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O ‘milagre’ que livrou mulher de ser executada por matar o homem que a estuprou

Saiu no site BBC:

 

Veja publicação original:  O ‘milagre’ que livrou mulher de ser executada por matar o homem que a estuprou

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Noura Hussein soluçou incontrolavelmente quando viu sua mãe no início deste mês. Era a primeira vez que ela recebia a visita da família desde que foi presa um ano atrás, no Sudão.

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A jovem de 19 anos foi condenada à morte após matar o marido, a quem acusou de tê-la estuprado. Chorando, ela disse à mãe que havia planejado se matar depois de sofrer a violência em casa.

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Mas quando tudo parecia perdido, inclusive para seus pais, um “milagre” aconteceu. Um tribunal de apelação reverteu a sentença de morte por enforcamento. O advogado dela, Abdelaha Mohamad, confirmou que a pena foi convertida em cinco anos de prisão. A mãe, dela Zainab Ahmed, resumiu à BBC News seu sentimento com a notícia: felicidade.

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Em entrevista exclusiva à BBC, seu pai havia dito que nunca imaginou que fazê-la se casar com o primo teria consequências tão terríveis.

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“Ela passou a se odiar depois do estupro”, disse a mãe antes da decisão judicial favorável à filha. “Ela tinha uma faca pronta para tirar sua própria vida se ele a tocasse novamente.”

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Mas, no calor do momento, quando ele se aproximou outra vez, ela o esfaqueou. Foi legítima defesa, sua mãe insiste.

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Noura queria terminar os estudos e sonhava ser professora. Mas foi forçada ao casamento aos 16 anos e tentou fugir. Após se esconder na casa de uma tia, foi devolvida pela própria família ao marido.

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Ela diz que alguns dias depois de retornar, o marido chamou alguns primos e estes a seguraram enquanto ele a estuprava. No dia seguinte, o marido teria tentado fazer o mesmo. Noura diz que apenas se defendeu com a faca.

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Campanha internacional

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Quando Noura foi sentenciada à morte, no mês passado, uma campanha online, #JusticeforNoura (Justiça para Noura), espalhou-se pelo mundo.

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A modelo Naomi Campbell e a atriz Emma Watson estavam entre as celebridades que se uniram aos ativistas para exigir a anulação da pena. Naomi postou no Instagram uma reportagem do jornal The Guardian pedindo ajuda para pressionar o governo sudanês e salvar Noura.

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Quando a Anistia Internacional pediu às pessoas que enviassem mensagens ao Ministro da Justiça do Sudão pedindo que ele interviesse a favor de Noura, o volume enviado forçou-o a obter um novo endereço de email.

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Noura só descobriu essa corrente de apoio pelo mundo quando sua mãe a visitou na prisão feminina de Omdurman.

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O mundo atual dela é limitado pelas paredes da prisão, onde todos os detentos vivem em um grande quintal.

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“Não há teto, então, a maioria das mulheres precisa usar lençóis para se proteger do sol”, explica o coordenador da ONG Justiça na África, Hafiz Mohammed.

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Noura permanece com as algemas ela usa desde que foi presa.

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Antes da pena de morte ter sido convertida a prisão, a mãe da jovem disse que Noura aparentava estar saudável, mas seu “espírito parecia quebrado”.

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A segunda de oito filhos, Noura Hussein cresceu na aldeia de al-Bager, 40 quilômetros ao sul de Cartum. É um lugar árido, cercado por morros arenosos e rochosos, não muito longe do rio Nilo.

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As cores brilhantes das frutas e legumes colocados em panos no chão do mercado local proporcionam raras explosões de cores que quebram a paisagem predominantemente marrom e empoeirada.

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Zainab Ahmed diz que sua filha sempre foi uma garota quieta e inteligente.

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“Ela tinha ambições”, afirma Zainab. “Noura sonhava estudar direito na universidade e se tornar professora.”

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Sua numerosa família deixara a região de Darfur, dominada pelo conflito, para se mudar para al-Bager quando Noura era criança. Eles não tinham muito dinheiro, mas o negócio do pai – uma pequena loja de ferragens que vendia ferramentas e óleo – significava que a garota poderia ter acesso à educação.

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Mas em 2015, o primo de 32 anos de Hussein, Abdulrahman Mohamed Hammad, a pediu em casamento. Ela tinha 16 anos.

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Sua mãe diz que a filha, inicialmente, não pareceu incomodada com a ideia, mas pediu permissão para continuar estudando. Ela também pediu que o casamento fosse adiado até que sua mãe, que estava grávida, tivesse dado à luz.

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Casamento forçado

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Mas a pressão da família começou a aumentar, principalmente a de seu próprio pai, Hussein.

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“Muitas jovens da região estavam ficando grávidas e tendo filhos ilegítimos”, ele diz.

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Hussein diz que não queria que ela sofresse um destino semelhante e acabasse sem marido.

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Enquanto participava da cerimônia inicial de casamento, ficou claro que a oposição de Noura à ideia estava aumentando.

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Ela fugiu para a casa de sua tia em Sinnar, uma cidade a 350 km de distância, e permaneceu com ela por dois dias. A jovem foi persuadida a voltar para casa após ouvir que o casamento não seria confirmado.

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Assim que retornou, no entanto, a cerimônia foi concluída, mas ela não seria obrigada a morar com o marido.

