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Mulheres que denunciaram João de Deus sofrem linchamento virtual

Saiu no site METRÓPOLES

 

Veja publicação original:   Mulheres que denunciaram João de Deus sofrem linchamento virtual

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Especialistas ouvidas pelo Metrópoles dizem que descrédito das vítimas gera impactos na saúde física e mental de quem sofreu abuso

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Por Fernanda Caxeta

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Para muitas vítimas de João de Deus, foi difícil encontrar coragem, levantar a voz e contar o que sofreram nas mãos do líder espiritual. Há relatos de mulheres que teriam sido abusadas 20 anos atrás e resolveram nunca tocar no assunto por medo de serem taxadas de “loucas” ao acusar de estupro alguém tão poderoso.

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O ciclo de sofrimento e violência torna-se ainda mais doloroso diante da descrença dos seguidores do médium, dentro da própria casa das vítimas e, agora, com a divulgação do escândalo sexual, até por parte de desconhecidos na internet. Essas mulheres são vítimas duas vezes: dos abusos cometidos por João de Deus e de um verdadeiro linchamento virtual por parte de internautas que as criticam por só agora revelarem o caso.

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De acordo com depoimentos prestados pelas vítimas tanto ao Ministério Público de Goiás (MPGO) quanto ao Ministério Público de São Paulo (MPSP), funcionários foram coniventes com os supostos estupros praticados dentro da Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), Entorno do Distrito Federal. Segundo relatos, faxineiras e voluntárias eram chamadas para limpar sêmen, descrito pelo líder espiritual como ectoplasma, sem nunca ele ter sido questionado sobre a origem do fluido. Segundo o dicionário, ectoplasma é uma substância “visível considerada capaz de produzir materialização do espírito”.

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Algumas vítimas disseram ainda se lembrarem da voz, dos gemidos e da repulsa que sentiram pelo médium. Ele alegava que os atos sexuais com as pacientes seriam parte da cura.

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As mulheres que acusam João de Deus de abuso disseram ter ficado com nojo do próprio corpo após o ato, alguns cometidos na presença de parentes, que eram orientados a ficarem de costas e com os olhos fechados durante os “atendimentos”.

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Especialistas no tratamento de vítimas de violência sexual ouvidos pelo Metrópoles explicaram ser algo muito comum as pessoas não denunciarem ou demorarem a relatar experiências de estupro, sobretudo quando há relação de poder entre agressor e agredido, seja entre pai e filha, ídolo e fã ou, como é o caso, entre fiel e líder religioso.

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Marcas indeléveis
Abusada pelo médium 11 anos atrás, a terapeuta e moradora de BrasíliaAlessandra Rocha, 39, conhece a dor de ser desacreditada. Depressão e síndrome do pânico a motivaram a procurar pelo tratamento oferecido por João de Deus. O abuso começou quando o “médico espiritual” trancou a porta e ficou a sós com ela.

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Alessandra, porém, só se deu conta da violência que estava sofrendo no momento do atendimento. “Eu vi que ele percebeu. Ele me levou para fazer as cirurgias espirituais com ele, como se eu fosse uma médium poderosíssima que poderia realizar curas também. Quando eu me dei conta de toda a farsa, de tudo que ele estava montando ali para que eu não fizesse um escândalo, ele começou a me ameaçar de forma velada”, narrou.

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Desde o episódio na Casa Dom Inácio de Loyola, Alessandra passou por anos de terapia e, hoje, sente-se pronta para falar sobre o caso e retornar às autoridades para contar o que sofreu. Dispensando o rótulo de vítima, ela voltou a falar sobre o episódio em depoimento ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).

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Mais de uma década após o abuso, a terapeuta reconhece que algumas marcas não serão apagadas e que a violência sofrida nas mãos do líder espiritual reflete em suas relações, sobretudo as amorosas e sexuais. “Isso nos põe numa situação de uma visão interrompida em relação ao homem, e o coloca numa posição de agressor. Depois do que aconteceu comigo, eu demorei oito anos para arrumar um namorado. Hoje, sinto que tudo isso já está mais bem digerido dentro de mim”, conta Alessandra.

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Silêncio e segredo
De acordo com Karla Lopo, psicóloga da Secretaria de Saúde e chefe do Núcleo de Prevenção e Assistência à Violência (Nupav) da Região Oeste, que engloba Brazlândia e Ceilândia, as vítimas costumam apresentar sequelas semelhantes.

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“Quando se trata de violência sexual, costuma haver muito ‘silêncio’ e ‘segredo’. As mulheres sentem muito medo, vergonha e até culpa pela própria violência que sofreram. Muitas delas se paralisam diante dessas agressões, até porque existe uma questão cultural muito forte de culpabilização da mulher. Elas tendem a não falar, assim como as crianças que sofrem violência sexual”, explica Karla.

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A psicóloga lida diariamente com mulheres e crianças vítimas de abusadores e conta que, a partir do momento quando outras mulheres trouxeram a público a violência praticada por João de Deus, mais pessoas se sentiram encorajadas a denunciar.

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Existe um discurso muito forte entre ofensores sexuais de que houve um processo de sedução da vítima. Esse discurso é usado até com crianças pequenas. Na Secretaria de Saúde, trabalhamos muito em grupo, porque a gente vê esse processo de empoderamento acontecendo quando as vítimas de violência sexual percebem que não estão sozinhas

Karla Lopo, psicóloga e especialista em atendimento a vítimas de violência sexual

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A chefe do Nuprav explica que a dinâmica de violência já é muito nociva e o descrédito da vítima traz impactos negativos para a saúde. “Esse desacreditar envolve de novo o processo de culpar. As pessoas têm essa dificuldade de ver que é violência porque a naturalizam”, diz.

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Ainda de acordo com a especialista, grande parte dos abusos ocorre no ambiente intrafamiliar. “Aí vão fazendo uma redoma que não envolve denúncia, e fica aquela situação dentro da família, por isso é uma violência tão subnotificada”, afirma Karla.

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Segundo o Mapa da Violência de 2018, relativo a dados de 2016, ocorreram 50 mil estupros no Brasil naquele ano. De acordo com a especialista, a projeção é de que 85% dos casos não são registrados. “Se você for pensar, são cerca de 400 mil casos [não informados] durante um ano”, observa a especialista.

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Punição do autor, recomeço para a vítima
Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos e Programas na Atenção e Vigilância em Violência (Nepav), ao qual todos os Nupav estão vinculados, esclarece que o processo de enfrentamento à violência envolve três eixos: denúncia, atendimento e responsabilização.

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No caso de João de Deus, o médium teve a prisão decretada. Mas, daí a eventuais condenações judiciais, há um longo caminho a ser percorrido. “Eventuais punições contra João de Deus são importantes para que a vítima consiga ressignificar a experiência”, explica.

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Segundo a especialista, a punição aos agressores “ajuda na interrupção do ciclo da violência, nos impactos na saúde física e mental e nos processos de revitimização presentes quando ela [a vítima] é desacreditada ou quando seu relato é minimizado”.

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“O principal efeito é sobre sentimentos como culpa, raiva e medo, que estão muito presentes nessas situações. Para o autor, esses eixos são também importantes, porque permitem a interrupção compulsória da violência pela denúncia e a possibilidade de reflexão sobre o ato violento”, conclui Fernanda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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