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Seriam as redes sociais as fogueiras das mulheres do século 21?

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:   Seriam as redes sociais as fogueiras das mulheres do século 21?

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Elas perdem emprego, reputação, guarda dos filhos, às vezes precisam até mudar de país devido ao apedrejamento público que sofrem no Instagram, YouTube, Facebook e WhatsApp. Investigamos a questão para mostrar o que motiva esse comportamento de turba que escolhe um alvo e o ataca sem pesar

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Em setembro de 2017, a paulistana Maria Luiza Silva* marcou um encontro com um rapaz que conheceu em um aplicativo de encontros. Recebeu-o em sua casa, jantaram, tomaram vinho. Tudo corria bem até que ele a prendeu na cama, bateu nela e a estuprou. Ela denunciou o agressor ao Ministério Público e decidiu tornar sua história pública, em uma matéria na internet em que revelava seu nome. Tão logo foi publicada, os haters começaram a persegui-la. Primeiro foram os comentários na matéria, depois na página dela no Facebook, até que passaram a fazer montagens com sua foto e vídeos no YouTube ridicularizando Maria Luiza. “Foram milhares de mensagens atacando a mim e à minha família. Eram tantas que não dava para saber o que era uma ameaça real”, diz.

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A avalanche de insultos era tão grande que ela não encontrou maneiras legais de coibir as agressões. Maria Luiza caiu em depressão. Para se proteger, mudou-se para outro país, onde ficou por três meses na esperança de que a onda passasse. Saiu de todas as redes sociais, não contou do seu paradeiro para ninguém. Isolada e impotente, pensou em suicídio, mas foi resgatada a tempo. Começou, então, uma peregrinação para recomeçar a vida e com a ajuda de ativistas conseguiu tirar os vídeos do ar depois de quase um ano do ocorrido. De volta ao Brasil, passou a procurar emprego e só ouviu negativas. O problema? Seu nome segue ligado ao caso em uma simples busca no Google.

Fogueira digital (Foto: Ilustração Carol Zeferino)

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Histórias como a de Maria Luiza, que pediu para que seu nome e profissão fossem mantidos em sigilo por motivos óbvios, são cada vez mais comuns. Diante do tribunal sem lei que se instaurou nas redes sociais, reputações são destruídas em ataques virtuais de velocidades sem precedentes. Basta um influenciador tacar uma pedra para que seus seguidores o copiem e ampliem a agressão a níveis incontroláveis. Pudera. No Brasil, só no Instagram são 50 milhões de usuários – o que faz ocuparmos o segundo lugar em público, apenas perdendo para os Estados Unidos. “Por mais que as empresas de redes sociais apaguem os conteúdos, uma vez na internet, a história sempre volta”, afirma Maria Luiza.

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Para reconstruir a vida no Brasil, ela adotou outro sobrenome, outro telefone, outro endereço. “Foi uma morte. Precisei recomeçar do zero porque as pessoas se afastaram. Ninguém quer se unir a algo que é publicamente negativo. Para isso contei com o apoio de uma rede de mulheres, que checava se havia comida ou papel higiênico na minha casa. Isso me emocionou.”

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Alvo feminino
Nessa perseguição contemporânea, as mulheres são alvos preferenciais. Para a psicóloga Ana Luiza Mano, coordenadora do site Psicólogos da Internet, há uma questão de gênero por trás dessa perseguição. “O espaço da mulher está constantemente em jogo. Como já dizia Simone de Beauvoir, você precisa estar sempre atenta porque a qualquer momento pode perder direitos que havia conquistado.” Para a escritora e filósofa Márcia Tiburi, outra vítima de crimes digitais que a levaram a deixar o Brasil, a internet representa hoje a “caça às bruxas” da Idade Média. “Destruir mulheres faz parte da história. Se a fogueira era a tecnologia do século 16, a internet é a fogueira do século 21. Naquela época queimavam-se os corpos, hoje queimam-se as imagens porque vivemos num tempo em que ela é o grande capital.”

