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O Brasil completou os dez primeiros dias de 2021 com 48 feminicídios consumados e 33 tentados, totalizando 81 casos de feminicídio em um curtíssimo espaço de tempo[2]. A mistura tóxica entre o fenômeno da violência contra a mulher e a pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) reposicionou o Brasil no ranking dos países mais inóspitos para meninas e mulheres[3].
Os índices de violência contra a mulher, que já eram considerados alarmantes, foram catapultados pelo período pandêmico, e os motivos são variados: aumento da convivência das mulheres em situação de vulnerabilidade com os autores de violência, aumento do desemprego, aumento do consumo de álcool[4], entre outros. A violência contra a mulher atingiu um novel estado de coisas em terrae brasilis e a sociedade reclama por mudanças efetivas. Mulheres e meninas brasileiras vivem em tempos de cólera.
Diante deste cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu um grupo de trabalho para definir ações que fortaleçam o Poder Judiciário no combate à violência contra a mulher[5]. O presente texto reúne de forma breve oito propostas para o aperfeiçoamento do combate à violência contra a mulher no Brasil, objetivando, em ultima ratio, a projeção de fachos de luz no combate à denominada “pandemia das sombras[6]”.
Princípio da precaução como norma reitora das medidas protetivas de urgência
A primeira medida a ser sugerida para o aprimoramento do combate à violência contra a mulher no Brasil é a introdução efetiva do princípio da precaução como norma reitora das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha. Com origem no direito alemão e no item 11 ‘b’ da Carta Mundial da Natureza de 1982, publicada pela Assembleia Geral da ONU[7], o princípio da precaução foi originariamente concebido como norma de direito ambiental, mas o seu uso vem sendo admitido pelo Supremo Tribunal Federal nos mais variados ramos do direito[8]. A precaução possui espaço de aplicação quando não se há certeza acerca do dano que aparenta estar em vias de ser consumado. Assim, diante de uma zona de penumbra, a precaução propõe uma atuação preventiva objetivando elidir ex ante o potencial risco. Frederico Amado define com precisão a ideia do princípio em comento, ao afirmar que “a precaução caracteriza-se pela ação antecipada diante do risco desconhecido”.[9]
Transportando o ethos da precaução para o combate à violência contra a mulher, a postura do Estado e de suas respectivas autoridades (juízes e membros do Ministério Público, etc.) deve ser pautada por uma ação preventiva e antecipada, buscando evitar ou cessar uma situação de violência de gênero prognosticamente visualizada a partir das declarações prestadas pela mulher vítima de violência[10]. Nesse sentido, e concordando com a possibilidade de aplicação do princípio da precaução no combate à violência contra a mulher, Thiago Pierobom de Ávila lembra que: “se não há certeza de que a mulher está protegida, então ela deve ser protegida”.[11]
Por fim, e também com o objetivo de alicerçar a aplicação do princípio da precaução no combate à violência contra a mulher, é de bom alvitre lembrar que o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a concessão de medidas protetivas de urgência com base exclusivamente na palavra da vítima[12] e que estas podem ser revogadas ou alteradas a qualquer tempo, eis que regidas pela cláusula rebus sic stantibus.
Extensão da escuta especializada e do depoimento especial
Em virtude das medidas de restrição para a contenção do alastramento da Covid-19, o ano de 2020 foi marcado pela adaptação do Poder Judiciário ao teletrabalho e à informatização de atos processuais, como a realização de audiências de instrução e julgamento. Diante desta nova realidade, os atos praticados em audiência passaram a contar com uma maior sindicabilidade exógena e não foram raros os casos de revitimização de mulheres vítimas de violência[13] que vieram à tona e chocaram a sociedade brasileira.
Assim, com o intuito de evitar que um locus como o Poder Judiciário, idealizado para ser acolhedor e humano, se transforme em um ambiente hostil e de violação de direitos de mulheres em situação de vulnerabilidade, a segunda medida a ser sugerida para o aperfeiçoamento do combate à violência contra a mulher no Brasil é a extensão das formas humanizadas de oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência às mulheres maiores de dezoito anos, em especial nos casos de violência sexual e feminicídio tentado.
