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Vamos parar de falar do “trabalho mais difícil do mundo”?

Saiu no site AZ MINA

 

Veja publicação original:  Vamos parar de falar do “trabalho mais difícil do mundo”?

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Gestar, parir, amar: não é só começar, e é função de todo mundo não contribuir para essa lógica opressora

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Por Tayná Leite

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Todo ano é a mesma coisa: vai chegando o Dia das Mães e os anúncios, os textões, as “homenagens” se dividem entre discursos românticos sobre como a maternidade é incrível e discursos não tão românticos sobre como a maternidade é o trabalho mais difícil e mal pago do mundo (mas continua sendo o mais incrível).

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Parecem ser posicionamentos bem distintos, mas não são. Ambos contribuem de forma perigosa e cruel para a essencialização da mulher e nos impedem de avançar na necessária discussão sobre a democratização do cuidado.

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Sobre o primeiro caso não vou gastar linhas, pois já escrevi muito sobre ele aqui na coluna e no meu livro que acaba de ser publicado pela Editora Letramento (aproveita e clica aqui para garantir o seu!). Mas sinto cada vez mais necessidade de ser bastante didática sobre o segundo caso (que recentemente se tornou meu objeto de estudo formal).

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Então, vamos lá!

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Como exemplo, quero pegar o vídeo “O Trabalho Mais Difícil do Mundo”, que todo santo ano — há sei lá quantos anos — viraliza, entre lágrimas e lencinhos, e ilustra perfeitamente o desserviço de que estou falando. Além de discursos que vemos o tempo inteiro serem feitos por influenciadoras maternas que, a princípio, se propõem a desromantizar a maternidade ou tratar da maternidade compulsória.

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Primeiro, o vídeo. Considerado “o vídeo mais lindo do ano”, todo mundo se emociona com ele. Basicamente trata-se de uma campanha desenvolvida pela agência Mullen, de Boston, que entrevistou 24 candidatos que responderam a um anúncio online para um cargo de emprego de Diretor de Operações.

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Job description: um trabalho extremamente exigente, sem férias, sem horário para descanso, 24 horas por dia, 7 dias da semana. As exigências para o cargo variam desde que a pessoa tenha capacidade de trabalhar em pé a maior parte do tempo, alta habilidade de negociação até graduação em medicina, finanças e artes culinárias. Ter capacidade de improvisar; não ter horário de almoço; ter paciência ilimitada; capacidade de trabalhar num ambiente caótico, entre outros absurdos.

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No vídeo todo mundo se emociona, agradece suas mães pelo trabalho, as mães choram, lembram o quanto, de fato, se f*dem todo dia. Os textos que o acompanham defendem que “o trabalho mais importante do mundo é também o mais difícil” ou “o melhor e mais difícil trabalho do mundo” é ser mãe. E voilá: DESSERVIÇO!

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Choramos, nos abraçamos e depois do segundo domingo de maio voltamos à vida real, bem longe de homenagens e, principalmente, de valorização.

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“Mãe é capaz de tudo por um filho.”

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“É incrível esse amor que nos faz superar qualquer obstáculo.”

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“Ser mãe é um processo de devoção.”

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“A maternidade é uma bênção.”

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“A maternidade é a experiência mais transformadora na vida de uma mulher!”

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“Mãe isso”, “mãe aquilo”…

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Todas essas frases eu peguei de páginas de influenciadoras maternas (bem influentes, por sinal) que se propõem a pensar a maternidade compulsória, que se autodeclaram feministas e que defendem a desromantização da maternidade. E todas essas frases — e muitas outras — servem para essencializar a mulher, reforçar a maternidade compulsória e romantizá-la.

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Elas podem não perceber — certamente, têm a melhor das intenções —, mas todas as vezes que 1) se generaliza a maternidade; 2) se usam frases que reduzem todas as mulheres mães a um modelo único de sentir e agir; ou 3) colocam o amor materno como algo instintivo e funcionalista se está contribuindo e reforçando a maternidade compulsória e, em última instância, o aprofundamento das desigualdades entre homens e mulheres.

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“Amor de mãe” e o próprio “ser mãe” são conceitos construídos, fluidos, mutáveis e nada universais, e você, que está aqui produzindo conteúdo, está (re)produzindo discursos e reforçando a normatividade da maternidade.

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De que mãe você está falando? De que amor? Quem te contou desse amor?

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Em 1979, na introdução do livro que organizou com ensaios importantíssimos de antropólogas feministas que travavam debates relevantes sobre o lugar social da mulher e suas várias facetas e consequências, Michelle Rosaldo alerta que “enquanto a mulher for definida universalmente em termos de um papel amplamente maternal e doméstico, seremos responsáveis por sua subordinação universal”.

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Em 2019, euzinha, esta que vos fala, escrevi: “Acredito cada vez mais que o amor materno, assim como qualquer outro sentimento humano, tem menos a ver com instinto e mais com os comportamentos e normas sociais, variáveis de acordo com a época e os costumes, e passíveis de ser tanto aprendidos como desaprendidos”.

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E disse mais: “O que chamamos de amor materno é apenas um sentimento humano como outro qualquer e, como tal, incerto, frágil e imperfeito. Pode existir ou não, pode aparecer e desaparecer, mostrar-se forte ou frágil, preferir um filho ou ser de todos. Essa desconstrução é importantíssima, pois sempre que naturalizamos algo como instintivo ou normativo do ponto de vista biológico estamos diretamente excluindo, rejeitando e negando a existência de outras possibilidades de ser e sentir, o que historicamente tem justificado as mais variadas violências contra todos os tipos de pessoas.”

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A maternidade compulsória aprisiona mulheres, as expulsa do mercado de trabalho, as mergulha em culpa e as faz permanecer em um ciclo de pobreza muito difícil de ser quebrado.

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Toda vez que você generaliza, naturaliza, exalta e glorifica a “paciência”, “abnegação”, “dedicação” ou qualquer outro atributo do “ser mãe”, “o trabalho mais difícil”, dando contornos de heroísmo a um trabalho que deveria ser democratizado e compartilhado socialmente, você está sendo instrumento de uma lógica que coloca a mulher neste lugar de cuidadora, subalterna e, portanto, excluída dos principais espaços de poder e de tomada de decisão públicos.

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Que neste Dia das Mães, todas nós que trabalhamos com maternidade, que sonhamos com um mundo mais justo, igualitário e socialmente responsável com todos os grupos historicamente excluídos e vulneráveis (e isso inclui crianças e mães!) possamos ser mais cautelosas com as mensagens que passamos.

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Se você é uma mãe influenciadora, não naturalize essas homenagens e esses lugares que exaltam a exploração dos corpos femininos. Problematize, questione e confronte uma lógica de cuidado feminizado sempre!

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Gestar, parir, amar: não é só começar, e é função de todo mundo que esteja comprometido com a igualdade e o fim de uma cultura machista e excludente não contribuir para essa lógica que naturaliza aquilo que mais oprime.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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