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A REALIDADE ABAFADA DOS ESTUPROS COLETIVOS NO BRASIL

Saiu no site Marie Claire: 

Três adolescentes, três cidades e dezenas de agressores. Fernanda, Camila e Sandra* foram violentadas por vários homens de uma só vez. A frequência com que a crueldade acontece deixa claro: há muito mais casos de abuso coletivo do que se notifica no Brasil. Em entrevista à Marie Claire, as três meninas denunciam as atrocidades a que foram submetidas e contam como fazem para recuperar a vida depois do trauma

Fernanda* tem 16 anos e adora filmes de terror. Na sexta­‑feira 13 de maio, passou a noite assistindo a seus preferidos na casa da avó, em São Paulo. Foi dormir quando já estava amanhecendo. Às 5 da tarde, pegou um ônibus para voltar para casa, na Zona Oeste da cidade. Cansada, dormiu no trajeto. Ao acordar, não reconheceu a vizinhança. Perguntou, então, para dois meninos se sabiam onde poderia pegar um ônibus de volta. Eles sugeriram que ela descesse com eles, para lhe mostrarem o ponto. Assim que colocaram os pés no asfalto, um deles a abraçou pelos ombros, colocou uma lâmina nas costas dela e disse: “Você vai com a gente”. Andaram por quase uma hora dentro de uma favela. Por onde passavam, cumprimentavam conhecidos. “Fiquei com medo de pedir ajuda”, diz Fernanda, com o olhar cabisbaixo e as mãos trêmulas. Chegaram a uma casa onde acontecia uma festa. Só havia homens. Os três atravessaram todos os cômodos e entraram em um quarto escuro. Os meninos pediram que ela tirasse a roupa. Ela respondeu que não o faria. Nesse momento, um terceiro homem entrou no cubículo e deu tapas, socos no rosto e chutes nas costas de Fernanda para obrigá-la a se despir. Implorando que ele parasse, ela perguntou o que tinha feito para eles. Quanto mais suplicava, mais eles a agrediam. Começou, então, a pior parte de um verdadeiro enredo de terror.

VEJA TAMBÉM: Maria Gabriela Manssur se destaca discutindo violência no “TV Mulher” 

O primeiro a estuprou. Depois o segundo. E então o terceiro. Depois os três juntos. “Foi entrando gente no quarto e não sei quantos foram ao todo. Chorei quieta e não falei mais nada. Me jogavam de um lado pro outro, como uma boneca de pano.” No fim da sessão de tortura, deram a ela uma garrafa de água. “Acordei só no outro dia, acho que fui dopada porque apaguei. Fiquei quieta para que pensassem que estava dormindo.” No domingo, outro pesadelo. “Foi todo mundo junto outra vez. Um deles colocou bebida alcoólica dentro da minha boca e me obrigou a engolir. Também esfregou cocaína no meu nariz. Fiquei zonza, mole, não conseguia mais me mexer. Lembro apenas de ficar olhando para fora do quarto pela fresta da porta e vi que tinha muita gente na casa. Minha vontade era morrer para acabar com aquilo logo. Depois que acabou, me jogaram na rua, de sutiã, shorts e sapatilha.”

Não sei quantos homens foram ao todo. Me jogavam como se eu fosse uma boneca
Fernanda*, 16 anos, estudante
Fernanda* ficou três dias nas mãos dos agressores. Agora, luta para superar as marcas da dor (Foto: Arquivo pessoal)

Ainda embriagada, Fernanda foi abordada por um homem que perguntou se ela estava bem e ofereceu um prato de comida. “Estava com muito medo de eles se arrependerem de me soltar e topei sair dali com aquele homem”, afirma. Foram para a casa dele. Depois de dar uma blusa a ela e pedir uma pizza, disse que estava tarde para pegar um ônibus e a deixaria num ponto ao amanhecer. Não permitiu que ela usasse seu telefone. Ele deixou Fernanda às 4h30 da manhã. A rua estava vazia. “Comecei a andar. Queria encontrar alguém para pedir ajuda”, diz. Um carro começou a segui-la. Ela apertou o passo. O carro parou na frente dela. Fernanda reconheceu o motorista: era um dos estupradores. Antes que esboçasse qualquer reação, ele mostrou uma faca e a obrigou a entrar no carro. “Passamos o dia todo rodando de um lado para o outro. Ele não me deixou sair e, quando ameacei gritar e fugir, disse que me mataria. Parou o carro várias vezes em terrenos baldios e me violentou. Perto da meia-noite, me deu R$ 10, parou em frente a uma boate e disse: ‘Pega esse dinheiro e some senão vai dar ruim pra nóis’.” Fernanda pegou um ônibus para Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo. Chegando ao ponto final, pediu um telefone emprestado. Ligou para a mãe. “Ouvir aquela voz me trouxe o mesmo sentimento de quando era criança e ela vinha me buscar na escola. Sabia que dali em diante tudo melhoraria. Minha mãe estaria comigo.”

