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Como é banal viver e morrer aqui

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:    Como é banal viver e morrer aqui

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Em sua nova coluna, Stephanie Ribeiro reflete sobre um texto de Fernanda Young no qual ela descrevia a dificuldade em comprar um remédio durante uma crise de asma de madrugada e compara a recentes casos de violência no país

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Por Stephanie Ribeiro

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Em 2013, a escritora, apresentadora e roteirista Fernanda Young escreveu uma publicação em que questionava não ter conseguido comprar um remédio, essencial durante uma crise de asma:

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2:00 da manhã, a crise de asma me leva a farmácia. Tenho 80 reais e um cartão AMEX. O SISTEMA esta com problema. valor da compra: 87… Asma pode matar, e já tive crises severas. Peço um desconto. O vendedor diz que não pode. Estou passando mal e explico, ele se nega a ajudar. Tento ser rápida, preciso do medicamento. Ele diz que com receita é mais barato. Peço, nervosa, compaixão. O rapaz, Marcos, insiste que não. A culpa é do Sistema e ele não vai dar desconto, nem pagar do próprio bolso. Digo que sou mãe, que sou conhecida, que posso ter algo grave. Resolvo por um remédio, e deixo o outro. Uso imediatamente. Ameaço expor a farmácia por antiética, ninguém liga. Saio de lá um pouco melhor, passo em outra farmácia, O Sistema aceita, e eu o uso. Agora em casa penso sobre como é banal morrer aqui. No Brasil morrer é dar uma morridinha, como dar uma trepadinha, uma corridinha, uma dançadinha. Dane-se a vida. Um ciclista morre, e dane-se. Casas caem e danem-se, jovens se queimam enquanto comemoram e danem-se. São só morridinhas. Drogaria, estou melhor, e dane-se eu

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Li este texto após a morte de Fernanda, no último dia 25 de agosto, em decorrência de uma crise de asma, e fiquei pensando na frase: “Como é banal morrer aqui”.

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Nem uma semana depois, as manchetes de sites e jornais denunciam o caso de um jovem de 17 anos, amordaçado, espancado com um fio e torturado nu por seguranças na salinha de um supermercado. Menor de idade, ele foi humilhado e agredido porque, segundo ele próprio, tentou furtar uma barra de chocolate. Pesquiso preços de barras de chocolate: R$ 4, R$ 5 _as mais caras custam R$ 10. Lembrei da frase da Fernanda: É esse o valor de uma vida no Brasil? Esse valor justifica torturar por 40 minutos um menor de idade, que poderia não ter resistido?

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Num país que a cada 23 minutos mata um jovem negro, isso não é coincidência

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Em fevereiro, no Rio, um jovem de 19 anos foi morto num supermercado, asfixiado durante uma ação desmedidamente violenta de um segurança, acompanhada por sua mãe, que implorou pela vida do rapaz. Perder um filho dói, mas perder um filho assassinado na sua frente, dentro de um supermercado? Pedro Gonzaga morava num bairro de elite no Rio de Janeiro. Já o jovem de 17 anos torturado em São Paulo morava nas ruas desde os 12. A única coisa que os une é o gênero e a cor. Num país que a cada 23 minutos mata um jovem negro, isso não é coincidência. Também não é coincidência que, em meses, temos mais um número, mais um dado, mais uma vítima, no país onde torturadores são endossados e idolatrados pelo presidente.

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Quatro, 5, 10 ou até mesmo 87 reais não são nada perto de nossas vidas e de nossa dignidade. No entanto, num sistema que precifica pessoas, objetifica e descarta como lixo, é difícil para alguns entender que não dá para comemorar mortes como se fosse um jogo de futebol; que não dá para gritar que bandido bom é bandido morto; que não dá para ignorar o genocídio de uma população inteira baseada em cor e origem; que não podemos fechar os olhos e continuar pulando os corpos que se estendem nas calçadas do país; que não existe um mundo melhor para si se, da porta pra fora, endossamos e pedimos políticas de morte.

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Quando não atingimos números que sustentam nossa humanidade, viramos números que alimentam estatísticas. Vidas, não números. Como é banal viver e morrer aqui.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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