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“A gente não quer ajuda, a gente quer o que é nosso por direito”, diz Bia Pankararu

Saiu no site AZ MINA

 

Veja publicação original: “A gente não quer ajuda, a gente quer o que é nosso por direito”, diz Bia Pankararu

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Militante da saúde indígena, Bia fala sobre a luta por terra, feminismo dentro da tradição e como podemos contribuir com a causa indígena

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Nas últimas semanas vimos manifestações e conquistas de povos indígenas que se articularam contra a proposta do Ministério da Saúde de municipalização da saúde indígena.

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Neste mês de abril, muitas programações institucionais e culturais se voltam para as tradições e o reconhecimento dos povos indígenas. Batemos um papo com Bia Pankararu, que leva no sobrenome o nome de seu povo.

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Mãe solo, LGBT e técnica em enfermagem, Bia é atuante na saúde indígena e fala das questões políticas recentes e como podemos nos aproximar e defender a causa indígena.

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Para quem estiver em São Paulo e quiser conhecer a causa de perto, Bia estará no Sesc Santo Amaro no próximo domingo, 07 de abril, para o bate-papo “Territorialidade Pankararu”, às 14h, junto a Clarice Josivavan da Silva e Gean Ramos.

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AzMina: Conte de você e da sua luta dentro da tradição indígena, por favor.

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Sou Bia, tenho 25 anos, sou filha de uma das 14 lideranças Pankararu que têm 14 aldeias e juntas formam a reserva. Por isso, convivi com a militância indígena, a cultura e a tradição desde sempre. Aqui em Pankararu a gente tem as nossas crenças e rituais muito presentes, faz parte do dia a dia o contato com o sagrado e o modo de encarar a vida e o bem estar.

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Meu pai não é indígena, é de São Paulo, então eu vivi parte da infância em São Paulo, o que me ajudou a ter uma visão do que é uma cidade, do contexto urbano. Fiquei sempre indo e vindo, mas aos meus 11 anos a gente – eu e minha mãe – se mudou de vez pra aldeia e se firmou aqui.

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Com 21 anos eu me formei técnica em enfermagem, fiz a seleção para trabalhar na reserva e hoje cubro 3 aldeias da equipe multidisciplinar de saúde indígena. A gente procura trabalhar em parceria com a medicina tradicional, com o entendimento popular do que é saúde, buscando preservar a especificidade de cada povo.

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Trabalhar na saúde indígena me faz também militante. Há 4 anos sou funcionária aqui na aldeia. Sou mãe solo, LGBT, e acho que essa minha geração de 20 e poucos anos está vindo muito forte e consciente do que é ser indígena e do que é lutar pelas nossas tradições de crenças. A gente vem nessa batalha de preservar mesmo. E para romper esta visão estereotipada e preconceituosa que a sociedade tem dos indígenas.

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AzMina: O governo de Jair Bolsonaro tirou da Funai a demarcação de terras indígenas e a transferiu para o Ministério da Agricultura. Quais impactos você espera dessa decisão?

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Bia: O impacto que eu espero dessa decisão é o pior possível. Porque a Funai é o único órgão criado exclusivamente para a proteção e garantia dos direitos indígenas. Então que tipo de poder a Funai vai ter? Ela já vem sendo sucateada, esquecida e abandonada há muito tempo, dificultando-a de exercer o seu papel de fato, o que justifica a existência dela.

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Se concretizar de fato essa transição, é como colocar o lobo pra cuidar das ovelhas. Mas seguimos na resistência.

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AzMina: Está havendo algum tipo de articulação entre o povo Pankararu e outros povos indígenas de resistência?

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Bia: Sempre existiu, existe e existirá. A articulação não diz somente respeito ao governo Bolsonaro. Existe uma articulação de apoio e resistência sobre vários outros temas. Quando um povo ou uma aldeia está passando por um processo de dificuldade, de conflito na sua área, as lideranças costumam se comunicar entre si dentro da própria terra e também com as lideranças e caciques das outras comunidades. Porque a luta de uma etnia não é só dela, é de todo mundo. Enquanto uma terra estiver em luta, todas as terras vão estar em luta também.

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AzMina: Há um plano de ação definido?

