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“Não aceito a discriminação do uniforme branco”, diz a atriz Ana Flávia Cavalcanti, cuja performance questiona o preconceito

Saiu no site  REVISTA MARIE CLAIRE: 

 

Veja publicação original:   “Não aceito a discriminação do uniforme branco”, diz a atriz Ana Flávia Cavalcanti, cuja performance questiona o preconceito

 

Em entrevista a Stephanie Ribeiro, a atriz Ana Flávia Cavalcanti fala sobre seu personagem em “Malhação” e sobre a performance na qual uma babá, vestida de branco, tem de ser carregada em um carrinho por pessoas na rua

 

 

 

 
Sempre vejo circulando nas redes sociais uma frase de Nina Simone que sintetiza a função da arte e de quem está por trás dela: “É obrigação artística refletir meu tempo”. Não é, no entanto, o que pensam os famosos brasileiros, que parecem sempre estar pisando em ovos em suas entrevistas e não conseguem mais por para fora o que realmente pensam e acreditam. Ainda que, hoje, o “engajamento” esteja em alta, queremos saber mais sobre causas, interesses e o posicionamentos de nosso ídolos. Evidentemente, isso não se dá do dia para a noite: é preciso ler, se informar, buscar…. Quantos artistas estão querendo se expor dessa forma?

 

 

Minha entrevista com a atriz Ana Flávia Cavalcanti veio desse incômodo. Enquanto muitas famosas desfilam pelas ruas com suas babás vestidas de uniforme branco, Ana Flávia, que deu vida a Dóris, de Malhação Viva a Diferença, em 2017, propõe uma crítica a esse “costume brasileiro”.

#BlackGirlMagic – Conheci seu trabalho no curta Personal Vivator, assisti também Rainha, da diretora Sabrina Fidalgo, e depois, Malhação. Todos os seus papéis têm um cunho engajado e de crítica social. Por que?
Ana Flávia Cavalcanti – O corpo negro é um corpo político. Em Personal Vivator e Rainha – filmes escritos e dirigidos por Sabrina Fidalgo, roteirista e cineasta negra -, me vejo nas vivências das personagens. Já em Malhação, vivi uma ótima surpresa: a Dóris é uma heroína. Uma mulher negra que estudou em escola pública, tem um pai ex-usuário de drogas e, por meio da força e da dedicação de sua mãe e de sua diretora, ela entra no curso de pedagogia na USP, se tornando uma diretora exemplar. Um sonho de personagem num momento como esse, em que vivemos um golpe de estado, em que nos foi tirado o direito do voto direto a partir de justificativas mentirosas e descaradas. Para viver a Doris, mergulhei em questões pessoais e sociais muito profundas. Me tornei uma pessoa ainda mais integra, verdadeira, sem meias palavras. Ter uma personagem como ela diariamente num canal de grande alcance, falando sobre educação e educando por seus gestos tem, sim, um cunho muito engajado e uma crítica social necessária.

 

 

#BlackGirlMagic – Neste ano, a Ancine lançou uma pesquisa que mostra que o cinema brasileiro é produzido por uma maioria de homens e brancos, mas você ganhou um edital para produzir um filme chamado . Do que se trata?
AFC –  
Ganhei o edital curta afirmativo da SPCine, que pretende abrir espaço para narrativas que não são contempladas, seja pela temática ou pelas condições sócioculturais dos proponentes. Somos 33 ganhadores, entre mulheres, negrXs, trans e indígenas.  se passa em Diadema, região do ABCD, em São Paulo, no fim da década de 80. Nessa época, Diadema tinha o maior índice de homicídios do Brasil. A história é baseada em um fato que ocorreu quando eu tinha 6 anos e que me marcou muito. Além de assinar o roteiro e a co-direção com Julia Zakia, vou fazer a personagem principal, a Val, uma empregada doméstica que mora com as duas filhas. A princípio, o filme narra a vida de uma mãe solteira, como tantas no Brasil, né? O dia a dia dessas três mulheres, num ambiente bem conturbado, muda numa noite em que ocorre um fato inesperado. Depois de , já escrevi outros dois roteiros e percebi que minhas vivências e meu modo de ver o mundo podem gerar muita história boa sim. Essa experiência precisa ser ampliada para outras artistas negras e negros.

