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O crepúsculo do macho: a mobilização contra a “masculinidade tóxica”

Saiu no site VEJA

 

Veja publicação original: O crepúsculo do macho: a mobilização contra a “masculinidade tóxica”

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O batido e inconveniente machismo, apreendido desde a infância, já não cola e começa a ser vigiado pela Justiça e controlado com aulas de reeducação

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Por Jennifer Ann Thomas

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Homens de todo o mundo, uni-vos contra a masculinidade tóxica — a tola postura velha de guerra, ultrapassada, agressiva, segundo a qual homem não chora, homem não fraqueja, homem é o provedor da casa, homem, homem… A expressão, que começou a grassar com rapidez desde que o movimento #MeToo expôs os abusos sexuais de um predador como o produtor Harvey Weinstein, é, a rigor, a tradução moderna, e até então restrita aos trabalhos acadêmicos e manifestos políticos, de um antigo modo de ser: o machismo. Está no dicionário Houaiss: “comportamento que tende a negar à mulher a extensão de prerrogativas ou direitos do homem”.

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No início deste ano, um anúncio da Gillette pôs lenha nessa fogueira cotidiana em segundos que parecem revisitar décadas de má postura — na propaganda, veem-se amigos detendo companheiros que brigam, repreendendo outros que assediam mulheres, exigindo de parceiros que as deixem falar, sem interrupção. Movimentos feministas celebraram — no entanto, houve ameaças de boicote aos produtos da Gillette, o que diz muito sobre nosso tempo. Até a semana passada, o vídeo no YouTube contava 33 milhões de visualizações. É muita coisa.

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 VOLUNTÁRIO – Lima, que frequenta palestras: “Machista em recuperação” (JONNE RORIZ/.)

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A boa-nova é que a masculinidade tóxica, o machismo, vale insistir, já não tem a vida fácil de antes, apesar da multidão que criticou a Gillette e acha que Weinstein não fez nada de tão grave assim. Cabe questioná-la, e é o que se tem feito. Vêm crescendo os casos de apresentação voluntária a palestras e encontros de reeducação e também as convocações compulsórias diante de juízes.

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No começo de outubro, um grupo de dezessete homens denunciados por agressões contra mulheres se apresentou ao juiz Mário Rubens Assumpção Filho, numa sala do Ministério Público de São Paulo. Eles estavam ali, dentro de um projeto chamado Tempo de Despertar, para entender que é possível deixar de lado a educação de base machista para substituí-la por alternativas adequadas (leia abaixo). Não existe distinção de classe social entre os alunos machões — nos encontros, como no presenciado por VEJA, há executivos de empresas, policiais e profissionais autônomos do setor de entretenimento. Os encontros acontecem a cada quinzena e são previstos na Lei Maria da Penha, de 2006 — mas apenas em 2014 a iniciativa das reuniões começou em Taboão da Serra, em São Paulo, e em 2017 chegou à capital.

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Socos, empurrões e até ameaças de queimaduras com ácido, entre outras atitudes abomináveis, figuram entre as denúncias que orbitam a turma. No início das conversas, a promotora de Justiça Gabriela Manssur, idealizadora do projeto, explica as diferenças entre legítima defesa e lesão corporal. “Os homens tentam justificar seus atos culpando a mulher, que na visão deles teria ‘começado’ o conflito”, costuma dizer Gabriela a ouvidos atentos e olhos arregalados. “Mas defender-se é diferente de agredir. Quase sempre, o homem é fisicamente mais forte. Se fosse defesa, ele não precisaria machucá-­la para se impor.” O resultado da iniciativa legal já pôde ser sentido: desde a implementação, a reincidência dos agressores caiu de 65% para 2%.

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Convém ressaltar que a postura dos indivíduos colocados diante de autoridades do Judiciário é a parte visível, violenta, de um comportamento que muitas vezes parece ingênuo, sem importância, mas que pode crescer e fazer brotar do ovo da serpente uma monstruosidade. “Sou um machista em recuperação”, resume o enfermeiro e psicólogo Fledson de Souza Lima, de 40 anos, que participou, voluntariamente, de um treinamento em torno da questão da toxicidade masculina. “Nunca agredi fisicamente minha mulher, mas cometia abusos psicológicos ao tentar induzi-­la a sempre concordar comigo.” Lima, com algum esforço, conseguiu enxergar sua dificuldade, fez a autocrítica e tenta ir em frente. Não é uma atitude comum, e as barreiras são cuidadosamente erguidas ao longo da vida. Um levantamento com quase 20 000 indivíduos feito pelo portal Papo de Homem mostrou que a grande maioria cresceu aprendendo a não expressar as emoções, a não demonstrar fragilidade, e quase nunca conversou com os pais a respeito de boas maneiras com o sexo oposto.

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 CONVOCADOS – Reunião no Ministério Público de São Paulo: o juiz coordena discussões com agressores (JONNE RORIZ/.)

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“A permanente distinção, ser garanhão ou ser mulherzinha, como dizem, é uma prisão”, afirma o psicólogo Tales Furtado, coordenador do Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde. “Aceitar a ideia de que existe um meio-termo é libertador.” Trata-se de uma libertação complicada, porque a masculinidade tóxica talvez seja uma das mais adesivas práticas de nosso tempo, alimentada em canções, em filmes e sobretudo na publicidade (e por isso, repita-se, a peça da Gillette foi tão ruidosa). O que fazer? Especialistas ouvidos por VEJA são unânimes ao declarar que a solução estaria em um novo olhar para a educação de meninos. Diz a pedagoga Raquel Franzim, do Instituto Alana: “É vital não reforçar padrões e ensinar garotos a lidar com emoções”. Seria um bom começo.

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