Histórias como a de Fernanda são parte de uma realidade abafada no Brasil: os estupros coletivos. No mês passado, o país ficou chocado com o crime em que um grupo de criminosos (estima-se que 33 homens) violentou uma adolescente de 16 anos depois de um baile funk em uma comunidade carioca. Os agressores filmaram parte do pesadelo e divulgaram o abuso em redes sociais. Com a repercussão do caso, o país e os políticos acordaram para o drama. Em meados de maio, o Senado aprovou um projeto de lei que aumenta a pena para a agressão sexual cometida em bando. O texto segue, agora, para a Câmara. Segundo a autora, a senadora Vanessa Grazziotin, esse é um crime pouco notificado no país. “Se 90% dos estupros individuais não são relatados, o número é ainda maior para os coletivos. Não temos estatística porque quase não há denúncias. É uma situação ainda mais humilhante para a mulher”, afirma Vanessa.

Especializada em atender vítimas de violência doméstica, a promotora de Justiça Maria Gabriela Mansur, de São Paulo, diz que há um roteiro comum nos enredos de estupro coletivo. Em geral, as vítimas são adolescentes. Os agressores costumam ser menores de idade, mas motivados e liderados por um adulto. Em geral, criminosos temidos ou populares que têm o hábito de dopar a vítima ou se aproveitar do fato de ela ter bebido ou usado drogas. “As meninas não denunciam por medo de retaliação. Ficam com a moral e a intimidade profundamente abaladas. Não pedem ajuda por medo de serem questionadas e até ridicularizadas”, afirma Maria Gabriela. “Já atendi alguns casos e todos tinham esse componente.”

O HORROR SE REPETE
Quando tinha 15 anos, a carioca Sandra*, 20, conheceu um menino pelo Facebook. Começaram a trocar mensagens e combinaram de se encontrar em um baile funk em um morro carioca. Ficaram juntos durante a noite. No meio da madrugada, ele a convidou para ir a um lugar mais reservado. “Achei que fôssemos para a casa dele, mas acabamos em um barraco vazio”, diz. “A gente estava se beijando quando dois outros meninos chegaram. Disse que ia colocar a roupa, mas eles vieram para cima de mim. Estavam muito doidos [com o uso de drogas]”, diz Sandra. “O menino com quem eu estava começou a gritar: ‘Calma, é normal, vai ser bom’”. Com medo, Sandra não rea­giu. Os estupradores a violentaram, um de cada vez. Ela não sabe quanto tempo durou. “Eles tiraram sarro de mim, conversavam entre eles, nunca comigo. Fiquei me sentindo um lixo e com muito medo. Os dois outros foram embora e continuei com o que conheci pelo Facebook. Esperei amanhecer para ir embora. Ele me levou até o ponto de ônibus e fui para casa.”

Sandra não contou sobre o estupro para ninguém. “Tenho medo de que eles me queimem [gíria para assassinar].” Nos meses que se seguiram, não conseguiu se relacionar nem se aproximar de homens. “Sempre lembro do que aconteceu. Depois disso, fiquei mais quieta, com dificuldade para dormir. Acordava a noite chorando e dizia pros outros que estava ‘com nervoso’.” Cinco anos depois, está casada e tem uma filha de 1 ano. O primeiro desabafo foi para uma amiga, há poucas semanas, quando o caso da adolescente carioca foi divulgado. “O maior medo da minha vida é eles saberem que contei o que aconteceu para alguém”, diz. A advogada Eloisa Samy, que trabalhou no caso da vítima agredida por 33 homens, costuma atender meninas carentes que sofreram violência sexual e diz que casos de estupro em comunidades não são raros. “Quem pratica esses atos convive com o medo de morrer e com a vergonha”, afirma. O caso dos 33 contra uma é emblemático. Depois que veio à tona, os criminosos ameaçaram a vítima de morte. Agora ela está em um programa de proteção à testemunha do governo federal e deixou o Rio de Janeiro.