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A destruição é ainda mais brutal quando a mulher representa algum tipo de ameaça a costumes conservadores, ou, nas palavras da filósofa, “as personificações das mulheres antigamente chamadas de bruxas”. “A história das mulheres é marcada pelo ódio, que tem nome técnico: misoginia. As que se deram conta disso foram odiadas numa segunda potência.”

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Márcia virou alvo de uma série de ataques on-line desde que deixou um programa de rádio para não debater com o ativista – e agora deputado federal por SP pelo DEM – Kim Kataguiri, em 2018. No dia seguinte, um trecho de 34 segundos de uma entrevista de quase uma hora dada à TV Brasil em 2015 em que falava sobre a “lógica do assalto” – argumentando que situações sociais levam pessoas à criminalidade – foi recortado de modo a passar a impressão de que ela se diz favorável ao crime. “Uma entrevista que dei em 2015 com uma reflexão complexa foi recortada em 2018 para criar polêmica, fizeram guerrilha espalhando pelo WhatsApp”, conta a filósofa. “Há agências que chamo de milícias midiáticas. Pessoas com tempo para ficar assistindo aos meus vídeos e procurando trechos que possam ser, mesmo que distorcidos, motivos de polêmica.”

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Segundo ela, robôs invadiram seus perfis nas redes sociais e até mesmo sua conta bancária. Sob constantes ameaças de morte e protestos contra os eventos onde falava, Márcia deixou o país em dezembro de 2018 e hoje mora em Paris. Ela não chegou a tomar medidas legais em relação aos ataques.

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Culpadas desde que se prove o contrário
Assim como há efeitos na psique de quem é atacado, há motivos psicológicos por parte dos autores da violência. É o chamado efeito da desinibição on-line, conceito desenvolvido por John Suller, professor de psicologia da Universidade de Rider, nos Estados Unidos. Para ele, a internet oferece a possibilidade de desinibir e revelar facetas da nossa personalidade que não apareceriam presencialmente, já que a presença de uma pessoa – por exemplo, suas reações faciais – poderia inibir esse comportamento. “Como ninguém está te vendo, parece que não vai haver qualquer consequência, o que permite que as pessoas façam coisas que talvez não fariam no presencial”, diz Ana Luiza Mano.

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Ela também aponta o efeito do comportamento de turba: quando você vê várias pessoas xingando alguém e resolve se unir a elas por achar que não vai acontecer nada. “Libera uma atitude de quem se considera acima da lei”, diz .

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Segundo a pesquisadora da Faculdade de Tecnologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Karen Tank Mercuri, autora de uma dissertação de mestrado sobre casos de linchamento, virtuais ou não, sempre existem gatilhos que motivam esse tipo de ação. Entre eles: mentes conservadoras, sensações de injustiça e insegurança e a desmoralização da polícia e da justiça como instituições. “Na internet, nota-se que ao recorrer às redes sociais para externalizar indignação procura-se não só por legitimação, mas por semelhantes que engrossem o coro e se juntem à massa, para que nela deixem vir à tona todas as suas raivas.” E, então, ali “ocorre o oposto da lei, a condenação vem primeiro, todo mundo é culpado até que se prove o contrário”, continua.

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Aliado ao comportamento de turba que “elimina” a responsabilidade individual, há a dificuldade de lidar com o que consideramos inaceitável – essa é a explicação de Natália Parolin Bonini, psicóloga e fundadora do DIVAM (Debates Integrados pela Valorização e Atendimento das Mulheres), um coletivo de psicanalistas feministas que busca criar uma rede de apoio a mulheres através da democratização da terapia e realização de rodas de conversa e grupos de estudo em São Paulo. “Não é a internet que permite que as pessoas sejam cruéis, isso sempre existiu; o que nos leva a essa crueldade é quando a pessoa apresenta um aspecto que para nós é difícil de lidar”, diz. “É tão difícil integrar a mim mesma o meu lado destrutivo, invejoso, odioso, que é mais seguro eu jogar isso no outro, odiá-lo e eliminá-lo da minha vida, que assim elimino junto todo o sentimento com que tenho dificuldade de lidar.”

