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A escrava eterna

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Veja publicação original:  A escrava eterna

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Por Filipe Fialho

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Ashwaq Hagi Hami, uma jovem iraquiana refugiada na Alemanha, teve de regressar ao seu país natal, após ser ameaçada numa rua germânica pelo jihadista que a comprou e a violou durante meses, em 2014

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Nadia Murad tem 25 anos e é conhecida nos cinco cantos do mundo. A jovem iraquiana, que foi agraciada em 2016 com o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, atribuído pelo Parlamento Europeu, e que é também embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico Humano, acaba de ser notícia em vários jornais e televisões por causa do seu casamento com um antigo tradutor-intérprete das tropas dos EUA, seu conterrâneo. A viver na Alemanha, com o estatuto de refugiada, ela é hoje um símbolo da resistência ao autoproclamado Estado Islâmico (EI) ou Daesh. Há exatamente quatro anos, foi uma das vítimas da campanha de terror contra a comunidade yazidi no Nordeste do Iraque. A sua aldeia, Kocho, foi arrasada e palco de um massacre. A mãe e seis dos seus dez irmãos acabariam por ser também executados, e Nadia Murad foi sequestrada, vendida e convertida em escrava sexual. Com base no que aconteceu no verão de 2014, a ONU considerou que mais de meio milhão de yazidis foram alvo de perseguições sistemáticas e de genocídio. Na ocasião, considerou-se prioritário dar assistência aos sobreviventes, resgatar as mais de cinco mil mulheres e meninas feitas escravas pelo EI e apresentar este drama junto do Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia.

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No entanto, no mês pasado, ficou a conhecer-se outra história tão dramáticas como a de Nadia Murad, igualmente protagonizada por uma yazidi. A 3 de agosto de 2014, Ashwaq Hagi Hami, então com 15 anos, assistiu à chegada dos militantes do EI ao local onde vivia – Khanasor, nos arredores de Sinjar, no Curdistão iraquiano. De acordo com o seu testemunho, recolhido pelo site noticioso curdo Basnews, durante 45 dias, ela e mais de 60 elementos da sua família ficaram em prisão domiciliária. O grupo seria depois dividido, e Haswaq acabou por ir parar a Shaddadiya, na Síria. Nessa altura, já estava mentalizada para o pior. Os muçulmanos sunitas, em geral, e o Daesh, em particular, consideram que os yazidis são aduladores do Diabo e, portanto, merecem um tratamento implacável como infiéis: os homens devem ser mortos, os meninos devem ser doutrinados como crianças-soldado, para serem depois usados em atentados suicida, enquanto as mulheres e as meninas devem ser feitas escravas sexuais.

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ADQUIRIDA POR 100 DÓLARES

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É já nesta última condição que Ashwaq aparece na capital iraquiana do EI, Mossul, onde fora proclamado o novo Califado, no início desse verão. Num hotel da cidade, conhece Abu Humam, personagem que a terá comprado por cerca de 100 dólares (86 euros) e que a escravizou e a molestou sexualmente durante mais de três meses. As circunstâncias em que consegue fugir do cativeiro parecem mal explicadas e são algo rocambolescas, mas ela garante que, com a ajuda de outras quatro jovens yazidis, terá posto soporíferos na comida de Abu Humam e de 17 homens que partilhavam um repasto noturno. A fuga permite-lhe reencontrar-se com os pais e, em junho de 2015, chega mais ou menos sã e salva à Alemanha. Pelo meio, descobre que cinco dos seus irmãos desapareceram sem deixarem rasto e que uma irmã permanece – até hoje – como prisioneira e escrava do Daesh.

