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Tributação e gênero

Saiu no site JOTA INFO

 

Veja publicação original:     Tributação e gênero

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Conexão desses temas com o desenho da política fiscal do Estado brasileiro é evidente

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Por Tathiane Piscitelli1, Andréa Mascitto2, Raquel Preto3, Betina Grupenmacher4, Catarina Rodrigues5, Daniela Silveira Lara6, Fernanda Ramos Pazello7 e Renata Correia Cubas8.9

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O debate sobre tributação e gênero, apesar de pujante na literatura internacional, é pouco ou nada realizado no Brasil. A relação entre os temas, no entanto, não é recente e tem conexão direta com conquistas de direitos femininos.

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O movimento sufragista, ocorrido no final do século XIX e início do século XX nos Estados Unidos da América e no Reino Unido é exemplar dessa afirmação. Ainda que o centro das demandas das feministas da época fosse o direito a voto, há uma conexão clara com esse direito e o dever de pagar tributos. Sob o mote do lema da revolução civil americana “no taxation without representation”, muitas mulheres passaram a se recusar a pagar tributos sobre suas propriedades, na medida em que a ausência do direito de escolha de seus representantes refletia uma invasão indevida em suas vidas privadas10.

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Mais recentemente, na década de 1990, parte da reforma tributária do Reino Unido foi pautada pela discussão entre tributação e gênero.

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As regras então vigentes sobre a declaração dos rendimentos de casais resultava em evidente discriminação às mulheres e desestímulo à entrada no mercado de trabalho, como será tratado a seguir. O mesmo debate ocorreu na França, Holanda, Irlanda e África do Sul.

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Esses movimentos resultaram no aumento da produção acadêmica sobre o tema11 e na preocupação, cada vez mais estruturada, de que o sistema tributário não atue como potencializador das desigualdades de gênero já existentes. Debates sobre a tributação mais gravosa de produtos tipicamente femininos e, ainda, o fato de esses mesmos produtos, quando comparados com similares masculinos, serem significativamente mais caros, estão na pauta da literatura internacional12 – o termo “pink tax” tem relação clara com esse movimento.

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Nesse sentido, destaque-se o artigo de Janet Gale Stotsky13, pioneiro em analisar a existência de vieses de gênero em sistemas tributários de países em desenvolvimento.

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Segundo a autora, o viés discriminatório pode ser implícito ou explícito.

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Formas explícitas de discriminação decorrem de normas tributárias que tratam homens e mulheres de modo diferente; ao passo que o viés implícito se identifica com previsões que, “em razão dos típicos arranjos sociais e comportamentos econômicos, tendem a ter implicações diferentes para homens e mulheres”14.

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Na nossa legislação, diferente de outros países, não há nenhum viés explícito claro – as formas de declaração de rendimentos e oferecimento à tributação da renda, por exemplo, são locus frequentes de discriminação em outros países. No Brasil, no entanto, a existência de declarações individuais, mesmo para cônjuges e a liberdade na alocação de rendimentos de bens comuns, revelam plena igualdade entre homens e mulheres na tributação da renda individual.

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O mesmo não ocorre, por exemplo, na Argentina: os rendimentos de bens comuns ao casal são, como regra geral, atribuídos ao homem – a discriminação é evidente, portanto. Além disso, como mencionado linhas acima, no Reino Unido, até 1990, não era permitida a declaração de rendas individual de mulheres casadas e na Suíça, até hoje, há o dever de declaração conjunta. Essas determinações reforçam o estereótipo de submissão feminina, além de poder representar um desincentivo à inserção da mulher no mercado, pois, em muitos casos, a renda adicional será tributada nas faixas mais altas do imposto de renda.

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Porém, a despeito da ausência de vieses explícitos na legislação brasileira, seria possível argumentar a existência de alguns vieses implícitos na tributação da renda. Segundo nossa legislação, as despesas com educação, saúde e dependentes são dedutíveis da base de cálculo do imposto de renda, na modalidade “declaração completa”. Assumindo-se que a declaração completa é feita pelo cônjuge que ganha mais – e os dados mostram que os homens têm, em média, uma remuneração 15% superior às mulheres15 -, tais deduções beneficiam os homens mais diretamente, que resultam com mais renda disponível e maior possibilidade de barganha no equilíbrio familiar.

