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Mulheres cineastas são plantas raras e famintas, diz diretora

Saiu no site FOLHA DE S.PAULO

 

Veja publicação original:      Mulheres cineastas são plantas raras e famintas, diz diretora

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Para Gabriela Amaral Almeida, há muito a avançar na participação feminina no cinema

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Por Gabriela Amaral Almeida

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Perdi a conta de quantas vezes fui chamada a comentar a “presença cada vez maior das mulheres na direção de filmes de gênero”. Desde meu primeiro curta-metragem, em 2009, até hoje, às vésperas de dirigir o meu terceiro longa, a mesmíssima questão continua em debate. O que me leva a questionar: serei eu, de fato, uma diretora de filmes de gênero ou uma integrante do nicho “filmes de horror dirigidos por mulheres”? 

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Caso pertença ao segundo grupo, passo, automaticamente, de estatística positiva à exceção de uma regra mantenedora do status quo que ainda define a produção cinematográfica no Brasil e no mundo: “diretores serão sempre homens, a não ser quando…” (complete a frase de acordo com as mais recentes demandas de mercado, inclusive o “das artes” —festivais de cinema estão mais do que incluídos nesta equação).

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Cena do filme em que se vê menina emburrada no escuro.
A atriz Nina Medeiros em cena do filme “A Sombra do Pai”, de Gabriela Amaral Almeida – Divulgação

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Recentemente, o fundador da produtora de filmes de gênero Blumhouse (dos longas “Corra!” e “Fragmentado”, entre outros), Jason Blum, deu uma declaração infeliz (pela qual já se retratou publicamente) acerca da escassez de diretoras de um modo geral —e, em específico, de diretoras de filmes de gênero. “Não existem muitas”, disse ele.

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Para balizar sua visão, ainda citou os supostos diversos convites feitos pela produtora à cineasta Jennifer Kent (do premiado “The Babadook”), que os teria negado todos.

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Jennifer Kent é uma diretora. Uma flor rara, claro. Mas, definitivamente, não a única.

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Existem tantas manobras quanto forem necessárias para justificar a escassez de mulheres no comando de filmes “de medo” (horror, terror, fantasia, ficção científica e derivados). Uma delas é a (velha) lorota de que a “sensibilidade feminina” não seria consonante com os temas e dispositivos desta família de filmes: morte, violência, sangue, sordidez etc.

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Outra manobra é a noção de que mulheres são mais coração que cérebro, um postulado cruel que nos tem afastado há séculos de áreas do saber ligadas à matemática, à ciência e/ou a qualquer coisa que demande algum tipo de técnica.

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Filmes de medo não raro exigem domínio técnico e precisão matemática na execução de seus programas de efeito. São complicados brinquedos de armar. Os mesmos que nos são negados desde a infância.

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A ficção científica nasce com o romance de estreia de Mary Shelley, em 1818. Estamos falando “apenas” de “Frankenstein”. A literatura “de medo” (para seguir usando o termo) segue representada pelo talento de autoras como Shirley Jackson (grande influência de Stephen King), Anne Rice, Daphne du Maurier, Agatha Christie —só para citar algumas.

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Sensibilidade não é, portanto, questão de gênero (masculino/feminino), mas de talento.
Técnica e sensibilidade tampouco são a causa do descompasso entre a representatividade de autoras na literatura de ficção de medo em relação às diretoras de cinema. A questão é de ordem financeira.

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A escrita de um romance demanda tempo e dedicação, mas não dinheiro, necessariamente. Mais importante ainda, a atividade de escrita pode ser feita dentro de casa, sem que a mulher precise se afastar do ambiente doméstico.

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Em contrapartida, o cinema é uma atividade coletiva, hierarquizada e dispendiosa —características repelentes da figura feminina nas sociedades moderna e contemporânea.

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Os filmes (em especial, os de ficção) demandam um investimento inicial alto em dinheiro. Uma equipe de filmagem tem, na figura do diretor, uma de suas autoridades máximas. A natureza coletiva e expansiva do ofício exige de seus profissionais o desbravamento de territórios que vão além do espaço de criação doméstico.

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A cineasta Alice Guy-Blaché (1873-1968) foi pioneira no cinema francês e mundial. Entre o final do século 19 e o início do 20, comandou o próprio estúdio, tendo escrito e dirigido mais de mil filmes —dentre os quais estão os primeiros de ficção da história do cinema. Depois seu estúdio faliu, seu casamento (com seu sócio) terminou e ela nunca mais dirigiu outro filme.

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A história de Alice Guy-Blaché ilumina duas questões fundamentais. A primeira: sua carreira como produtora de conteúdo visual decai na medida em que o negócio do cinema se revela (muito) lucrativo. Única mulher diretora e roteirista da época, Alice é descartada por um sistema de produção que não demora a atribuir à figura masculina os seus lugares de destaque —como a direção e a produção de filmes.

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A segunda questão diz respeito ao apagamento do nome da cineasta dos livros de história do cinema. Contemporânea dos irmãos Lumière, Alice dirigiu seu primeiro filme, “A Fada do Repolho”, em 1896, um ano após os irmãos exibirem a obra que seria considerada o primeiro filme do mundo, “A Chegada do Trem na Estação de Ciotat”.

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Alice morreu em 1968, após uma vida lutando por seu lugar na história do cinema (incansável, entrou em contato com pesquisadores e até escreveu uma autobiografia).

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Como Alice, somos hoje diretoras de cinema de nicho, sujeitas ao ir e vir da maré dos gostos, das tendências e do mercado. Faço coro contrário à celebração da mulher no cinema (em especial no cinema de gênero) porque ainda ocupamos o lugar da fenda —instável, limitador e temporário. Um refúgio.

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Somos, em número, muitas sementes —mas ainda precisamos de solo para florescer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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