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A pacata cidade medieval de Schwäbisch Gmünd, a pouco mais de 50 quilómetros de Estugarda, torna-se o novo lar de Ashwaq, que começa logo a aprender alemão, recebe apoio psicológico e estuda para conseguir um dia trabalhar no país que a acolheu. Os traumas continuavam a persegui-la e foram várias as vezes que confessou à mãe sentir-se ameaçada. “Isto é a Alemanha, ninguém te vai magoar”, terá replicado a progenitora. Só que, a 21 de fevereiro passado, o caso tornou-se deveras grave. Quando, de regresso a casa, passava junto a um supermercado, um carro estacionou a seu lado e o condutor perguntou-lhe, em alemão: “És a Ashwaq, certo?”

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A jovem ficou paralisada e reconheceu o indivíduo da “cara feia e barba ameaçadora” que abusou dela vezes sem fim no Iraque. Abu Humam, cujo verdadeiro nome será Mohammed Rashid, estava novamente a seu lado e, desta vez, para lhe dar conta de que conhecia a sua nova morada e muitos outros pormenores da sua nova vida. Em pânico, correu para junto da família. No dia seguinte, de acordo com a versão que deu ao site Basnews, foi à polícia e apresentou queixa. Na esquadra, após ser interrogada, ouviu algo que a deixou atónita: “Disseram-me que ele era um refugiado como eu e que não podiam fazer nada sobre o assunto. Deram-me apenas um número de telefone, caso Abu Humam voltasse a incomodar-me. Após esta resposta, decidi que tinha de voltar ao Curdistão e que jamais regressaria à Alemanha.”

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A viagem para o Iraque é feita poucas semanas depois e sem receber explicações adicionais das autoridades germânicas. Na última semana, na sequência da história dada em primeira mão pela Basnews, vários meios de comunicação social relatam a odisseia de Ashwaq, e ela concede novas entrevistas à BBC, à Associated Press e à RT. E surge, então, a polémica: a Procuradoria alemã admite estar a decorrer uma investigação, mas alega desconhecer a identidade do suposto refugiado, que foi combatente do Daesh, e invoca ainda “pouco rigor” no testemunho prestado pela jovem iraquiana. Ela defende-se e explica que deveriam ter sido analisadas as imagens de videovigilância do supermercado, onde tem de estar registado o seu encontro com Abu Humam. E nesta segunda-feira, 20, gravou um vídeo, em alemão, em que alerta para a possibilidade de haver outros “refugiados” como o homem que ela denunciou – algo de que a ONG Hawar.help, com sede em Berlim, diz também ter conhecimento e que promete denunciar em breve…

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TRAGÉDIA SEM FIM

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650 mil alvos – Estimativa da população yazidi no Iraque quando o Daesh, em agosto de 2014, iniciou uma campanha para exterminar esta minoria curda que pratica uma religião milenar, pré-islâmica, que os muçulmanos sunitas consideram herética. Se contabilizarmos a Síria, a Turquia e a diáspora (Arménia, Alemanha, Geórgia e Rússia), a comunidade conta com perto de um milhão de indivíduos.

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10 mil mortos – A ONU classificou, em 2016, a campanha contra os yazidis no Iraque e na Síria de genocídio. A barbárie do Daesh obrigou mais de metade da população nos dois países a abandonar as suas casas. O caso chegou ao Tribunal Penal Internacional e um dos seus promotores é a advogada Amal Clooney, a mulher do ator George Clooney.

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6 mil escravas – Por considerá-los aduladores do Diabo, o Daesh quis converter à força os yazidis que não executou anteriormente, com as mulheres e as menores a serem convertidas em escravas sexuais. Apesar da sua derrota militar, calcula-se que o grupo ainda mantenha três mil prisioneiras, sobretudo na província síria de Idlib.

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100 mil refugiados – Número de yazidis que, desde 2014, solicitaram apoio ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, manifestando o desejo de se instalarem na Europa, nos EUA, no Canadá e na Austrália. Perto de 300 mil continuam a viver em acampamentos temporários da ONU, no Norte do Iraque e no Sudeste da Turquia.

 

 

 

 

 

 

 

 

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