HOME

Home

‘Lembrei dos olhares adultos mas impotentes diante de uma menina de rosto e mente deformados’, diz professora em relato a alunos sobre violência sofrida na infância

Saiu no site O GLOBO

 

Veja publicação original:    ‘Lembrei dos olhares adultos mas impotentes diante de uma menina de rosto e mente deformados’, diz professora em relato a alunos sobre violência sofrida na infância

.

Em artigo, educadora diz o que sentiu ao revelar rotina de violência doméstica, uma atitude que a fez pensar o papel da escola na vida de crianças e adolescentes que passam por situações semelhantes

.

 

.

“Uma das minhas primeiras memórias de infância é a do meu pai batendo a cabeça da minha mãe repetidas vezes contra uma mesa…” Assim começou meu discurso de abertura do Cine Debate, evento do Colégio e Curso de A a Z, onde sou diretora. A plateia de 600 alunas e alunos de ensino médio acompanhou uma discussão brilhante sobre o tema “Feminismos e Novas Masculinidades”. Foram discutidas as vertentes do feminismo, o papel do homem diante das demandas, lutas e conquistas de direitos da mulher assim como a urgência de uma configuração social mais igualitária. A cada edição, um professor é convidado a falar sobre o assunto antes do debate e, este ano, foi a minha vez.

.

Quando comecei a planejar minha fala, decidi que não me colocaria no papel da professora que entende do assunto a partir de uma realidade distante. Queria mostrar que episódios de violência contra a mulher não se restringem a uma ou outra classe, apesar de obviamente termos grupos mais expostos e suscetíveis. Eles estão entranhados de diferentes formas em todos os estratos sociais do país, e estão muito próximos de todos nós.

.

Apesar da incontrolável vontade de chorar, terminei meu discurso. No intervalo do evento, me vi cercada de alunas que compartilhavam suas experiências revividas pelas minhas. Uma delas me abraçou e, entre lágrimas, confessou que viu sua mãe apanhando muitas vezes, mas nunca teve coragem de contar para ninguém. Uma outra aluna me disse “você não tem cara de quem passou por essas coisas, eu nunca diria”, confirmando que, no imaginário coletivo, há um grupo em que é mais tolerável ou menos chocante que as mulheres sejam violentadas.

.

Antonia Burke, professora do Colégio e Curso de A a Z Foto: Divulgação
Antonia Burke, professora do Colégio e Curso de A a Z Foto: Divulgação

.

De tudo o que eu imaginei sentir depois do meu relato, não esperava a sensação de culpa. Comecei a questionar se não estava sendo desonesta ao “me aproveitar” da minha história para chamar a atenção para o problema. Confessei a uma grande amiga, também professora, que não sabia se deveria ter compartilhado tanto. Ela apontou as meninas e me respondeu: “se você não falar para elas, quem vai?”

.

A pergunta devolvida como resposta trouxe à superfície o que no fundo eu já sabia: o ambiente escolar pode ter um papel fundamental na vida de crianças e adolescentes que vivem situações de violência, sejam elas físicas, psicológicas ou morais. Quando há transparência e troca, a escola contribui para que uma criança não passe a vida aceitando brutalidades que colocam sua capacidade em xeque e não se permita reconstruir a dinâmica violenta que presenciou, por acreditar que aquilo é o “normal” ou é o que lhe resta.

.

A frase da minha amiga me transportou para 1995, quando não passei na prova de admissão do Pedro II e, dois anos depois, meu pai ainda se referia a mim como “a reprovada”. Minha professora, firme, respondeu “mas ela nunca repetiu um ano”. Me fez lembrar quando ganhei um concurso de redação e, recebendo a medalha, ouvir do meu pai “copiou de quem?”. O professor desfez o sorriso, mas falou que era a melhor redação que ele já tinha lido. Quando cheguei ao colégio com metade do meu rosto irreconhecível depois de uma surra, me lembro do carinho da professora que me abraçava forte, apesar de não dizer uma palavra.

.

Lembrei-me perfeitamente daqueles olhares adultos, tristes e cheios de compaixão, mas absolutamente impotentes diante de uma menina de rosto e mente deformados pela violência que sofria. Mal sabiam que, com tão pouco, me ajudavam a manter o mínimo de dignidade e amor próprio. Não era tudo o que eu precisava, mas era muito mais do que o que eu tinha.

.

Na época, pouco se falava sobre o assunto. Hoje, apesar de muitos retrocessos, avançamos. A nova geração se permite questionar, refletir, denunciar. Nesse sentido, uma escola acolhedora e preocupada com o desenvolvimento das habilidades socioemocionais tende a salvar muitos futuros adultos, ajudando-os a compreender que não estão sozinhos em seus problemas, medos e necessidades. A autoestima, a agressividade, a impulsividade, a carência e os sentimentos de auto sabotagem podem ser trabalhados. Como vítima e hoje educadora, sei que não é possível apagar memórias, mas é fundamental que eu faça a minha parte na reconstrução de indivíduos mais saudáveis, confiantes e empáticos.

.

* Antônia Burke, diretora do Colégio e Curso de A a Z e professora de redação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

HOME