Ana Flávia Cavalcanti: a atriz de Malhação ganhou um edital para realizar um filme na periferia paulistana (Foto: TV Globo)

#BGM – De onde surgiu a ideia da performance A Babá Quer Passear?
AFC –  
Sonhei com um carrinho de bebê gigante e cor de rosa. Fiquei muito intrigada com esse sonho. Me embrulha o estômago todas as vezes que vejo babás em espaços públicos ou em clubes, restaurantes, festas de criança, vestidas de branco, excluídas e marcadas por uma questão social. Não aceito essa discriminação que o uniforme branco causa. Sou filha de uma mulher negra, que trabalhou a vida toda como doméstica, babá, faxineira, passei muitos anos da minha vida acompanhando minha mãe no trabalho e essa temática me atravessa de muitas maneiras.Costumo dizer que não tenho nenhuma crítica ao trabalho em si. Minha luta é para melhorar as condições desse trabalho. Não só com direitos trabalhistas, mas principalmente pela transformação do status social de um doméstico. Com a performance, quero provocar a sociedade: me visto de babá e fico dentro do carrinho esperando alguém levar a Babá pra Passear. Quando alguém aceita passear com a babá, faço uma série de perguntas: Sua babá está bem? Você já levou sua babá em casa? Qual o signo dela? Independentemente de o “passeio” rolar ou não, a fissura acontece assim que eu estaciono o carrinho. Gosto muito desse trabalho, mas preciso concentrar boas energias para realizá-lo pois sou muito desprezada pelos passantes dos bairros que escolho. Mas sigo firme. Vou me apresentar dia 12 de março na Segunda Black, aqui no Rio de Janeiro.

 

#BGM – O filme Que Horas Ela Volta faz uma crítica ao modelo de trabalho doméstico e todo o viés servil dele. Você acredita que a existência do trabalho doméstico no Brasil e das babás é uma faceta da nossa história escravocrata?
AFC – 
Tenho certeza disso. Um empregado doméstico que trabalha das 8h às 17h, de segunda a sexta, ganhando um salário mínimo ou pouco mais do que isso, é pura herança escravocrata. Limpando, limpando, limpando… O que tanto se limpa? Será que a gente limpa o que deveria ser limpo realmente? Esse esquema de ter alguém recolhendo o nosso lixo, a nossa sujeira e recebendo tão pouco, só se sustenta em países como o nosso, em que a riqueza dos brancos segue mantida pelo trabalho escravo, até pouco tempo atrás, e atualmente, a partir da mão de obra barata de homens e mulheres negras nas diversas funções serviçais. Em Personal Vivator, a patroa paga pouco para a doméstica cuidar da filha, da casa, da comida, enquanto ela produz conhecimento e é reconhecida pela mestrado. O Brasil é cafona. Super estimamos os graduados e pós-graduados e pouco respeitamos quem tem um conhecimento específico, um  “savoir faire”, como dizem os franceses.

#BGM  – A performance A Babá Quer Passear vem causando incômodo por onde passa: a que você credita esse comportamento?

 


AFC – 
Eu faço um questionamento direto e reto aos privilégios mantidos. Posso te dizer que, depois desse trabalho, questiono todo mundo. Inclusive meus amigos mais próximos. Quase todos têm uma doméstica, pagam mal a ela e não querem perder esse privilégio. Em média, uma empregada doméstica ganha entre R$ 90 e R$ 130 por dia. Acho que essa diária deveria ser de, no mínimo, R$ 200. Todo mundo acha normal alguém vir limpar a própria casa. Eu não acho supernormal não. Acho bem estranho, na verdade, que a gente lide tão mal com a limpeza. Em nossa sociedade, limpar está associado as funções destinadas aos negros, já que limpar é inferior a gente deixa pra alguém inferior. Ninguém imagina uma filha doméstica. Imagino que poucas pessoas sonhem com isso. Por mais que se tenha respeito pelo doméstico e aí a gente chega no famoso “é quase da família” – ainda assim, não acho razoável alguém limpar a sujeira do outro da maneira indiscriminada como fazemos no Brasil. Eu limpo minha própria casa e só contrataria uma doméstica se pudesse pagá-la bem. Precisamos discutir a fundo o tema do empregado doméstico no Brasil. É isso que eu estou tentando fazer.

 

#BGM – O que você pretende para o ano de 2018 com sua performance?
AFC – 
Quero fazer essa performance em outros Estados. Fiz no Rio e em São Paulo, mas quero ampliar essa discussão. A partir de A Babá Quer Passear, criei o solo-debate SERVIÇAL, um encontro onde convido os negros presentes a narrarem suas histórias de trabalho ao longo da vida. Também aproveito para contar como é fazer a Babá. Muito emocionante. Crio em cena um apartheid entre brancos e negros, crio não, porque ele já existe, eu só proponho uma mudança de foco. São os negros que falam e gritam e choram suas histórias.

 

 

 

 

 

 

 

….

 

 

 

 

 

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