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Bia: O nosso plano de ação sempre é o fortalecimento e a união. Ou seja, continuarmos unidos, nos organizando, fortalecendo a Funai, o CIMI [Conselho Indigenista Missionário], os conselhos locais e distritais, e trazendo para perto da causa indígena aquelas pessoas que são simpatizantes, que conhecem pouco e que podem lutar ou levar nossa pauta pra fora também, com denúncias, comunicação e troca de informação. Esperamos que, assim, a gente consiga ter voz ativa e espaço para falar o que está acontecendo em cada comunidade.

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(Arquivo pessoal)

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AzMina: Em outubro do ano passado vimos a notícia de que uma escola e um posto de saúde foram incendiados na Terra Indígena Pankararu, em uma área de conflito com os ruralistas. Vocês esperam que esse tipo de ataque cresça em um contexto em que o próprio governo contesta a quantidade de terras indígenas no país?

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É muito delicado abordar isso nesse contexto político, porque o conflito territorial não é com grandes ruralistas. São agricultores familiares, assim, iguais à minha família. Nossa questão não é contra grandes fazendeiros, é uma batalha contra a ocupação de não indígenas na nossa reserva, esses não indígenas já ocupavam 20% do nosso território. Eu nunca vi terra indígena crescer. A tendência era que esses não indígenas continuassem aumentando sua população dentro da nossa área, enquanto a nossa população também ia continuar crescendo e o nosso território não iria crescer.

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Essa batalha não é de hoje. Só judicialmente, são 25 anos de processo, desde 1993. Só em junho de 2018 tivemos uma decisão final pela retirada desses posseiros. No mínimo há uns 6, 7 anos, foi feito um levantamento de posse para que fosse depositado uma indenização de 6 milhões de reais, e que assim essas famílias pudessem desocupar de forma digna, mas a resistência é muito grande até hoje.

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Então com essa decisão de desocupação o clima que já era tenso, de ameaça, e as investidas que já aconteceram contra o povo Pankararu, só se intensificaram. Duas escolas, uma unidade de saúde e uma igreja sofreram atentados. As casas desses não indígenas e as árvores também foram derrubadas, para que arrasando a terra não se deixe nada para a comunidade indígena.

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A gente espera o aumento dessas agressões porque o governo de hoje legitima tanto o discurso de ódio quanto a violência direta

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AzMina: Observamos nas redes sociais um movimento incentivando as pessoas a seguirem mídias e páginas indígenas. De que forma as pessoas que estão fisicamente distantes podem se aproximar da luta e colaborar para a proteção dos povos e terras indígenas?

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Bia: Acredito que a maior ajuda com esse movimento nas redes sociais é dar o lugar de fala para os indígenas falarem sobre suas próprias comunidades, circulando informação. É dar legitimidade a esta voz, saber da fonte, procurar se informar acima de tudo. Porque é muito comum a ideia de que comunidade indígena só existe na região norte, que índio de verdade é aquele que está no meio da floresta, que índio só existe em áreas isoladas.

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A gente luta diariamente para mostrar que pode ter um indígena dividindo a sua sala de aula, sentado na fila do atendimento do posto de saúde, em qualquer lugar.

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Que esta voz de autorreconhecimento seja respeitada. Que a gente consiga um dia não precisar pedir tanta ajuda, que a gente consiga abrir a boca e fale das nossas vivências e que isso não seja colocado em xeque.

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No nosso movimento já veio gente questionar como era possível que os indígenas tivessem essa articulação. Alegando que não é um indígena que produziu um texto ou um vídeo, que nós não somos capazes, como se os indígenas não fossem capazes de desenvolver um raciocínio crítico sobre a sociedade. Por isso é muito importante fortalecer essa corrente de legitimar o lugar de fala e seguir se informando sobre como a causa indigenista impacta a sociedade como um todo.

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AzMina: Você poderia contar um pouco da história dos Pankararus?

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Bia: Essa pergunta é bem complexa porque contar um ‘pouco da história’ é difícil. O primeiro relato da existência de Pankararu talvez seja da carta régia de 1700 de D. Pedro II. Quando em caravana e comitiva pelo Rio São Francisco D. Pedro se hospedou em Petrolândia e nessa estadia foi feita uma comissão de Pankararu, onde ele fez uma carta régia fundamentando a demarcação da terra.

