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Eu, Leitora: “Sofri quatro abusos sexuais do líder espiritual Gê Marques, em quem confiava plenamente”

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:  Eu, Leitora: “Sofri quatro abusos sexuais do líder espiritual Gê Marques, em quem confiava plenamente”

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Com uma fé inabalável, Patrícia [nome fictício para preservar a identidade da vítima], hoje com 44 anos, acreditava no discurso de seu líder espiritual, mas alega que foi surpreendida por um homem violento que a estuprou. Ele comanda o Reino do Sol, que une os preceitos do Santo Daime com a umbanda, e é apontado por mais de 15 mulheres por abuso sexual. Também é acusado de influenciar o uso de drogas ilícitas entre as mulheres que abusou

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Por Depoimento a Felipe Carvalho

Eu tinha 29 anos quando conheci o Reino do Sol, uma igreja com os preceitos do Santo Daime, fundada pelo dirigente Gê Marques e a sua mulher, Rosângela Perez. Naquela época, em 2003, a instituição ficava em Parelheiros, um distrito próximo a São Paulo, onde tomei a ayahuasca pela primeira vez, fui recebida e acolhida com muito carinho por todos. Era como uma grande família. Depois dos trabalhos espirituais, o Gê Marques sempre me procurava para saber como tinha sido a experiência e se preocupava como um padrinho.

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Um dia fiquei sabendo que alguns membros da igreja fariam uma peregrinação conhecida como ‘Caminho da Fé’ que começava no sul de Minas Gerais e ia até Aparecida do Norte, no estado de São Paulo, fiquei com vontade de ir, mas por causa de vários compromissos de trabalho eu não podia participar do percurso completo. Por isso decidi encontrar o grupo em um dos trechos da viagem, aproveitando o final de semana.

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Na peregrinação, caminhamos durante muitas horas sob o efeito da bebida. Ao final do dia, o grupo todo parou para dormir numa pequena pousada para prosseguir a viagem no dia seguinte e o Gê Marques me chamou para conversar. Compartilhamos nossas impressões sobre as experiências da peregrinação daquele dia. Conversamos como parceiros de jornada e amigos. Me senti à vontade, pois ele demonstrava estar ali para apoiar, conduzir e ajudar os participantes. No decorrer do papo, me perguntou se eu concordava em participar de algo que ele batizou com o nome ‘vivência’, somente eu e ele. Como eu confiava nele, decidi participar.

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No horário combinado, nos encontramos no quarto dele, onde tinham duas camas de solteiro. Eu ainda estava sensibilizada com os efeitos do Santo Daime que tomamos ao longo do dia e, assim, uma prática espiritual naquele momento fazia sentido para mim. Depois de conversar sobre os objetivos da vivência, ele se aproximou, tocou o meu corpo e pediu para que eu me deitasse. Em seguida deitou sobre mim de maneira rude e egoísta, de forma que eu não consegui reagir. A expressão do rosto dele mudou. Fiquei surpresa, pois não imaginava que a experiência envolvia uma intimidade maior. Ele baixou a calça e consumou o ato sexual, de forma abrupta. Não consegui reagir e silenciei.

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Num primeiro momento senti muita confusão mental e vergonha. No dia seguinte, pela manhã, ele me cumprimentou como aquele amigo de sempre, ele estava feliz, fazia piadas e conversava com muita descontração, como se nada tivesse acontecido.

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Retornei para São Paulo e segui participando dos trabalhos no Reino do Sol. Procurei criar justificativas internas para explicar aquela situação e seguir adiante. Encontrei inclusive força e suporte em um ‘presente’ que ele me deu logo após a viagem, um hino ofertado por ele à minha pessoa chamado ‘Caminho da Fé’ (na doutrina do Santo Daime algumas pessoas ‘recebem’ canções espiritualmente, chamadas de hinos, e costumam oferecer esses hinos a outras pessoas do grupo). Foi um presente que aceitei de coração e passei a utilizar como gaze para estancar a confusão que aquela experiência provocou em mim. Construí mentalmente a ideia de que aquela experiência poderia trazer algum tipo de benefício, supondo que ele, pela idade avançada, tinha uma compreensão mais elevada da sexualidade que eu ainda não tinha naquele momento. Por outro lado, eu respeitava a Rosângela Perez, sua mulher, portanto me sentia também culpada e constrangida com a situação.