Conhecidas como escuta especializada e depoimento especial, as formas humanizadas de oitiva para menores de 18 (dezoito) anos vítimas de violência estão regulamentadas pela Lei 13.431/2017 e objetivam a colheita da versão da criança ou adolescente vítima de violência de forma acolhedora e por profissional especializado, evitando-se assim a ocorrência de novos traumas e novos efeitos colaterais à vítima.
Sobre a proibição de revitimização no âmbito do Direito das Mulheres, a Lei 13.505/2017 introduziu o artigo 10-A, §1º, inciso III, no corpo legal da Lei Maria da Penha, o qual estabeleceu como diretriz para a inquirição de mulheres vítimas de violência a “não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada”. Já no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, popularmente conhecida como “Convenção do Belém do Pará”, prevê em seu artigo 4º.b que toda mulher tem “direito a que se respeite sua integridade física, mental e moral”. Ainda, e de forma mais específica, a Recomendação nº 33/2015 do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), órgão vinculado à Convenção da ONU sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres impõe em seu ponto 51.c aos Estados que “Tomem medidas efetivas para proteger as mulheres contra a vitimização secundária em suas interações com autoridades judiciais e demais encarregadas da aplicação da lei, bem como considerem estabelecer unidades especializadas em gênero dentro dos sistemas de aplicação da lei na investigação policial e no processamento penal[14]”. As manifestações oriundas do Direito Internacional dos Direitos Humanos são de clareza meridiana: o Estado deve evitar toda e qualquer forma de revitimização de mulheres vítimas de violência.
Outrossim, não existem impedimentos legais para a extensão dos procedimentos regulamentados pela Lei 13.431/2017 às mulheres maiores de dezoito anos vítimas de violência, devendo na opinião deste articulista ser facultado a cada mulher em situação de vulnerabilidade a opção ou não por uma das formas humanizadas de oitiva[15]. A ausência de previsão legal também não parece um obstáculo intransponível, tendo em vista que, antes mesmo da edição da Lei 13.431/2017, o Superior Tribunal de Justiça convalidou a aplicação do então chamado “depoimento sem dano” em crimes sexuais, mesmo inexistindo previsão legal para tanto[16].
Por fim, é necessário destacar a inexistência de prejuízo às partes, sendo digna de menção a recente decisão de um juiz do Estado de Goiás que aplicou o depoimento especial à mulher adulta vítima de violência sexual, aduzindo que: “A aplicação do depoimento especial para as mulheres vítimas de violência sexual, independentemente da idade, humaniza o processo penal e não causa nenhum prejuízo para o Ministério Público e para a defesa (…)[17]”. Trata-se de medida salutar a ser implementada com urgência na busca pelo fim da revitimização de mulheres brasileiras vítimas de violência em salas de audiência do Judiciário brasileiro.
Fiscalização por órgãos correicionais do Poder Judiciário
Nos mesmos moldes da proposta antecedente e com o escopo de evitar a revitimização de mulheres e meninas brasileiras nos bancos do Poder Judiciário, a terceira medida sugerida por este articulista consiste em uma fiscalização por parte dos órgãos correicionais do Poder Judiciário em torno do cumprimento secundum legem do ato processual conhecido na prática forense como “audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha”.
O referido dispositivo prevê que: “Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”[18]. Infelizmente, não são raros os casos aos quatro cantos do Estado brasileiro em que – talvez por motivos pragmáticos – o referido ato vem sendo designado de ofício por magistrados e magistradas, sem a existência de qualquer manifestação de vontade da vítima, indo de encontro não apenas ao texto legal da Lei 11.340/2006, mas também da jurisprudência sedimentada do Superior Tribunal de Justiça[19].
O ethos da audiência é aferir o real desejo da vítima em retratar-se da representação realizada em desfavor do agressor, e não a confirmação da mesma.
Assim, a designação ex offício do ato solene previsto no artigo 16 da Lei 11.340/2006, sem qualquer manifestação prévia de vontade da ofendida em renunciar a seu direito de representação anteriormente exercido, é contra legem e cria uma condição de procedibilidade da ação penal não prevista em lei. Mas não é só isso! A operacionalização da referida audiência de forma teratológica e ao arrepio do direito coloca as mulheres e meninas vítimas de violência em situação de revitimização; afinal, estas são constrangidas a comparecerem em juízo, de forma desnecessária e ilegal, sendo instadas a se manifestarem acerca da situação de violência de gênero anteriormente vivenciada, tudo isso após um custoso rompimento do ciclo de violência. Trata-se de ato teratológico que desafia o manejo de correição parcial pelos membros do Ministério Público[20].
