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Como o mal-estar na identidade masculina molda a política dos nossos tempos

Saiu no site FOLHA DE S.PAULO

 

Veja publicação original:    Como o mal-estar na identidade masculina molda a política dos nossos tempos 

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Autora investiga como a mudança na ideia de masculinidade abriu espaço para ressentimento preconceituoso

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Por Juliana de Albuquerque

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Autora investiga como a mudança na ideia de masculinidade, acelerada por transformações sociais, abriu espaço também para expressões políticas baseadas em ideias preconceituosas.

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homem vê paraíso
Ilustração – daniloz

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Em sua célebre biografia de Sigmund Freud, o inglês Ernest Jones menciona uma conversa entre o médico psicanalista e a princesa Marie Bonaparte: “A grande questão que nunca foi respondida e para a qual eu também nunca fui capaz de encontrar uma resposta, apesar dos meus 30 anos de investigação sobre a alma feminina, é: o que quer uma mulher?”.

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Para melhor compreendermos a observação de Freud, é necessário analisar o contexto histórico em que surge a psicanálise. Afinal, segundo a escritora Lisa Appignanesi, autora de “Mad, Bad and Sad: A History of Women and the Mind Doctors from 1800 to the Present” (2008), a psicologia dos séculos 18 e 19 teria evoluído graças à observação de distúrbios emocionais comumente atribuídos à mulher, como a histeria —cujo mito da exclusividade feminina foi contestado por Freud em um ensaio de 1896.

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Appignanesi explica que muitos desses distúrbios não seriam congênitos, mas representariam o conflito entre o indivíduo e as novas circunstâncias sociais impostas pela modernidade. Uma das contribuições da psicanálise para compreendermos o indivíduo moderno repousa na ideia de que cada um de nós se sente dividido entre a satisfação dos nossos próprios interesses e o cumprimento de uma obrigação para com o próximo.

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Através da observação dessa dinâmica, podemos inferir que a fortaleza do indivíduo contra pressões sociais seria caracterizada por seu maior ou menor grau de autoconhecimento e pela sua capacidade de negociar a satisfação dos seus desejos junto ao grupo.

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Logo, fragilizada pela sua tradicional situação de opressão social, a mulher teria sido a primeira a sofrer com a reviravolta do paradigma cultural.

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Dito isso, é necessário questionar se a crise de masculinidade contemporânea não seria um reflexo tardio dessa mesma crise de identidade que afetou as mulheres quando do surgimento do mundo moderno. Expressões daquilo do que Freud chamaria de mal-estar na civilização, ou seja, a sensação de desconforto ao nos defrontarmos com obstáculos criados pela cultura para a realização da nossa felicidade individual.

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Afinal, será que realmente sabemos o que querem os homens? Ou será que durante todo esse tempo não passamos a entender o papel do homem em nossa cultura com a mesma equivocada certeza com que anteriormente costumávamos encarar o desempenho da mulher?

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Em busca do que configura o mal-estar civilizatório entre os homens, é preciso investigar até mesmo o que entendemos por masculinidade.

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Para a socióloga Raewyn Connell, autora de “Masculinities” (1993), estudo pioneiro sobre o tema, o conceito de masculinidade não seria unívoco: deveria ser aplicado a partir da observação das diferentes posições que o indivíduo do sexo masculino ocupa em uma hierarquia das relações de gênero.

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Segundo a autora, a masculinidade seria uma ideia sujeita a mudanças históricas e dependente de uma relação entre o indivíduo que busca encarnar esses valores masculinos e os demais membros da sociedade —incluindo as mulheres, que, através das suas interações com homens e garotos, também exerceriam um papel fundamental tanto na criação como na perpetuação de valores tradicionalmente atribuídos ao homem.

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Para Connell, “a masculinidade não é apenas uma abstração ou uma identidade pessoal. Ela também se estende ao mundo, na fusão com relações sociais organizadas. Para entender a masculinidade historicamente, devemos estudar as mudanças nessas relações sociais”.

