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Sexo em tempos de feminismo – e ainda muito machismo

Saiu no site REVISTA COSMOPOLITAN:

 

Veja publicação original: Sexo em tempos de feminismo – e ainda muito machismo

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Por Letícia Gonzáles

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Como os desafios de muitas podem ajudar cada uma a repensar suas transas. Spoiler: com muito amor e respeito

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Três cenas na vida de quem transa: 1) Sexo com tesão mútuo. 2) Sexo com insistência. 3) Desrespeito e assédio. A opção boa é fácil de identificar, mas a maioria das mulheres, principalmente as que transam com homens, conhece a lista toda. É no meio dela que descobre o sexo, amadurece, namora, tem orgasmo, perde orgasmo. A vida avança entre esses três números e eles têm roteiros variados e dias seguintes idem, mas com um ponto em comum. Em 1, 2 e 3, quem mais age é o homem. Em 1, 2 e 3, quem mais reage é a mulher.

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Claro que isso está mudando. No último Carnaval, ficou mais claro o limite para a atitude masculina; no trabalho, começa a ficar óbvio que funcionária não é pacote de benefício de chefe; mulher gostar de sexo é menos pecado hoje do que foi ontem. “Estamos no meio de um processo de profunda mudança de mentalidade. Não ocorre em todo o mundo ao mesmo tempo, mas a tendência é as mulheres se libertarem e irem em busca do seu prazer”, explica a psicanalista Regina Navarro Lins, que acumula 45 anos de experiência no consultório e 12 livros sobre o tema.

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Regina fala de 5 mil anos, o tempo em que o mundo se organiza, quase 100%, no patriarcado. É o sistema que diz que sobrenome de homem é mais importante, que mulher tem de fazer o que o mozão manda e que, se transar muito, está doente. Ou louca. Ou depravada. Segundo Regina, todos crescemos com essas ideias; elas dominam geral, e descosturá-las não é fácil para ninguém. “A mulher precisa, primeiro, admitir que tem desejo sexual. Tem aquelas que passam a festa dando amassos mas garantem que não têm tesão para transar no primeiro encontro. Qual o problema do sexo casual? É medo de ser julgada”, afirma. “Se o cara sumir porque a moça é muito livre, paciência.”

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Até porque quem é livre não agrada o tempo todo. “Uma paciente minha odiava sexo anal, mas começou um namoro e, como tinha medo de perder o cara, se sujeitava, mesmo morrendo de dor. Muitas mulheres fazem isso. No sexo, é muito importante que ninguém faça nada só porque o outro quer. O preço pode ser tão alto! Você acha que uma relação se sustenta com um ressentimento desses? Inconscientemente a pessoa já sai dando o troco.” No futuro, garante a psicanalista, vamos topar menos sacrifícios doloridos e regras impostas, como a da monogamia. “Se quiser ficar casado 40 anos transando só com a mesma pessoa, tá tudo certo. O que não serve mais é o modelo. Cada um precisa achar sua forma de viver”, diz.

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Boa de boca

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E dá para achar a fórmula num mundo que não sabe falar de sexo? A publicitária Cindy Gallop se fez essa pergunta. Há nove anos, ela criou o movimento Make Love Not Porn – MLNP (“Faça amor não pornô”, em tradução livre) para estimular a honestidade e a comunicação sexual. Ela, que hoje tem 58 anos e sempre gostou de sair com caras de 20 e poucos anos, percebeu que o pornô é a primeira e única fonte de informação para muitos jovens. O resultado é a turma transando como se estivesse num set de hardcore.

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O projeto de Cindy começou esclarecendo coisas simples, como: algumas mulheres acham legal quando gozam no rosto delas. Outras não. Algumas depilam tudo. Outras não. “O MLNP tem como único objetivo tornar mais fáceis as conversas sobre sexo. Uma transa ótima é sobre se comunicar, descobrir coisas do outro, explorar. Claro, isso é difícil porque, quando estamos nus, ficamos vulneráveis. O ego sexual é muito frágil. Você se apavora, acha que vai magoar a outra pessoa, virá-la contra você, descarrilhar o encontro e quem sabe até a relação”, afirma a publicitária em entrevista à COSMO.