Além de atingir o âmago da dignidade de mulheres e meninas vítimas de violência, a designação da referida audiência de ofício consiste em um verdadeiro golpe nos alicerces estruturais do combate à violência de gênero, retroalimentando um ciclo de impunidade e o permanente estado de autofagia social vivenciado em território brasileiro com a escalada dos índices de violência. Assim, como medida de fortalecimento ao combate à violência contra a mulher no Brasil, sugere-se uma fiscalização específica e direcionada por parte dos órgãos correicionais do Poder Judiciário brasileiro (Corregedorias locais e Conselho Nacional de Justiça), no sentido de que seja observada a raison d’être do artigo 16 da Lei Maria da Penha, evitando-se assim a concretização das arcadas do Judiciário como um locus de revitimização de meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade.
Instituição de “grupos de reflexão para homens autores de violência doméstica”
Em apertada síntese, os denominados “grupos de reflexão para autores de violência doméstica” são operacionalizados a partir dos valores fundantes da justiça restaurativa (restorative justice)[21] e objetivam romper os padrões de comportamento anteriormente internalizados pelo homem autor de violência de gênero, inibindo assim a reincidência[22]. As reuniões são instrumentalizadas mediante a presença de profissionais da saúde (médicos, psicólogos, enfermeiros), da assistência social e do direito (membros da magistratura, do Ministério Público, da Polícia Civil, da OAB, etc.), que, por meio de palestras e orientações direcionadas aos autores de violência de gênero, promovem lições de educação de gênero, conscientizando os participantes acerca da gravidade e das consequências de seus atos.
É verdade que a implementação dos referidos grupos reflexivos já é uma realidade em pequena parcela das Comarcas brasileiras[23], locais onde o índice de reincidência diminuiu consideravelmente[24]. A taxa de sucesso dos referidos programas chega a atingir mais de 90% (noventa por cento) em determinadas localidades[25]! É também oportuno destacar a excelente relação de custo-benefício envolvendo a implementação dos referidos grupos nas Comarcas, uma vez que, na significativa maioria dos casos, o serviço é prestado pelos membros da rede de proteção do Município ou pela própria equipe interdisciplinar do Tribunal de Justiça, sem qualquer contratação ou oneração de gastos ao Estado[26]. Tampouco se exige a existência de uma robusta estrutura física para a realização dos encontros, sendo possível a utilização da estrutura já existente na Comarca (por exemplo, uma sala no interior do Fórum de Justiça ou um local disponibilizado pelo Município).
Diante deste cenário, surge um questionamento: a implementação dos grupos reflexivos em todas as Comarcas existentes em território brasileiro é uma obrigatoriedade do Estado? Na opinião deste articulista, sim! Recentemente, a Lei nº 13.984/2020 introduziu no artigo 22 da Lei Maria da Penha como espécies típicas de medidas protetivas de urgência o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação (inciso VI) e o acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio (inciso VII), sendo possível deduzir a existência de uma obrigação estatal em disponibilizar o serviço aos homens autores de violência contra a mulher todas as Comarcas do país, sob pena de esvaziamento da própria alteração legislativa, tornando inócuas as duas novas medidas protetivas de urgência.
Deste modo, este articulista entende como medida salutar para a promoção de uma revolução na estrutura do combate à violência contra a mulher em terras brasileiras, a implementação de ao menos um grupo reflexivo para homens autores de violência em cada uma das Comarcas no Estado brasileiro, sendo possível, inclusive, o fomento da criação dos referidos grupos pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mediante a realização de campanhas informativas e de conscientização acerca da importância do tema. Em Comarcas maiores, como capitais e cidades com um grande número de habitantes, sugere-se a implementação de grupos reflexivos descentralizados por regiões, seguindo a linha da organização judiciária em relação aos Fóruns de Justiça.