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É por isso que os ataques tendem a refletir um caráter conservador da sociedade. “Muitas dessas violências são convencionais, como atacar a sexualidade das mulheres usando um padrão de moralidade sexual conservador”, diz a antropóloga Heloisa Buarque de Hollanda, organizadora da coletânea Explosão Feminista, sobre a quarta onda do feminismo no Brasil.

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O segundo sexo
Para salvar a imagem, muitas vezes a única saída para a sobrevivente é se expor ainda mais, fazendo-se heroína de si própria. É o caso da jornalista Rose Leonel. Em 2006, após terminar um relacionamento, seu ex criou um site com fotos íntimas tiradas durante a relação e montagens com imagens de pornografia. Ele hackeou o e-mail de Rose e o usou para enviar o site para os seus contatos. Todos em sua cidade, Maringá (PR), acharam que ela estava tentando se promover. Rose era colunista social e tinha um programa de TV, estava no auge da sua carreira. Em seguida, perdeu o emprego e entrou em depressão.

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Não satisfeito, seu ex continuou a vingança por cinco anos, chegando a imprimir e distribuir as fotos com os números de telefone de Rose e de seu filho de 11 anos pela cidade como se ela fosse garota de programa. Chegou a colocá-la à venda no site Kibarato. Seu filho pedia para ela deixá-lo duas quadras antes da escola para não ser visto com a mãe. O menino sofreu tanto com o caso que teve de ir morar com o pai, ex-marido de Rose, em Londres. “Esse crime provocou minha morte civil”, diz ela.

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Anos depois, seu ex foi condenado e ela fundou uma ONG para compartilhar o que aprendeu com outras vítimas de pornografia de vingança, a Marias da Internet. Ela também conseguiu a aprovação da Lei 13.772, apelidada de Lei Rose Leonel, que propõe a incorporação da disseminação indevida de material íntimo à Lei Maria da Penha e prevê uma punição mais rigorosa para os agressores. É a primeira lei a classificar a divulgação de imagens sem consentimento como crime no país. Seu ex, no entanto, não sofreu consequências consideráveis e continua um próspero empresário na região.

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Apedrejamento impune
Se a Justiça já é capaz de punir a pornografia de vingança, o mesmo ainda não acontece com o apedrejamento virtual. O costume nos tribunais brasileiros é julgar os agressores individualmente, ignorando o comportamento de turba. Quanto às penas, geralmente são brandas e pagas com medidas alternativas. Há, no entanto, um projeto de lei, o 7544/14, do deputado Rubens Pereira Júnior (PCdoB/MA), aprovado em março de 2018 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, que prevê aumentar em 1/3 a punição para a “incitação ao crime” via internet ou outro meio de comunicação de massa. Ou seja: prevê estender a culpa ao tribunal da internet. O PL precisa ainda passar por votação em plenário.

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Nos Estados Unidos, onde um estudo da Pew Research mostrou que 41% dos adultos já foram assediados nas redes sociais, já existe punição para o que eles chamam de “perseguição virtual”. Na Califórnia, difamar, vandalizar ou até mesmo compartilhar informações pessoais de uma pessoa pode ser considerado crime.

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Para a mediadora de conflitos e especialista em comunicação não violenta Carolina Nalon, as redes sociais viraram um espaço onde os papéis de algoz e vítima se confudem. “A internet que não lincha as pessoas é menos caça cliques e mais debate construtivo. É menos velocidade e engasgos e mais digestão do fato com empatia e conhecimento de causa. O fim da violência está em enxergar o outro como um igual.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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