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Desta forma, em “O Que É um Homem? – Psicanálise e História da Masculinidade no Ocidente” (2015), o psicanalista Pedro Ambra observa que, entre os séculos 17 e 20, a crise de masculinidade pode ser caracterizada como um fenômeno típico de “países de civilização requintada, onde mulheres gozam de maior liberdade relativa e parecem ser consecutivas a alterações ideológicas, econômicas ou sociais”.

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homem perdido na floresta
Ilustração de capa da Ilustríssima – daniloz

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Em sua configuração atual, essa crise estaria relacionada às dificuldades dos homens para se adequarem à ideia de masculinidade que lhes foi comunicada pela sociedade, bem como no surgimento de expressões alternativas do que compreendemos como masculino. Dentre os sintomas desta crise —ou mal-estar—, figuram obesidade, dependência química, vício em jogos eletrônicos, envolvimento com o crime, comportamentos suicidas e o baixo rendimento escolar de garotos.

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Este último é tema de “Why are boys falling behind at school?” (por que os meninos estão ficando para trás na escola?), reportagem de Simon Kuper e Emma Jacobs publicada na FT Weekend Magazine em dezembro.

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Os autores levantam dados que mostram que o rendimento escolar dos meninos em países desenvolvidos é pior que o das meninas: “Eles são muito piores em leitura, estão menos propensos a frequentar uma universidade, e a liderança masculina na matemática está encolhendo (e tornando-se imperceptível em países como China e Singapura). (…) Historicamente, o sexismo protegia os meninos. Nos anos 1970, alguns sistemas escolares britânicos deliberadamente melhoravam as notas dos garotos. (…) Com a diminuição do sexismo nas escolas, as meninas começaram a superar o desempenho dos meninos”.

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Assim como em Connell e Ambra, o entendimento das mudanças na definição de masculinidade ao longo da história é igualmente central para a tese da escritora Susan Faludi em “Stiffed: The Betrayal of the Modern Man” (1999), livro sobre como mudanças nas circunstâncias políticas, econômicas e sociais ocorridas no pós-Segunda Guerra Mundial ameaçam o mito do homem como mestre de todas as coisas.

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A principal dessas mudanças seria caracterizada pela passagem de um modelo econômico de produção para o atual modelo de prestação de serviços e consumo. “Passamos fundamentalmente de uma sociedade que produziu uma cultura para uma cultura enraizada em nenhuma sociedade real. (…) [Antes] vivíamos em uma sociedade na qual os homens, em particular, participavam sendo úteis na vida pública. Agora estamos cercados por uma cultura que incentiva as pessoas a desempenharem quase nenhum papel público funcional, apenas decorativo ou consumidor”, escreve Faludi.

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Assim, enquanto a masculinidade atrelada à sociedade de produção baseava-se em um conceito de utilidade, em que o homem era visto como sujeito ativo, exercendo as funções de provedor e protetor da sua família e dos interesses sociais, hoje a masculinidade festejada pela sociedade de consumo seria meramente ornamental, retirando do homem a sensação de que ele pudesse ter qualquer aplicação ou finalidade.

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Faludi, que também é autora de um dos clássicos da recente literatura feminista —”Backlash: The War Against Women” (1991)—, explica que uma das dificuldades iniciais em escrever sobre o drama do homem contemporâneo teria sido conseguir romper com a ideia de que a crise da masculinidade seria provocada por “algo que os homens estavam fazendo sem relação com o que estava sendo feito a eles, e que a cura certamente seria encontrada quando descobríssemos como fazer para que os homens deixassem de agir desse jeito”.