Cumprimento de condição objetiva especial para progressão de regime
Na mesma perspectiva da proposta anterior, propõe-se como medida para o aperfeiçoamento do combate à violência de gênero no Brasil, de lege ferenda, a introdução no ordenamento jurídico de uma condicionante específica para a progressão de regime em casos de pessoas condenadas pela prática do crime de feminicídio: a participação periódica e conclusão de cursos de educação de gênero durante o cumprimento de pena. A Lei de Execução Penal brasileira regulamenta o tema de forma geral em seu artigo 152, ao aduzir que: “poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempo de permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas”. Especificamente em relação aos casos de violência doméstica, o parágrafo único do mesmo artigo da LEP disciplina o assunto: “nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas”. É possível, portanto, nos termos do artigo 152 e parágrafo único da Lei 7.210/1984, a possibilidade de encaminhamento do homem autor de violência doméstica para programas de recuperação e reeducação, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas.
Resta-nos refletir se a edição de uma lei regulamentando como conditio sine qua non para a progressão de regime em casos de feminicídio a participação periódica em cursos de educação de gênero e respectiva conclusão dos mesmos durante o período de cumprimento de pena violaria ou não a Constituição Federal de 1988, e parece-nos que a Corte Constitucional brasileira já se debruçou sobre um caso com certa similitude. No ano de 2003, o legislador brasileiro promulgou a Lei 10.763, introduzindo o §4º ao artigo 33 do Código Penal, que conta com a seguinte redação: “O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais”. O Supremo Tribunal Federal concluiu que a referida condição objetiva para a progressão de regime em casos de crimes contra a administração pública não viola o texto da Constituição Federal de 1988[27]. Não há, portanto, qualquer obstáculo de cunho constitucional para a edição de uma lei nos termos propostos.
Em regra, os autores do crime de feminicídio não participam dos grupos reflexivos mencionados na proposta anterior – já que, em virtude da gravidade do crime praticado, geralmente são presos preventivamente – razão pela qual a implementação da sugestão em comento é de suma importância para que nenhum autor de violência de gênero seja excluído das ações do Estado que buscam inibir a reincidência mediante a realização de programas de educação em gênero.
Leis de compliance condominial em matéria de violência contra a mulher
Recentemente, diversos estados como Paraná[28], Pernambuco[29], Ceará[30], Minas Gerais[31], Bahia[32], Rio de Janeiro[33] e Rondônia[34] aprovaram leis criando um dever aos condomínios residenciais e comerciais de comunicar os órgãos de segurança pública, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas da ciência do fato, acerca de indícios ou ocorrência de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher em suas dependências. As referidas leis estaduais disciplinam ainda a possibilidade de que sejam aplicadas as sanções de advertência ao condômino autor de violência doméstica, e, em casos de reincidência, a pena de multa, que poderá ser revertida em favor de fundos e programas de proteção aos direitos da mulher.
Cuida-se de uma iniciativa louvável de diversas Assembleias Legislativas brasileiras ao demonstrar sensibilidade ímpar com o tema, rompendo com o equivocado e obsoleto adágio de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”; afinal, no momento em que se institui o dever ex lege ao síndico (particular) e/ou à administradora do condomínio (pessoa jurídica de direito privado) de comunicar indícios e ocorrências de violência contra a mulher nas dependências condominiais às autoridades competentes, reconhece-se, por conseguinte, o combate à violência doméstica e familiar contra mulheres como uma questão de Estado, afastando-se da compreensão do fenômeno como uma situação de foro íntimo intransponível, supostamente protegida pelo direito à privacidade. As referidas leis estaduais disciplinaram também a obrigação de afixação de cartazes nas áreas comuns do condomínio com o telos de cientificar os condôminos sobre o conteúdo dos diplomas legislativos aprovados que, neste artigo, convenciono chamar de leis de compliance condominial em matéria de violência contra a mulher. Neste ponto, sugere-se o aperfeiçoamento da medida mediante a aprovação de uma lei nacional uniformizando o tema em todo Brasil, além da efetivação das leis estaduais já existentes até a superveniência de uma lei nacional.
Criminalização do assédio por intrusão (stalking)
O chamado assédio por intrusão, popularmente conhecido como “stalking”, consiste em uma perseguição reiterada e obsessiva perpetrada por uma pessoa contra outrem, muitas vezes mediante o uso de ameaças que resultam em restrição à liberdade de locomoção da vítima por medo[35]. Quando praticada no ambiente digital, a perseguição obsessiva recebe o nome de “cyberstalking”. Trata-se de um comportamento fértil no campo da violência de gênero e que possui íntima relação com a prática de feminicídio[36].