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Em 1940 a extinta SPI [Serviço de Proteção ao Índio] veio demarcar a terra, mas nessa demarcação o que era uma área de mais de 14 mil hectares foi reduzida a 8 mil. Depois, em 1987, tivemos a terra homologada.

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Nos anos 1990 a comunidade entre serras de Pankararu conseguiu o reconhecimento desses outros hectares que faltaram. Então na batalha pelo reconhecimento foi feito um povo irmão. São todos pankararus, mas aconteceu essa divisão administrativa.

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Pankararu é um tronco que deu origem a vários outros povos (Pankarás, Kapinawá, Pankararé), o que a gente chama de falange ou ponta de rama. Há estudos e relatos que tentam comprovar a existência do povo Pankararu desde Xingó [Cânions do São Francisco] até Belém de São Francisco. A gente margeava o rio inteiro. Com outros nomes e especificidades culturais, mas todos remanescentes desse tronco.

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E hoje, Pankararu ocupa esses 8.100 hectares nesses 3 municípios e somos mais de 7 mil habitantes dentro da reserva, fora os tantos outros milhares de pankararus que fizeram vida em São Paulo, Recife, pelas cidades, mas que ainda mantém um elo forte com a reserva.

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AzMinaComo é lidar com o feminismo dentro da tradição indígena?

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Bia: É muito delicado falar do feminismo dentro da tradição e principalmente dentro da ritualística sem beirar o desrespeito. Tem lugares e coisas que só homens podem fazer, outras que só as mulheres podem, então eu não consigo questionar essa divisão de papéis. Eu não consigo sentir que não sejam direitos iguais, ou que isso me prejudique. Isso não me diminui em nada enquanto mulher.

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(Arquivo pessoal)

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Outro ponto que eu acho muito delicado em questionar a tradição é que foi assim que muitos povos foram dizimados, descaracterizando os costumes.

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O que me deixa muito tranquila é que muitas mulheres estão na liderança, na tradição, respeitadas e reconhecidas, têm sua voz ativa aqui dentro. E isso tem sido cada vez maior e mais forte.

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AzMina: Quais são os principais estigmas que vocês enfrentam hoje dentro de uma sociedade que olha pouco para as questões indígenas?

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É essa ideia de que índio não existe mais ou que índio de verdade só existe lá na Amazônia. São mais de 300 povos no Brasil inteiro.

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O maior estigma que a gente passa é a ideia de que por ter celular, carro, moto, curso superior, seguir em harmonia com a contemporaneidade, isso nos faria menos indígena. O que é um erro. Fora todos os ataques que a gente sofre por preconceito, são as poucas políticas públicas feitas pensadas nessa população. Então a gente sempre lutou e vai lutar contra os estigmas de que “um índio de verdade tem que ser assim ou assado”.

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Quem sabe o que é ser indígena é a gente. Cada povo tem seu poder de autorreconhecimento.

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Aí hoje a pessoa descobre que seu tatataravô é indígena, mas não participa, não reconhece minimamente o que significa. Isso pode levar a uma banalidade. A causa indígena é de todo mundo, mas nem todo mundo é indígena.

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indígenas
(Arquivo pessoal)

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AzMina: Nas últimas eleições, Roraima elegeu a primeira mulher indígena para a Câmara dos Deputados, Joênia Wapichana. O que isso representa para você?

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Bia: A eleição de uma primeira indígena deputada federal representa tanto, mas tanto, assim como a gente teve a Sonia Guajajara como candidata à vice-presidência. São duas mulheres, né. A eleição representa que, acima de tudo, a gente pode chegar onde a gente quiser e que as políticas públicas precisam cada vez mais de pessoas específicas pra isso.

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Então, ter Joênia Wapichana lutando é ter um dos nossos falando com um olhar de dentro pra fora. É muito importante, é motivo de orgulho, de esperança, de acreditar que a gente vai continuar lutando e ocupando todos os espaços possíveis. Sair da aldeia para trazer de volta pra aldeia. A gente não quer ajuda, a gente quer o que é nosso por direito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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