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Maria foi encontrada morta na cama. Tudo falhou, três inquéritos foram arquivados

Saiu no site DIÁRIO DE NOTÍCIAS – PORTUGAL 

 

Veja publicação no site original: Maria foi encontrada morta na cama. Tudo falhou, três inquéritos foram arquivados

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A vítima foi encontrada na cama sem vida. A sua condição de alcoólica servia para muitos legitimarem a violência que sofria às mãos do marido, que a matou e depois se suicidou. O relatório da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica volta a apontar falhas às instituições e lamenta as oportunidades de intervenção perdidas

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Por Graça Henriques

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Maria, chamemos-lhe assim, tinha 50 anos e foi encontrada morta deitada na cama. O seu corpo já estava em avançado estado de decomposição e apresentava sinais de violência. Ao seu lado, na mesa-de-cabeceira, um bilhete escrito e assinado pelo marido. “Eu não queria fazer isto eu fui para o monte acabar [com] a minha vida.” Nesse mesmo dia 5 de julho de 2017, no monte a cerca de 100 metros da casa do casal, o homem apareceu enforcado numa árvore. Maria morreu às mãos do homem com quem viveu quase 30 anos, uma vida repleta de violência e entorpecida pelo álcool que ambos consumiam. Há registo de três inquéritos por violência doméstica, todos arquivados. Mas todos os serviços por onde o caso passou falharam – a GNR, o Ministério Público, a Segurança Social, o centro de Saúde e até a Rede de Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. Também a comunidade onde o casal estava inserido fechou os olhos ao que se passava e limitava-se a legitimar a violência de que tinham conhecimento com o consumo de álcool.

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As conclusões constam do oitavo relatório da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, que procura saber o que aconteceu, o que correu mal nestas situações, onde e se falhou a rede: “A informação recolhida no presente caso permite constatar que [Maria] teve contactos ao longo de oito anos (20.03.2009 a 29.05.2017) com entidades de cinco áreas da intervenção do Estado e da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD), que procederam à recolha de dados, mas cujas intervenções se caracterizaram por serem meramente reativas, parcelares e descontinuadas, e que podem ter constituído oportunidades perdidas de intervenção.”

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A saber: por exemplo, a área da saúde, refere o relatório, desde desde 2009 até à morte de Maria, “limitou-se ao tratamento sintomático e à reparação das lesões físicas e psicológicas, sem que procurasse averiguar da sua origem, nomeadamente se decorrentes da existência de violência doméstica ou, pelo menos, sem que tal pesquisa tivesse sido documentada”. E vai mais longe: “Mesmo no único caso em que há registo de violência doméstica, não foi desencadeada qualquer medida no sentido de precaver a repetição de novos acontecimentos.”

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O corpo de Maria apresentava muitos danos que terão sido produzidos em vida: lesões traumáticas na face, tórax, região lombar, braço esquerdo e em ambas as pernas. A autópsia apontou para a hipótese de homicídio por asfixia mecânica por compressão torácica. Tinha uma taxa de alcoolemia de 3,17 gramas. Os exames toxicológicos ao marido, que se enforcou, mostraram uma taxa 0,22 de álcool no sangue.

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Três inquéritos, três arquivamentos

A primeira participação, que deu origem a um inquérito de 2014 no Ministério Público, teve origem numa deslocação da GNR à casa do casal – onde nesse dia estava a filha de 26 anos que sofre de problemas psíquicos. Os dois estavam embriagados e Maria queixou-se de várias agressões e de o marido a ameaçar de morte. Mas não quis beneficiar do estatuto de vítima e o agressor não foi constituído arguido.

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O Ministério Público decidiu encerrar o inquérito porque Maria não quis prestar posteriores declarações nem se submeteu a exame médico, o que terá dificultado meios de prova. No decurso do inquérito, foi acompanhada pela Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica que a encaminhou para uma estrutura de apoio a dependências, por causa do consumo de álcool.

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Um ano depois, há uma nova participação e uma nova deslocação à casa do casal, para onde se tinha deslocado a irmã de Maria que disse não conseguir contactar com ela há dois dias e que ela estaria sequestrada pelo marido – quando este não estava presente, Maria dizia “ser agredida constantemente por este e ameaçada de morte por diversas vezes, temendo pela sua vida”.

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Mas perante a GNR – certamente por medo – Maria negou e disse que tinha o braço partido por ter caído das escadas e que tinham danificado o cartão do telemóvel para não estarem sempre a ser incomodados pela família.