No dia 10 de dezembro de 2020, a Câmara dos Deputados aprovou a criminalização do stalking com as seguintes balizas: pena de um a quatro anos de reclusão e multa, sendo a pena aumentada caso o crime seja praticado por razões da condição do sexo feminino; contra crianças e adolescentes, idosos, de forma coletiva ou se houver o uso de arma de fogo. O projeto agora segue para o Senado Federal e a sua aprovação resulta em uma medida importante na contenção do escalonamento dos níveis de violência contra a mulher.
Adaptação do combate à violência contra a mulher ao mundo digital:
A expansão do mundo digital e de suas respectivas formas de interação é uma realidade consolidada no cotidiano de parcela significativa da população brasileira, havendo inclusive quem seja tachado de antissocial por permanecer alheio ao que ocorre em mídias sociais e em aplicativos de mensagens. A internet passou a ser um locus de interação permanente entre as pessoas, sobretudo e principalmente em tempos pandêmicos e de isolamento social.
Ao transportar o fenômeno da expansão do mundo digital para a área do direito, não há escolha a ser feita, e a adaptação do ordenamento jurídico brasileiro e do próprio funcionamento do sistema de justiça ao universo digital é um caminho sem volta. Pessoas praticam a todo momento atos e condutas com efeitos civis e criminais na rede mundial de computadores; diplomas normativos popularmente conhecidos como “Marco Civil da Internet” e “Lei Geral de Proteção de Dados” foram aprovados, dados pessoais foram reconhecidos como direitos fundamentais[37] e o uso da inteligência artificial no direito começa a ser debatido.
No combate à violência contra a mulher, é evidente a necessidade de redimensionamento da Lei Maria da Penha e do próprio funcionamento da rede de proteção disponível às mulheres ao mundo digital.
Arestas precisam ser aparadas para que o Estado consiga dar uma resposta satisfatória às mulheres vítimas de violência, seja no âmbito do acesso à justiça ou na perspectiva da repressão criminal. Além da criminalização do cyberstalking, tema já abordado no item anterior deste texto, sugere-se ainda a uniformização em todo o Brasil acerca da possibilidade de realização de boletins de ocorrência e pedidos de medidas protetivas de urgência de forma online, prática que vem se consolidando paulatinamente em diversos Estados da federação em razão da pandemia da Covid-19, ampliando o acesso à justiça a mulheres em situação de vulnerabilidade.
Ainda, de lege ferenda, sugere-se que, como medida protetiva de urgência típica na Lei Maria da Penha, seja positivada a impossibilidade de o agressor divulgar conversas e imagens trocadas com a vítima em aplicativos de mensagens e redes sociais, lembrando que, se a eventual divulgação de imagens incluir conteúdo de nudez ou pornografia, o indivíduo poderá ser responsabilizado no âmbito criminal pela prática do crime de exposição pornográfica não consentida, nos termos do artigo 218-C, §1º, do Código Penal, sem prejuízo de eventual responsabilização civil, sendo inclusive irrelevante para a caracterização de danos morais o fato de o rosto da vítima não estar evidenciado de maneira flagrante, conforme decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça[38].
Por fim, propõe-se ainda a operacionalização em todo o território nacional das intimações acerca das medidas protetivas de urgência por meio de aplicativos de mensagens, como forma de dar a celeridade necessária à implementação da ordem judicial.
Parafraseando o pensador francês Charles Fourier, o ministro Carlos Ayres Britto afirmou no histórico julgamento que reconheceu a constitucionalidade da Lei Maria da Penha que: “O grau de civilização de um povo mede-se pelo grau de proteção da mulher[39]”. Pois bem. Até o presente momento, o Brasil vem recebendo indigesto destaque no ranking da incivilidade em matéria de violência contra a mulher. Milhares de meninas e mulheres brasileiras vivem em permanente situação de periculosidade e sem a certeza do amanhã. Em relação ao atual modelo de combate à violência de gênero proposto pelo sistema de justiça brasileiro, tem-se apenas duas certezas: é insuficiente e necessita de aperfeiçoamento.
Algumas das sugestões propostas neste artigo são de aplicabilidade imediata, enquanto outras requerem a edição de uma lei formal por parte do parlamento brasileiro. No entanto, todas essas medidas possuem uma característica em comum: redimensionar a estrutura do atual modelo de combate à violência contra a mulher em prol de uma maior efetividade na proteção das mulheres e meninas que vivem em nosso país.