriminação. Do outro lado, é possível também dizer que essas mesmas políticas contribuem na legitimação da visão da mulher a partir de uma ótica sexista – mesmo que benevolente – a mulher como mãe, com necessidades e demandas essencialmente diferentes daquelas de funcionários homens, com um possível dano colateral da estereotipação da mulher e do aumento de discriminação.

Essas mesmas mulheres, valorizadas em seu estereótipo da mulher feminina, maternal e dócil, ao mesmo tempo em que são protegidas e encorajadas em seus papéis de profissionais, têm seus espaços de crescimento limitados de forma silenciosa e sutil. São apoiadas a ocuparem cargos “apropriados à sua natureza”, espaços como recursos humanos, áreas de comunicação, atendimento entre outros, onde há bastante representação feminina.

E como todo assunto multifacetado, o sexismo benevolente vira então um tópico pouco abordado, difícil de criticar uma vez que está sempre ancorado no melhor dos contra-argumentos: a intenção é boa. O sentimento vem da empatia, da compaixão. É o cavalheirismo. É politicamente correto, e faz parte das nossas atitudes, tanto homens quanto mulheres. Em um ambiente político e cultural tão polarizado como o que estamos vivendo, somado à uma sociedade altamente machista, a crítica ao cavalheirismo não parece ser prioridade. Afinal, pensamos: tem tantas questões mais graves. Feminicídio, cultura do estupro, abuso moral no ambiente de trabalho.

Mas será que, ao menos em parte, todos estes assuntos não se conectam em suas raízes? O politicamente correto do sexismo é realmente correto? Sexismo não será sempre sexismo, em diferentes níveis? Nós, mulheres, queremos nos beneficiar de gestos de cavalheirismo? São provocações como essas que nos ajudam a produzir conhecimento, evoluir nossas percepções enquanto sociedade, criar teorias, colocá-las em práticas.

Não tenho respostas, mas como diria Sócrates “a arte de perguntar é o princípio da liberdade”.

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