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Além disso, as mulheres são aquelas que respondem mais diretamente pelos cuidados com a casa e pessoas. Segundo o IBGE16, as mulheres, na média, dedicam 20,9 horas por semana com afazeres domésticos, enquanto homens ocupam apenas 10,8h com tais tarefas. Esse cenário engloba tanto mulheres empregadas como aquelas que estão fora da força de trabalho – portanto, independentemente da atuação profissional, é a mulher a figura majoritariamente responsável pelo cuidado doméstico.

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Esse dado tem duas implicações diferentes. Em primeiro lugar, há uma parcela relevante de trabalho “não remunerado” (exatamente esse “cuidar”) que não é reconhecido como renda ou crédito para fins de dedução. Para as mulheres que não trabalham, poderíamos dizer que as atividades domésticas seriam compensadas com a dedução da base do IR como dependentes – mas, novamente, a dedução beneficia os homens, titulares da renda da casa, além de poder desincentivar a busca por empregos formais pelas mulheres. Para aquelas que trabalham e ainda têm o ônus de cuidar dos afazeres domésticos – seja diretamente, seja supervisionando tarefas terceirizadas – não lhes é reconhecido nenhum crédito ou dedução pela atividade.

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De outro lado, a constatação de que as mulheres são as principais responsáveis pela casa e pessoas que nela habitam resulta na existência de vieses implícitos na tributação do consumo: sendo as mulheres as majoritariamente incumbidas do “cuidado com o lar”, é possível especular que, tendo renda própria, elas são igualmente encarregadas dos gastos diretos da casa, como alimentação, roupa e medicamentos. Como consequência, resultam com menos renda no equilíbrio familiar e, ainda, são tributadas por uma base notoriamente regressiva, incidente sobre bens e serviços consumidos em benefício da família.

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Essa situação pode ser (e em muitos casos é) parcialmente revertida pela concessão de benefícios fiscais específicos para bens de primeira necessidade, mas o mesmo não ocorre com vestuário e medicamentos, por exemplo. Por essa razão, a eliminação desses benefícios fiscais, tal como proposto em projetos de reforma tributária em debate no Poder Legislativo, resultaria em um agravamento evidente da desigualdade de gênero.

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Por fim, ainda devemos tratar da tributação específica dos chamados “produtos femininos” e repensá-la.

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Do ponto de vista do ICMS, o padrão nacional é a tributação de cosméticos pela alíquota de 25%17. Já a União, via IPI, fixa a tributação entre 22% a 12%, a depender do bem, como se vê do item 33.04 da tabela do IPI. A justificativa para o nível elevado das alíquotas está no fato de que cosméticos são bens supérfluos e, como tais, devem ser mais onerados.

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Porém, ainda que a essencialidade desses bens seja questionável, a imposição de um certo padrão de beleza e comportamento para as mulheres é um fato inegável. Ao mesmo tempo, ainda que o uso de tais produtos esteja na esfera de autonomia das mulheres, como de fato deve estar, é igualmente verdade que o não cumprimento desse padrão, especialmente em ambientes profissionais, é visto como sinal de descuido e inadequação. Sendo assim, a reflexão sobre as alíquotas atualmente vigentes é necessária.

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Ao lado dos cosméticos, há, ainda, o debate sobre os absorventes higiênicos. Como é óbvio, são bens absolutamente essenciais e indispensáveis para as mulheres, por uma questão biológica e imutável, que nada tem a ver com opção de consumo. Apesar disso, o Brasil é um dos países que mais o tributam, segundo levantamento realizado pelo Jornal Nexo18.

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Ainda nesse estudo, destaca-se a posição do Canadá, que, em 2015, aboliu a tributação sobre tais bens, justamente após profunda discussão sobre a discrepância da tributação entre homens e mulheres ao longo da vida. A medida canadense teve por objetivo “igualar a taxação sobre produtos para homens e mulheres, já que o absorvente é um item de higiene básica, com uso não opcional, utilizado apenas por mulheres e sem correspondente para homens”. Trata-se, portanto, de promover a neutralidade fiscal entre gêneros.

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Há ainda outras situações no mínimo peculiares, que bem evidenciam a tributação mais onerosa para bens de consumo que são adquiridos majoritariamente por mulheres. Veja-se, por exemplo, no caso brasileiro, a tributação respectivamente de ICMS e IPI sobre bombas de amamentação (18% ICMS e 5% de IPI), adaptadores de silicone para seios durante a amamentação (18% ICMS e 10% de IPI) e os sabonetes íntimos femininos (18% ICMS e 10% de IPI), todos eles bens essenciais para as mulheres, únicas consumidoras desse tipo de produtos. Isso tudo ao lado da elevadíssima tributação das fraldas descartáveis (18% ICMS e 15% IPI).