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Superado esse primeiro obstáculo, Faludi chegou à conclusão de que vivemos em um sistema alienante tanto para homens como para mulheres. Daí a necessidade de sempre estudarmos as situações de privilégio e opressão em relação a contextos específicos nos quais os indicadores de gênero devem ser analisados apenas como um entre vários outros indicadores das nossas posições na sociedade. Dentre eles: raça, cor, religião, saúde física e mental, idade, escolaridade e circunstâncias econômicas.

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Sem levar em consideração a dinâmica que existe entre todos esses indicadores, feministas e liberais jamais conseguirão superar o susto provocado por fenômenos como o apoio de mulheres e de outras minorias a candidatos da nova direita.

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Nos últimos anos, um tipo específico de homem —branco ou convenientemente mais claro, empobrecido e sem expressão social— vem buscando validação para preconceitos e comportamentos arbitrários na literatura de autoajuda produzida pelos representantes da chamada “manosphere”, isto é: o conjunto de publicações online cujos argumentos alimentam a fantasia da superioridade masculina através da leitura enviesada de teorias científicas e do cânone literário ocidental como forma de oposição aos discursos do movimento feminista.

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Exemplo disso é a apropriação dos ensinamentos da filosofia estoica por influenciadores digitais ligados às comunidades Red Pill e Men Going Their Own Way (MGTOW): redutos da masculinidade tóxica normalmente associados à direita reacionária norte-americana.

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Segundo Donna Zuckerberg, autora de “Not All Dead White Men” —estudo recém-publicado pela Harvard University Press sobre a relação entre os clássicos e a misoginia na era digital—, integrantes dessas duas comunidades digitais apropriaram-se da filosofia antiga como uma forma de justificar a crença de que os homens brancos seriam os verdadeiros guardiões da cultura ocidental.

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No entanto, a autora observa que —nessas comunidades específicas— o culto aos clássicos seria a expressão da crise da identidade masculina engatilhada pela ascensão social das minorias: “A análise de textos antigos feita pela comunidade Red Pill pode parecer simplista e equivocada para nós. (…) Suas interpretações dos clássicos devem ser abordadas não como leituras do mundo antigo, mas como representações do mundo que eles desejam. Assim, idealizam um modelo para o comportamento de gênero que apaga grande parte do progresso social alcançado nos últimos 2.000 anos e estão usando a literatura sobre gênero para justificá-lo”.

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Ironicamente, a apropriação do cânone ocidental pelos homens da direita reacionária assemelha-se ao ataque das feministas radicais a essa mesma tradição. Ora, nenhum desses dois grupos parece ter ciência de que a autoridade de uma fonte antiga deve ser examinada à luz da sua relevância para compreendermos o mundo em que vivemos.

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A beleza do cânone está em demonstrar o caráter revolucionário do gênio humano. Assim, a autoridade dos estoicos não se justificaria através da cristalização dos preconceitos de uma época, mas em fomentar questionamentos sobre eles, em patente ato de rebeldia contra o status quo.

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Nas últimas eleições presidenciais norte-americanas, o gênero esteve entre os indicadores mais importantes de apoio a Donald Trump. Entretanto, raça e níveis de escolaridade atrelados ao gênero teriam sido ainda mais determinantes.

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De acordo com pesquisa de boca de urna realizada pela CNN nas últimas eleições presidenciais norte-americanas, embora Trump tenha encontrado maior suporte entre os homens, ele ainda contou com o apoio de 41% de todo o eleitorado feminino. Entre as mulheres brancas, 52% votaram em Trump, mas, entre brancas sem terceiro grau completo, 61% ajudaram a eleger o candidato republicano.

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Entre o eleitorado masculino, Trump encontrou o seu maior apoio: 71% dos homens brancos sem ensino superior completo. Embora Hillary Clinton tenha conquistado a maioria do voto popular, Trump venceu a corrida presidencial com o apoio do colégio eleitoral ao conquistar votos em estados em que a população branca do país se encerra em bolsões de pobreza endêmica.