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A atriz Fernanda Lima, que este ano inicia a 11ª temporada do programa Amor & Sexo, concorda que verbalizar deixa tudo mais confortável. “A experiência de falar de sexo na TV abriu muito minha maneira de pensar, de entender, de aceitar e de trocar com outras pessoas. Com certeza, falar de sexo se tornou algo muito mais natural pra mim e faz com que pessoas que mal conheço também queiram dividir suas histórias comigo”, diz.

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Para quebrar o tabu de vez, Cindy defende que as famílias passem valores sexuais do mesmo modo que instigam os filhos a serem honestos e trabalhadores. “Ninguém nos cria para que a gente se comporte bem na cama, mas deveria. Na cama, empatia, sensibilidade e generosidade são tão importantes quanto nas outras áreas da vida”, afirma. “Vejo como ela”, diz Fernanda. “É necessário esse diálogo para que nossos meninos, no futuro, consigam olhar para a mulher como uma parceira, e não como um objeto. Para que eles possam entender que sexo vai muito além de penetração e que a sinceridade consigo mesmo é fundamental.”

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Ruim de cama

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A falta de comunicação tem efeitos desastrosos, como o encontro do comediante Aziz Ansari com a jovem fotógrafa que o acusou de abuso. Grace, o pseudônimo escolhido para contar a história em um site em janeiro deste ano, tentou dar pistas de que não queria transar com Ansari na noite em que saíram para jantar e voltaram ao apartamento do ator, mas ele não entendeu e insistiu.

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No fim do encontro, Grace havia feito o que não queria (sexo oral nele) e voltou chorando para casa. “Estou grata pelo relato ter sido tão gráfico”, diz Cindy. “Mostrou como o silêncio da nossa sociedade bloqueia a habilidade de nos comunicarmos sexualmente com os outros. O triste é que muitos homens também estão tendo sexo ruim.”

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O relato de Grace descreve uma transa péssima, mas ela e o site entenderam como abuso. “Se você teve uma experiência sexual ruim, você deveria ter ido para casa”, respondeu a âncora de TV Ashleigh Banfield, que considerou o texto irresponsável com o esforço #MeToo. “Você sujou um movimento com que eu e minhas irmãs de trabalho sonhamos por décadas, que finalmente mudou um ambiente profissional sexualizado”, argumentou. Na revista The Atlantic, a escritora Caitlin Flanagan chamou o relato de “pornografia de vingança”, pois a intenção de detalhar a intimidade de Ansari era humilhá-lo.

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O caso provocou ainda mais debate do que a carta aberta assinada por 100 artistas francesas uma semana antes, em que defendiam o direito dos homens de importunar as mulheres no flerte. O texto criticou os julgamentos midiáticos que acabam com carreiras de executivos “por uma simples mão no joelho”. Duas Catherines famosas, a atriz Deneuve e a escritora Millet, viram puritanismo na onda que o #MeToo levantou.

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Segundo elas, o movimento responde ao machismo colocando as mulheres no papel de vítimas infantilizadas. “Sou contra isso de que todos se acham juízes da noite para o dia”, escreveu Deneuve. “Acredito que hoje as mulheres podem se defender de uma mão-boba. Como intelectual, quero ajudá-las a encontrar essa força moral”, disse Millet na televisão.