Eles tiravam sarro de mim. Fiquei me sentindo um lixo e com muito medo. esperei amanhecer para ir embora”
Sandra*, 20 anos, estudante

No mesmo dia em que essa história paralisou o Brasil, outro caso, o de Camila*, de 17 anos, em Bom Jesus, no Piauí, também foi noticiado. Cinco dias após ficar com um rapaz, ele e outros quatro amigos a levaram para uma construção abandonada. “Estava sentada em uma praça quando perguntaram se eu queria ir para outro lugar com eles, não vi problema, já os conhecia, e respondi que sim. Acabamos indo para a laje de uma obra. Lá, um deles disse que era a última vez que íamos nos encontrar e que nunca se sabe o dia de amanhã. Perguntei se ele ia morrer, nunca imaginei que fosse comigo”, conta Camila. “Outro me ofereceu uma garrafa com bebida alcoólica. Tomei quase metade. Pouco tempo depois, comecei a sorrir. Olhava minha mão e a via grande. Aí passei mal, fiquei com vontade de vomitar. Desci da laje com um dos garotos, que começou a se insinuar para mim. Eu o empurrei e em seguida desmaiei. Não lembro de mais nada.”

Um a um, a estupraram. Amarraram seus braços com a própria roupa e a amordaçaram com a calcinha. Colocaram isopor dentro de sua boca para evitar que gritasse por socorro. Morderam seu pescoço, machucaram suas mãos, costas e cotovelos. Camila foi encontrada no dia seguinte, desacordada e seminua. Foi levada inconsciente para o hospital. O Ministério Público pediu a prisão dos cinco. O maior de idade está preso e os quatro menores foram soltos pelo juiz do caso, Eliomar Rios Ferreira, alegando que os jovens têm bom comportamento.

A VIDA APÓS A TRAGÉDIA
Desde que voltou para casa, Camila tem enfrentado outro tipo de violência: a moral. Na escola, uma colega disse que a responsável pelo estupro era ela. Nas ruas da cidade, os olhares são de recriminação.  “As pessoas apontam o dedo. É uma mistura de preconceito e curiosidade. Fico preocupada e com raiva”, diz a tia da menina, que a cria. “Dizem que a culpa é minha por ter ido para a obra com eles. Fico triste, mas acho que não adianta reagir. Todo mundo acha que eles são inocentes porque são homens”, diz Camila. Ela conta que quase não tem dormido desde o episódio e que também adquiriu o hábito de falar sozinha. “Fico me fazendo perguntas, tentando entender o que aconteceu.”
Um deles me ofereceu bebida alcóolica. Comecei a sorrir e ver a minha mão muito grande. Passei mal” Camila*, 16 anos, estudante

Os moradores da cidade de Camila* dizem que ela é culpada pelo crime. Tia e sobrinha enfrentam o preconceito (Foto: Arquivo pessoal)
Os moradores da cidade de Camila* dizem que ela é culpada pelo crime. Tia e sobrinha enfrentam o preconceito (Foto: Arquivo pessoal)

A dificuldade de aceitar a violência é o primeiro estágio do trauma das vítimas desse tipo de crime. A psicóloga Adriana Marcondes, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, explica que a reação instantânea das agredidas é pensar que têm alguma responsabilidade na tragédia. “O raciocínio deve ser outro. Aquilo que acontece em nossas vidas não depende exclusivamente de nós mesmos. A pessoa não foi estuprada porque andou numa rua escura e sim porque lá havia um estuprador”, diz. Parte desse processo é  desenvolver uma rejeição com o próprio corpo. “Muitas vítimas de violência se­xual passam a se esconder em roupas largas e toucas depois do trauma”, afirma Sueli Amoedo, da Coordenadoria da Mulher de Taboão de Serra, um centro de acolhimento para mulheres nessa situação. É lá que Fernanda, de São Paulo, faz acompanhamento com terapeutas que trabalham a mente e o corpo. “Ainda não sabemos como reconstruiremos nossas vidas”, diz a mãe da adolescente, que pediu para ser afastada do trabalho para acompanhar a filha nas consultas médicas, judiciais e nos tratamentos.

Na noite em que foi finalmente solta, Fernanda foi para a delegacia. Fez boletim de ocorrência, exames no Instituto Médico Legal e foi atendida no hospital Pérola Byington, referência no tratamento de vítimas de estupro. Tomou coquetel antiviral, pílula do dia seguinte e anda com uma caixa de medicamentos que vai ter de tomar por seis meses. Ficou com um sangramento e uma ferida na vagina, hematomas e dores pelo corpo, parou de sair com os amigos e tem dificuldade até para falar. Para descrever seu estado psicológico, recorre a uma metáfora. “Imagine uma mosquinha. Alguém vai e tira as asas dela. Ela não pode mais voar. Depois, tira as patas. Ela não pode mais andar nem fazer qualquer outra coisa, a não ser esperar para morrer. É assim que me sinto. Eles tiraram tudo de mim”, diz. “O mundo ficou diferente. Sempre ajudei qualquer pessoa na rua e pensava que, se precisasse, teria alguém disposto para me acudir. A vida toda achei que os monstros só existiam nos filme de terror. Os monstros somos nós. Andam com a gente.”

Publicação Original: A realidade abafada dos estupros coletivos no Brasil 

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