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Dentre esses bolsões, o principal exemplo vem dos montes Apalaches, antiga zona de concentração da indústria pesada norte-americana, onde famílias inteiras foram afetadas pelo encerramento das operações de plantas industriais em que se empregava o operariado masculino.

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Se até a metade do século 20 essa população conseguia se manter com algum esforço, hoje ela se tornou desesperançosa. Em regiões como os Apalaches, o desemprego entre os homens de classe média baixa desencadeou crises de habitação, educação e saúde.

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Para compreender um pouco mais como o desemprego masculino e todas essas crises interferem na dinâmica das estruturas familiares —comprometendo o rendimento e a permanência escolar das crianças apalachianas—, uma boa opção é “Hillbilly Ellegy”, livro de memórias do escritor e advogado J.D. Vance, apontado pela imprensa norte-americana como uma das perspectivas possíveis para a análise do vínculo entre o ciclo vicioso da pobreza na população branca e as origens do ressentimento desta contra a agenda progressista.

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Em sua análise, Vance relata que os brancos dos Apalaches formariam a parcela populacional mais derrotista e cética entre os norte-americanos: “Socialmente, nós estamos mais isolados do que nunca e transmitimos esse isolamento para os nossos filhos. Nossa religião mudou, ela está construída em torno de igrejas que adotam uma pesada retórica emocional, mas falham em prestar o tipo de apoio social necessário para permitir que crianças pobres consigam superar os seus problemas. Muitos de nós abandonamos a força de trabalho ou optamos por não deixar a região em busca de melhores oportunidades. Nossos homens sofrem de uma crise peculiar de masculinidade. Algumas das características que a cultura local lhes inculca dificultam o sucesso em um mundo em transformação.”

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Segundo o autor, o desemprego desses homens teria afetado a percepção de valores masculinos fundamentais para a cultura caipira —”hillbilly”—, como lealdade, honra, tenacidade e valentia. No entanto, se por um lado esses valores parecem ter perdido espaço em um novo paradigma cultural ditado pelo consumo, por outro o isolamento econômico e a falta de instrução desta parcela populacional podem estar afetando a capacidade de ela expressar esses valores de novas maneiras.

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Ora, valentia e tenacidade não carecem de estar necessariamente ligadas à resistência e à força física. Podem ser aplicadas a um contexto intelectual, ou expressas como valores centrais para a superação dos desafios impostos ao homem comum na busca por felicidade em uma cultura na qual o sucesso individual depende, cada vez mais, da capacidade de gerar e consumir conteúdos e conhecimento.

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É possível inferir que o mal-estar do homem em nossa cultura pode —e deve— ser atenuado, sem dar espaço a ressentimentos contra as conquistas das mulheres e outras minorias. Assim como de nada adianta às feministas radicais combater a vitalidade do cânone, de nada adianta aos homens adotarem ideologias machistas para justificar qualquer pretensa superioridade. Nisso, todos se revelam igualmente infantilizados por uma sociedade cada vez mais alienante.

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A melhor receita para os homens pode ser a proposta da psicanálise de dar ao indivíduo condições para que ele possa se desenvolver sem se deixar abalar tanto pelas pressões do grupo e pelas confusões dos seus próprios instintos.

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Afinal, uma sociedade capaz de prezar por valores de equidade, diversidade e inclusão depende cada vez mais da aptidão individual para colocar em prática a autonomia. E é no sentido de uma maior busca por autonomia que podem ser interpretadas as reflexões finais de Susan Faludi em seu livro sobre a crise da masculinidade.

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Segundo a autora, hoje os homens têm a oportunidade de se juntar à luta das mulheres para criar um mundo cada vez mais livre: “Porque, se os homens lutam para se libertar das suas crises, a sua tarefa não é, no final, descobrir como ser homem —mais exatamente, a sua masculinidade reside em descobrir como ser humano. (…) Em aprender a travar uma batalha sem inimigo, conquistar uma fronteira de liberdade humana e agir a serviço de uma fraternidade que nos inclua a todos”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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