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Como se percebe, o debate é amplo e não deve ser negligenciado. A conexão desses temas com o desenho da política fiscal do Estado brasileiro é evidente.

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Não se nega que o sistema tributário deve ter por objetivo a busca da eficiência arrecadatória pela uso de estruturas de tributação simplificadas tanto do ponto de vista da fiscalização quanto da perspectiva do contribuinte. Porém, ao lado dessa função, há outra, que deve ser sublinhada: as normas tributárias devem ser instrumentos de realização de justiça. A busca da igualdade pela via da tributação é uma demanda do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988.

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Recentemente, os debates sobre reforma tributária em específico e tributação no geral têm se focado apenas no primeiro ponto, sob a alegação de que a realização da igualdade se dará via despesa pública. Da perspectiva da relação entre tributação e gênero, é evidente que a existência de receitas suficientes para realizar políticas de redistribuição é fundamental e deve ser perseguida – não se nega que a eficiência é um fim a ser alcançado quando se cogita de políticas fiscais.

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Porém, igualmente devemos reconhecer que as estruturas tributárias vigentes podem, por si sós, reforçar as desigualdades de gênero atualmente existentes. Nesse aspecto, é relevante refletir como a política fiscal pode auxiliar na eliminação desses vieses e, assim, assegurar um sistema tributário mais equânime.

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1 Professora da FGV Direito SP, Doutora em Direito pela USP e Presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB-SP.

2 Advogada e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

3 Advogada, Doutora em Direito pela USP e Diretora Tesoureira da OAB/SP.

4 Professora da Universidade Federal do Paraná, Doutora em Direito pela PUC-SP e advogada.

5 Advogada e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

6 Advogada e Mestre em Direito Tributário pela FGV-SP.

7 Advogada e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

8 Advogada em São Paulo.

9 Fundadoras e membros do comitê executivo do WIT – Women in Tax Brazil. Contato: adm@witax.com.br.

10 JONES, Carolyn C. “Dollars and Selves: Women’s Tax Criticism and Resistance in the 1870s”, in INFANTI, Anthony C., & CRAWFORD, Bridget. Critical Tax Theory: An Introduction. New York: Cambridge University Press, 2009.

11 GROWN, Caren., & IMRAAN, Valodia. Taxation and Gender Equity : A Comparative Analysis of Direct and Indirect Taxes in Developing and Developed Countries. London; New York, N.Y.: Ottawa: Routledge; International Development Research Centre, 2010. BARNETT, Kathleen., & CAREN, Grown. Gender Impacts of Government Revenue Collection [electronic Resource]: The Case of Taxation. London: Commonwealth Secretariat, 2004. CAPRARO, Chiara. Women’s Rights And Fiscal Justice. Sur International Journal on Human Rights 13.24 (2016): 17-26. STEWART, Miranda. Tax, Social Policy and Gender : Rethinking Equality and Efficiency. Canberra, A.C.T., 2017. KOLOVICH, Lisa. Fiscal Policies and Gender Equality. Washington, D.C.: International Monetary Fund, 2017. IMF ELibrary.

12 YAZıCıOĞLU, Alara Efsun. Pink Tax and the Law : Discriminating against Women Consumers. Abingdon, Oxon [UK] ; New York, NY, 2018. PETROU, I., M.D. (2017). The Pink Tax. Dermatology Times, 38(9), 2-1,41. NYC Consumer Affairs. From Cradle to Cane: The Cost of Being a Female Consumer – A Study of Gender Pricing in New York City. Disponível em: https://www1.nyc.gov/site/dca/partners/gender-pricing-study.page, acesso em 26 abr 2019.

13 STOTSKY, Janet Gale. Gender Bias in Tax Systems. Washington, D.C.: International Monetary Fund, 1996. IMF Working Papers; Working Paper ; No. 96/99.

14 STOTSKY, Janet G. Stotsky, Janet Gale. Gender Bias in Tax Systems, cit.

15Confira-se em: https://www.oecd.org/gender/Closing%20the%20Gender%20Gap%20-%20Brazil%20FINAL.pdf, acesso em 26 abr 2019. Segundo dados do IBGE de 2016, a remuneração das mulheres equivale a 76,5% da remuneração dos homens, na média. Confira-se: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem, acesso em 26 abr 2019.

18 Confira-se em: https://www.nexojornal.com.br/grafico/2016/12/05/O-imposto-sobre-absorventes-no-Brasil-e-no-mundo, acesso em 26 abr 2019.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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