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Ainda sofri mais três situações de abuso sexual do Gê Marques.As ‘vivências’ que ele propunha dificultaram muito os meus trabalhos no Reino do Sol. A situação era contraditória, mas eu confiava absolutamente nele, alimentava certa admiração inclusive por sua habilidade e sua força ao conduzir os trabalhos espirituais. Eu sofria durante os encontros, culpava a mim mesma. Quando voltava pra casa, depois dos rituais na igreja, eu vivia mentalmente confusa, pois os hinos pregavam a verdade e a justiça, crenças que sempre carreguei comigo. Inclusive, o hino oferecido a mim era cantado com frequência, o que aumentava minha confusão interna. Inúmeras vezes ouvi o Gê Marques falar sobre ‘zelar pelas amizades’ e ‘confiar na luz do próximo’. Hoje compreendo que essa foi a forma que ele criou para evitar que as mulheres refletissem sobre suas atitudes sombrias.

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Tempos depois, precisei fazer uma cirurgia de emergência para retirar a vesícula. Em seguida fui proibida pelos médicos de tomar o Santo Daime e, assim, comecei a enxergar a situação de outra forma, com mais lucidez, clareza e com o distanciamento necessário. Me dei conta do quanto me sentia fragilizada, confusa e em conflito com meus valores morais. Tentei conversar com várias integrantes da igreja sobre o que vinha acontecendo, mas existia um código velado e nada se falava abertamente. Era um assunto absolutamente proibido.

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Me desliguei totalmente da casa em 2008. Em todos os abusos houve manipulação emocional por parte dele. Percebendo as minhas fragilidades, a minha confusão mental, ele se aproveitava da situação para ultrapassar as barreiras da amizade e chegar a uma intimidade que não existia, com o objetivo único de satisfazer seus desejos sexuais. Na minha cabeça, eram experiências idealizadas por uma pessoa que eu respeitava e em quem confiava, muito mais madura do que eu. E essa ilusão foi construída com a narrativa dele, por meio da proximidade que mantinha comigo, pelo cuidado que aparentava ter ao longo dos trabalhos espirituais e pela firmeza que demonstrava enquanto dirigia e conduzia os encontros com ayahuasca e mediúnicos no Reino do Sol.

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O líder espiritual Gê Marques em cerimônia no Reino do Sol (Foto: Reprodução)

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Fora da religião

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Em 2009 me casei e me mudei para Santa Catarina. Retornei a São Paulo para fazer alguns exames e visitar minha família, pois eu estava grávida. O Gê Marques soube da novidade e entrou em contato comigo. Fez questão de deixar claro que estava ligando na velha condição de amigo. Disse que estava com saudade e gostaria muito me encontrar para conversar pessoalmente.Naquele momento eu estava feliz, casada, vivendo numa cidade nova e aguardando o nascimento do meu primeiro filho. Embora tivesse consciência do quanto o meu afastamento do Reino do Sol havia sido importante para o meu equilíbrio emocional, resolvi aceitar o convite, na condição de alguém que já não tinha ligação nenhuma com a doutrina do Santo Daime e Umbanda. No fundo imaginei que o objetivo dele era esclarecer tudo o que houve e se desculpar pelos erros que cometeu.

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Fomos almoçar e, ao contrário do que eu imaginava, ele insinuou que gostaria de prolongar o nosso encontro, provavelmente tentando arquitetar um encontro em um motel. Percebi que estava frente a frente com o mesmo homem de sempre, talvez mais perverso ainda. Terminamos o almoço e ele ainda insistiu num abraço íntimo, mas não recebeu o meu de volta. Fui para o estacionamento, entrei no carro e fui embora. Fiquei surpresa, mas naquele momento, com pena também, pois ao longo da nossa conversa pude notar pela expressão do rosto dele que sentia um certo constrangimento. Talvez tenha notado o quanto eu estava feliz e realizada com o meu casamento e a nova vida longe da igreja que ele construiu.

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Ainda precisei de bastante tempo para entender tudo o que vivi ao longo desses cinco anos ligada ao Reino do Sol. Ainda continuei sendo assediada pelo Gê Marques à distância, por mensagens virtuais, até o meu último contato em 2010. Quando o meu filho completou um ano, passei por uma depressão que me levou a buscar o autoconhecimento e a análise. Levei muito tempo para compartilhar essa experiência com a minha psicóloga. Reviver essas lembranças despertava em mim sentimentos extremamente incômodos, para não dizer vergonhosos.

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Cerimônia no Reino do Sol, em São Paulo (Foto: Reprodução)
Cerimônia no Reino do Sol, em São Paulo (Foto: Reprodução)

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Outros abusos

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Na minha infância, aos seis anos, fui abusada pelo pai de um amigo e cresci presenciando na minha família muitos atos de violência doméstica dos quais meus pais eram omissos. Aprendi a manter tudo em sigilo como se em algum momento essas memórias fossem cair no esquecimento.