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Depois das agressões, disse-lhe que era “puta”, “vaca”, “cadela” e que não iria dormir na cama com ele, que era melhor deitar-se no chão

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Os vizinhos também não quiseram falar, disseram que nunca presenciaram agressões mas que, às vezes, ouviam gritos de aflição de Maria e discussões entre o casal. Mas que “ninguém tom[a] partido por nenhuma das partes visto ambos serem alcoólicos”.

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O caso foi arquivado mais uma vez. Porque a irmã de Maria não prestou depoimento e ela negou, de novo, as agressões.

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28 de junho de 2016. Quando o marido chegou, Maria não estava em casa e a consequência foi que ele a agrediu e tentou asfixiar com uma toalha – só parou antes de ela desfalecer. Depois das agressões e a seguir ao jantar, disse-lhe que era uma “puta”, “vaca”, uma “cadela”, e que não iria dormir na cama com ele, que era melhor deitar-se no chão.

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No dia seguinte, a GNR atribuiu-lhe o estatuto de vítima e o nível de risco foi classificado como elevado. Mais uma vez Maria não fez o exame-médico legal. E recusou ser encaminhada para uma casa de abrigo. A solução encontrada pela Segurança Social foi a casa de uma irmã. Passaram-se praticamente dois meses e a 19 de agosto a GNR inquiriu Maria, mas esta recusou prestar declarações. Nessa data fez-se a reavaliação do risco, que desceu para médio. O marido também não falou, não havia mais testemunhas e o MP arquivou o terceiro inquérito.

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Como tudo e todos foram falhando

Na análise que faz a todo o processo, a Equipa Retrospetiva presidida pelo procurador Rui do Carmo refere que a estrutura de Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica, que em 2014 acompanhou Maria por maus tratos físicos e psicológicos graves da parte do marido, encaminhou a vítima para uma entidade de apoio às dependências, face ao consumo excessivo de álcool, “sem ter promovido o acompanhamento continuado quanto ao contexto de violência doméstica”.

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Este ano, já há registo de 33 vítimas de violência doméstica.

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E refere ainda que a Segurança Social – que determinou, em 2016, um pedido de acolhimento da vítima numa casa de abrigo – considerou Maria estabilizada logo que esta foi acolhida na casa de uma irmã, “nada mais tendo feito para averiguar da (des)continuidade das agressões e das necessidades de proteção, apoio e assistência”, tanto mais que passados dois meses a mulher voltou à casa para viver com o marido.

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Para a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, tanto o Ministério Público como a GNR “tiveram uma ação claramente insuficiente para fazer cessar o ciclo de violência” contra Maria e “demitiram-se, do ponto de vista criminal, de efetuar uma efetiva investigação e recolha de prova”. Tendo para isso justificado a sua atuação meramente formal com as hesitações e a pouca vontade de colaborar da vítima e sem que tivesse desenvolvimento trabalho para identificar outros meios de prova e tendo optado por arquivar os inquéritos.

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Acresce que Maria foi sempre atendida por guardas sem formação na área da violência doméstica.

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“O sistema de intervenção, como um todo, falhou, não foi capaz de articular e transmitir a informação entre os vários setores”

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Já o Ministério Público – refere o relatório – no inquérito que arquivou por insuficiência de prova e onde no seu decurso se avaliou como grave o risco para a saúde, integridade física e para a vida da vítima (apesar de esta não ter requerido continuar a beneficiar do estatuto de vítima) não ponderou a comunicação da situação às estruturas da RNAVVD para que fosse garantido o seu acompanhamento e a continuidade do apoio social.

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Conclusão: “O sistema de intervenção, como um todo, falhou, não foi capaz de articular e transmitir a informação entre os vários setores, de compreender e interpretar as especificidades, os receios, as inseguranças, as hesitações e os não ditos da vítima, de os ler no quadro da grande fragilidade e dependência alcoólica. Também a comunidade local parece ter desistido de a proteger.”

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Neste oitavo relatório, a EARHVD recomenda que o Governo elabore com urgência o manual de atuação sobre a ação dos órgãos de polícia criminal nas 72 horas seguintes à apresentação das denúncias de violência doméstica. Para prevenir mais casos como o de Maria, ou das dezenas de mulheres que todos os anos são mortas por companheiros e ex-companheiros. Este ano já há registo de 33 homicídios em contexto de violência doméstica.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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