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Coronavírus: “Todo dia, entrego a merenda e a lição dos meus alunos de casa em casa”

Saiu no site MARIE CLAIRE

Veja a publicação original: Coronavírus: “Todo dia, entrego a merenda e a lição dos meus alunos de casa em casa”

A educadora Cleusa Regina de Vargas de Araújo, de 60 anos, vive em Gavura, no interior de Santa Catarina, e sempre batalhou para levar instrução a todos. Mas, com a pandemia do novo coronavírus, percebeu que muitos de seus alunos deixaram de frequentar às aulas por falta de computador e internet. Desempregados, seus pais não tinham nem como buscar a merenda disponibilizada pela prefeitura – para muitos, a única refeição do dia. Apesar de fazer parte do grupo de risco, Cleusa decidiu então ir até eles. Diariamente, leva o lanche e a lição até cada um; e dá aula do lado de fora de suas casas – mesmo que, para isso, precise andar mais meia hora no meio da estrada e do mato

“Nasci em 1960 em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, somos em cinco irmãos. Sempre fomos muito humildes, mas de grandes valores. Filhos de ferroviário, moramos por muito tempo dentro de um vagão de trem e vivíamos pulando de cidade em cidade. Durante toda a minha infância, estudei em escolas públicas e, muitas vezes, meus irmãos e eu não terminávamos o ano letivo por causa das constantes mudanças. Em 1978, voltamos a morar em Santa Maria. Só então pude terminar o ensino fundamental.

Quando ainda estava no ensino médio, me casei. Anos depois, já com dois filhos, meu marido, que é cozinheiro, conseguiu um emprego em Gavura, no interior de Santa Catarina, e nos mudamos. Não havia terminado o colégio, mas como sempre dancei, fui dar aulas gratuitas de balé para crianças. Até que uma amiga me convidou para ajudá-la na APAE da cidade auxiliando as crianças especiais. Com a dança como ferramenta, ensinei coordenação motora, lateralidade e noção de espaço a elas. Também a tomar banho, pegar os talheres e se sentar à mesa. Foram 11 anos de trabalho social.

Em 2003, era dia de Natal, quando sofri um aborto espontâneo. Meu marido havia ficado em casa com as crianças e, ali, sozinha no hospital, decidi que no ano seguinte me prepararia para fazer uma faculdade, mesmo sem condições financeiras. Pois me joguei nos estudos e consegui entrar para o curso de Educação Infantil e Administração Escolar, em Joinville.

Durante quatro anos, percorri diariamente os quase 40 quilômetros até Joinville de ônibus, na ida e na volta. Muitas vezes, saía de casa só com o almoço e retornava à meia-noite sem ter comido mais nada. Na faculdade, vendia os calzones deliciosos que meu marido fazia para ajudar nas mensalidades e no transporte. No último ano da faculdade, me empenhei ainda mais e consegui fazer uma pós graduação aos sábados em Práticas Pedagógicas e Gestão Escolar. Tinha sede e fome de conhecimento. Em seguida, a prefeitura da minha cidade me contratou como professora efetiva e passei a ensinar arte.

Lecionei em todas as escolas públicas da região. Para as mais afastadas, ia de carona ou, muitas vezes, a pé em estrada de terra e debaixo de chuva. Mas nunca deixava meus aluninhos na mão. Cheguei a lecionar em três lugares no mesmo dia.

Em 2016, fui nomeada diretora em uma escola em Baraharas, a 15 quilômetros da minha cidade. Todos os dias, pegava o ônibus às seis da manhã e fazia quatro paradas para buscar as crianças que não tinham com quem ir à escola. No fim do dia, deixava todas em casa. Dois anos depois, recebi a informação que essa escola se juntaria a outra. Para garantir que nenhum de meus alunos parasse de estudar, fui até a casa de cada um deles convencer os pais a deixar que eles mudassem de colégio — não perdi nenhum deles.

No novo colégio, construímos um refeitório, duas salas de aula e dois banheiros com chuveiros para que eu pudesse dar banho nos pequenos. Depois de ajeitar tudo por lá, fui transferida para a Escola Municipal Maria Martins Budal, que, em plena rodovia BR 10, praticamente no meio da estrada, recebe 120 alunos do ensino fundamental, do pré ao 5º ano.

Quando a pandemia do novo coronavírus foi decretada, nos organizamos para dar aulas on-line, conforme determinação do Governo Federal, e distribuir os kits de merenda – para muitos, a única refeição do dia. Não precisou de muito tempo para eu perceber, porém, que grande parte dos pais não apareceu para retirar o auxílio nem respondeu às mensagens enviadas por mim. Preocupada, decidi então ir até eles.

Me deparei com muita gente em depressão porque perdeu o emprego e não tem perspectiva de futuro. A realidade é que a maioria dos pais de nossos alunos trabalham como pedreiros, ajudantes de obras, frentistas, ou são funcionários de fábricas. Portanto, muitos não têm computador em casa e, os que têm celular, carecem de sinal de internet. Também não é todo mundo que pode ir até a escola pegar a merenda e o material didático. Assim, passei a ir até suas casas levar o que for preciso. Inclusive, carinho e atenção.

Cleusa dando aula em meio à pandemia (Foto: Acervo pessoal/ Herison Schorr)
Cleusa a caminho da casa de seus alunos (Foto: Acervo pessoal/ Herison Schorr)

Para que ninguém perca o ano letivo, as professoras mandam as atividades para o meu e-mail, eu imprimo e levo para os alunos. Na maioria das vezes, meu marido me leva até os bairros mais distantes, mas tem dias que o carro não está disponível e vou a pé mesmo. Atravesso a BR-101 andando por mais de meia hora, no meio da estrada e do mato. Assim, posso vê-los (mesmo que de longe), ensinar as lições do dia, saber como estão.

Tomo todos os cuidados necessários, mas não deixo de ir por nada. Saio de máscara e sempre com álcool gel na bolsa. Fico do lado de fora, e eles assistem às aulas pela janela. Quando chego em casa, deixo meu sapato na porta, tiro toda a roupa, coloco para lavar e vou direto para o banho. Um dos alunos, o Gabriel, me disse outro dia: ‘Eu já tenho máscara, posso voltar para a escola?’. Isso me emocionou demais, porque a angústia dele também é a minha.

Muita gente da família briga comigo porque estou no grupo de risco, acabei de fazer 60 anos, e não devia sassaricar por aí. Mas não medirei esforços para que todos os nossos alunos tenham direito a um futuro melhor. E isso, sabemos, só virá com educação de qualidade.”

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