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No final de 2015, fiquei sabendo por uma amiga que uma mulher que frequentava os trabalhos no Reino do Sol havia acusado publicamente o Gê Marques de abuso sexual e estupro. Essa amiga foi uma das pessoas que acompanhou mais de perto a minha história no Reino do Sol e todo o meu sofrimento, por isso resolveu me perguntar se aquilo fazia sentido. Respondi que sim e comentei que finalmente alguém tinha resolvido tratar o assunto com a seriedade que merecia.

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Dias depois essa mesma amiga me encaminhou um e-mail do Gê Marques, enviado a todos os membros da igreja, respondendo as acusações, após terem vindo à tona na lista de e-mails mais três relatos de abusos com outras mulheres. Nessa carta, ele reconhecia a própria ignorância, pedia perdão às mulheres, seus companheiros e familiares e prometia buscar ajuda para ‘curar os males da alma’. Infelizmente ficou claro que isso era apenas uma estratégia para ganhar tempo, pois logo em seguida ele mudou o discurso, dizendo que as mulheres eram mentirosas e voltou a comandar os trabalhos do Reino do Sol, onde está até hoje.

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Atualmente o grupo de vítimas já conta com 15 mulheres que relataram situações de abuso. Em quase todos os casos os abusos envolveram o uso de drogas como LSD, ecstasy ou álcool, que ele oferecia na condição de xamã, às vezes de forma escondida e muitas vezes em situações de aconselhamento como líder espiritual ou propondo ‘vivências espirituais’. Há um processo aberto pelo Ministério Público com quatro denúncias registradas.

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Agora compreendo que durante anos, de forma lenta e contínua, este dirigente espiritual utilizou o suposto domínio e conhecimento espiritual que possuía para assumir o papel de autoridade máxima na condução dos trabalhos do Santo Daime e Umbanda na igreja que fundou. Conquistou com o seu carisma e inteligência o comprometimento dos fiéis e confiança cega no que propunha. Usou um discurso extremamente elaborado e sofisticado para os integrantes da igreja acreditarem na seriedade do compromisso que assumiu como dirigente. Utilizando falas que valorizavam a ‘amizade’ e a importância da ‘ligação com a luz do outro’ procurou se proteger das sequelas provocadas pelos abusos cometidos. Utilizou da confiança, poder e autoridade que possuía para cometer atos de violência sexual contra muitas mulheres.

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De forma machista e egocêntrica, ele conduziu diversas mulheres ao precipício, pois tornou todas elas vítimas e reféns de relacionamentos extremamente abusivos, cometendo atos sexuais e induzindo várias ao uso de drogas, sempre com a desculpa de proporcionar cura e amadurecimento espiritual. Construiu ligações com muitas colegas, em especial comigo, alimentando a ideia de que existiam benefícios em participar das vivências que ele propunha, que nada mais eram do que encontros que serviam para satisfazer seus desejos sexuais. O preço dessa ‘amizade’ paguei solitariamente, durante os rituais na igreja do Santo Daime, onde vivenciei momentos de martírio e tormento e, por vezes, passei por períodos de muita confusão mental e sentimento de culpa.

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O problema de saúde que me impossibilitou de tomar a Ayahuasca serviu como um divisor de águas, pois ali despertei do sono profundo e aos poucos fui rompendo as amarras e laços firmados pelo Gê Marques na farsa que ele criou e na qual me envolveu.

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Desejo que essa experiência de alguma forma sirva de alerta às famílias, aos homens, mas principalmente às mulheres. Que essa reflexão sobre o que significa o consentimento do ato sexual seja feita em escalas maiores e jamais de forma rasa, pois não existe consentimento quando um homem utiliza a posição de poder que ocupa, o momento de fragilidade da mulher à procura de apoio espiritual e o uso de drogas para cometer abusos sexuaisOs abusos e violências contra a mulher calam e castram a liberdade, levando as vítimas a carregarem sentimentos extremamente tóxicos e nocivos de forma profunda e inconsciente.

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Muitas mulheres que sofrem abuso sexual, podem desenvolver algum transtorno como depressão, ansiedade, pânico e ideias suicidas em algum momento da vida. Desejo que saiam do silêncio, que encontrem apoio e acolhimento nos grupos organizados de proteção às vítimas de violência contra a mulher e principalmente que procurem a Justiça, para que ela prevaleça, sempre.”

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Outras mulheres que queiram denunciar algum caso relacionado a Gê Marques podem procurar a promotora de Justiça Gabriela Manssur, do Ministério Público do Estado de São Paulo, pelo email somosmuitas@mpsp.mp.br.

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Igreja de cima, no Reino do Sol, onde mulheres relatam ter sido abusadas (Foto: Reprodução)
Igreja de cima, no Reino do Sol, onde mulheres relatam ter sido abusadas (Foto: Reprodução)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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