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Nos dois anos seguintes, Noura permaneceu na casa de sua família. Quando Abdulrahman a visitou, ela lhe disse claramente que não queria estar casada com ele.

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No entanto, os idosos da família começaram a insistir que Noura e seu marido formalizassem o relacionamento e se comportassem como um casal legalmente casado.

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Em suas comunidades mais próximas, são os anciões que tomam todas as decisões importantes. Honra e respeito familiar são os valores mais importantes da cultura.

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Seu pai, Hussein, diz que não viu nenhum bom motivo para a filha continuar recusando a união. A família tinha sido paciente por anos.

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Sob pressão, Noura concordou em morar com Abdulrahman em abril de 2017.

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Ilustração de Noura na prisão
Image captionNoura queria ser professora e para isso pediu para que seu casamento fosse adiado

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De acordo com um relato obtido pela CNN, Noura diz que resistiu aos avanços sexuais do marido na primeira semana em que viveram juntos.

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Ela chorou e se recusou a comer. Quando Abdulrahman dormiu, ela tentou sair de casa, mas a porta estava trancada.

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No 9º dia, Abdulrahman chegou ao apartamento com alguns parentes que rasgaram suas roupas e a seguraram enquanto ele a estuprava, segundo o relato da CNN.

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No dia seguinte, Abdulrahman tentou novamente. Desta vez, Noura pegou a faca que ela disse à mãe que usaria para se matar.

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O relato de Noura diz que, na luta com o marido, a mão dela foi cortada e Abdulrahman mordeu seu ombro.

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Depois, o relato pula para a parte em que Noura sai correndo para a casa de seus pais, segurando uma faca ensanguentada.

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Hussein e sua mulher ficaram aterrorizados quando viram a filha em pé na frente deles segurando a arma do crime.

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“Eu matei meu marido depois que ele me estuprou”, disse ela, estendendo a faca.

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“Então, entendi a gravidade da situação”, diz o pai. Conhecendo a família de Abdulrahman, ele não tinha dúvida de que eles iriam buscar vingança.

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Família ameaçada

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Toda a família de Noura ficaria sob ameaça, conta o pai. Então, ele tomou a decisão de levar todos para a delegacia. Noura foi presa e acusada de homicídio premeditado.

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Sua família apelou aos anciãos para que se fizesse um acordo com a família de Abdulrahman. Eles se recusaram. Em vez disso, insistiram para que Hussein e Zainab não vissem mais Noura se quisessem proteger seus outros filhos.

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Quando suas casas e estabelecimentos comerciais foram incendiados, Hussein e Zainab nada fizeram.

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No entanto, a intimidação continuou e o casal decidiu fugir com os outros filhos.

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Um tribunal em Omdurman, a segunda maior cidade do Sudão, mais tarde condenou Noura. No mês passado, a família de seu marido recusou a opção de uma compensação monetária e a pena de morte por enforcamento foi determinada.

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Os advogados de Noura apelaram contra a sentença e pediram perdão. O resultado do recurso foi favorável a Noura.

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Antes do tribunal reverter a sentença, o pai contou numa entrevista que não via sua filha desde a noite em que o crime aconteceu. Ele temia as ameaças ao restante da família.

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“Também quero ver minha filha e visitá-la na prisão, ajudar a animá-la, mas sou incapaz de fazê-lo”, disse o pai antes da decisão judicial que salvou Noura da morte. Até então, ele somente havia conversado com a filha pelo telefone. Segundo ele, ela assegurou que estava bem de saúde.

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Últimas esperanças

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Zainab Ahmed sempre disse esperar que um “milagre” de última hora salvasse a filha. Ela acreditava que os anciãos tinham o poder de intervir e convencer a família de Abdulrahman a pedir aos tribunais para revogar a pena de morte.

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A Anistia Internacional dizia ser quase impossível que isso fosse capaz de acontecer.

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“Nesta altura dos acontecimentos, isso parece altamente improvável. Se eles tivessem feito isso durante o julgamento, poderiam ter solicitado atenuação. Nesta fase, uma família não teria voz em uma decisão judicial”, declarou Joan Nyanyuki, diretora da Anistia para a África Oriental, antes da decisão judicial.

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No entanto, a pressão internacional pode funcionar, dizia ela. Funcionou.

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“Quando pedimos às pessoas que enviassem emails ao Ministro da Justiça do Sudão, exigindo o perdão de Noura, ele teve de trocar seu endereço de e-mail após duas semanas. Se as pessoas escrevessem para as embaixadas sudanesas em seus respectivos países exigindo sua libertação, isso faria imensa diferença”, apostou Nyanyuki.

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Mas ela diz que o caso de Noura é apenas um entre milhares de outros casamentos forçados que terminam em violência sexual.

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Os pais de Noura vivem agora em uma aldeia longe de al-Bager.

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“Eu não esperava que as coisas atingissem esse grau. Ninguém quer uma vida miserável para sua filha”, diz Hussein que, antes da decisão judicial favorável a Noura, disse que a família estava “esperando que Deus a resgate.”

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Com reportagem adicional de Meghan Mohan

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Ilustrações Katie Horwich

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*Esta reportagem foi originalmente publicada em 26 de junho de 2018 e atualizada após a notícia da suspensão da sentença de morte.

 

 

 

 

 

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