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O ponto de Deneuve, seguido pela escritora Margaret Atwood, autora do livro O Conto da Aia (Rocco), que deu origem à série Handmaid¿s Tale, lembra que vivemos em países onde as leis, e não a internet e a mídia, devem julgar os crimes sexuais – ainda que, no Brasil, as delegacias falhem brutalmente ao receber as vítimas de estupro e juízes escrevam sentenças de um machismo atroz. O de Millet diz que, não importa o que o mundo e os homens façam, você ainda pode ser forte e dona da sua história. Sociedade, indivíduo, causa, consequência. Como as cenas 1, 2 e 3 do começo do texto, é no meio dessa mistura complexa que nós, mulheres, precisamos viver. Sem exceção.

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Por outro lado

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Para o feminismo radical, corrente que tem adeptas no Brasil, as coisas só vão melhorar quando aqueles 5 mil anos de tradição ruírem. “Toda a nossa sexualidade foi adestrada para se manifestar ao gosto dos homens. Nunca tivemos liberdade para definir nossos gostos. Não temos condições de exercer uma vida sexual saudável”, defende a advogada Eloísa Samy, do Rio de Janeiro. Segundo a ativista, somos menos livres do que gostamos de pensar, mesmo quando escolhemos com quem transar e em quais posições. O motivo: estamos submissas ao desejo masculino o tempo todo.

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A corrente critica práticas com o BDSM, por exemplo, pois brinca com os papéis de dominada e dominador. “É a cultura do estupro na forma romantizada. A perversão é encontrar satisfação na violência, uma ferida que precisa ser curada, e não exercida.”

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Outra esfera em que sociedade e indivíduo se complicam é na vida das mulheres negras. Os efeitos do racismo na intimidade é uma pauta importante do feminismo negro atual. A palmitagem, gíria para dizer que uma pessoa negra escolheu se relacionar com uma branca, rende debates acalorados e uns quantos dedos apontados. Mais do que escolhas pessoais, porém, o movimento quer chamar a atenção para um problema coletivo, diz a arquiteta e ativista Stephanie Ribeiro, de Araraquara (SP). “Não ditamos como as mulheres negras devem se relacionar”, afirma Stephanie. “A questão é transpor o racismo enraizado que nos torna incapazes de nos amar e amar nossos semelhantes. O que vemos na mídia é a beleza branca sendo vendida como ideal afetivo e de vida para todo mundo. Isso nos afeta enquanto negras, porque é evidente que somos preteridas mesmo pelos nossos semelhantes. Eu, Stephanie, senti algo diferente quando fui negligenciada – por ser negra – por um homem negro do que quando isso aconteceu com um homem branco. O racismo dele foi muito cruel.”

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Além da solidão, as mulheres negras lidam com o fato de que a televisão as mostra, quase sempre, em papéis sensuais e de trabalho subalterno. Ser vista como uma “máquina de sexo” sem outra coisa a oferecer é um problema recorrente, diz Stephanie. E grave. Como uma negra consegue explorar seu corpo com um barulho desses? “Quanto mais vamos debatendo a forma como o racismo nos impacta, mais podemos buscar alternativas e respostas. Experimentação sexual é consciência e respeito de si. Vejo que feministas em geral pararam de debater sexualidade publicamente. Falamos muito que somos `sexualmente livres¿, mas de fato exercemos isso? Até que ponto ser sexualmente livre é uma escolha individual, e não uma construção coletiva?”

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Tanto faz não tem

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Conversar, discutir, apesar de parecerem baldes de água fria numa química que ninguém entende bem como funciona, são das atitudes mais urgentes para agora: desde dividir angústias pessoais com amigas e terapeutas até debater em rodas femininas e arriscar ser franca com os caras, namorados, amigos, filhos – seja para quebrar o tabu, como defende o Make Love Not Porn, seja para nos posicionar sobre o que queremos ou não. “Com esse movimento, a mulher vem ganhando força para se sentir no direito de reivindicar igualdade e fazer do corpo dela o que quiser”, afirma Regina Navarro Lins. Precisamos agir mais que reagir. De se inclinar para dar o primeiro beijo a deixar as transas por insistência no passado.

 

 

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