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Eu, leitora: “Fugi da escravidão sexual e me tornei uma empresária de sucesso”

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:

 

Veja publicação original:   Eu, leitora: “Fugi da escravidão sexual e me tornei uma empresária de sucesso”

 

Depois ter sido abusada por um tio, a pernambucana Liliam Altuntas, hoje com 37 anos, foi viver na marginalidade. Na adolescência, foi traficada para a Alemanha, onde foi novamente vítima de estupros. Fugiu para a Itália e lá montou um bufê de comida brasileira que conquistou uma clientela famosa

 

 

Nasci em Cabanga, bairro humilde do Recife. Sem recursos, minha mãe me deixou na casa dos meus avós paternos e eu a via raramente. Meu pai aparecia um pouco mais, nas festas de fim de ano e aniversários. Não recebia muito carinho, mas tinha roupa e comida. Quem eu mais via era meu tio, que aparecia por lá toda semana com o bolso cheio de balas e um dinheirinho para o refrigerante. Até que, quando eu tinha 5 anos, estava no banheiro e ele entrou. Disse que ia me ensinar uma brincadeira, mas falei que antes ia tomar banho. ‘Ótimo! Vou te deixar bem limpinha’, disse. Com um sorriso, tirou a roupa e entrou comigo no chuveiro. Pediu que eu lavasse o pênis dele, e abriu minha vagina para ‘tirar todas as sujeirinhas’. Achei estranho, mas ele disse que aquilo era normal. Mal sabia que estava vivendo o início de um pesadelo.

A cena se repetiu inúmeras vezes. Até que ele disse que precisava me examinar. Avisou que podia doer, mas era necessário. E me penetrou. Eu tinha 6 anos e já sabia que aquilo não era normal. A única vez em que tentei contar para meus avós, eles me bateram entre gritos de ‘mentirosa’. E me calaram.

Fazia sol e eu estava na rua, já com quase 10 anos, quando uma moça bem-vestida me abordou. ‘O que faz uma menina tão bonita sozinha?’ Inventei que tinha perdido meus parentes num acidente de ônibus e não tinha para onde ir. Aparentemente penalizada, me perguntou se eu gostaria de ter uma família, e eu, claro, disse que sim. Ela me levou para a casa onde vivia com dois filhos maiores do que eu, um menino e uma menina. Me deu banho, roupas novas e cortou meu cabelo. Finalmente eu teria uma vida normal. Carinho, cuidado e até irmãos.

Alguns dias depois, disse que ia me levar para visitar uma amiga que morava longe. Embarcamos numa Kombi que nos deixou em um restaurante de estrada. Depois de almoçar, pegamos um ônibus e descemos no ponto final. Aí andamos um bocado até chegar a um sítio com uma casa na frente e outra no fundo. Lembro de tomar um copo com água na chegada e, quando acordei, já estava no imóvel de trás com cerca de 20 crianças, entre elas dois meninos, um de 12 e outro de 7 anos.

Todos os dias, recebíamos um comprimido que éramos obrigados a engolir. Quem não aceitasse por bem era segurado pelos capangas que circulavam pelo sítio e recebia o medicamento na veia. Em pouco tempo, eu ficava grogue e me deitava em um quarto com uma cama, um banco com uma garrafa de água e um fio com lâmpada pendurado no teto. Era ali que éramos estuprados.

Nas horas vagas, a casa parecia normal. Quando não estávamos fazendo faxina ou lavando roupa, assistíamos a desenhos na televisão e conversámos sobre nossos sonhos. Havia quem quisesse ser modelo, juíza, policial, paquita. Eu sonhava em me casar com um homem bom e ter filhos. Mais nada.

Aos poucos, comecei a notar que quem obedecia tinha autorização para sair e levar o dinheiro ao homem que fazia compras para a casa. Comecei, então, a obedecer a tudo. Até que, uma manhã, Madame, a dona da casa, me chamou e me entregou um bolo de dinheiro para as compras. Era a minha chance de escapar.

Para o tal homem não notar, peguei as notas menores de dentro do montante e tomei o primeiro ônibus que passou. Desci na rodoviária de Fortaleza e de lá entrei em outra condução que me levaria ao Recife.

Quando cheguei à casa dos meus avós, fui recebida com desdém. ‘Peste ruim não morre nunca’, disse minha avó. Encontrei meu abusador alguns dias depois. Lembro de ele me olhar e abrir um sorriso malicioso: ‘Minha preferida voltou’.

Assim foi até os 14 anos, quando comecei a sentir dores na barriga. Minha avó me levou ao médico e ele nos informou que eu estava grávida. Sabia bem de quem era aquele filho. E, sob acusações de puta, safada, me mandaram para a casa de uma tia em Mustardinha, bairro periférico do Recife.

Pouco antes de Thomas nascer, 23 anos atrás, pedi para voltar a morar com meus avós. Parece estranho, mas me sentia mais segura em ter meu filho lá. Estava viciada em cocaína e vivia num cotidiano de marginalidade. Mas não durou muito. Dias antes de fazer 15 anos, discuti com uma tia e fui despejada. Me mandaram para um barraco que meu avô tinha em Mustardinha.

Thomas tinha uns 6 meses, mas eu não me importava em deixar meu filho sozinho e ir para a rua atrás de drogas. Numa dessas saídas, esbarrei com dois dos capangas de Madame, que me enfiaram num carro. Quando ela me viu, disse: ‘Poderia dar seus miolos aos porcos. Mas os gringos vão gostar de você’.

Em pouco tempo, estava embarcando com um de seus capangas. Só percebi que havia mais meninas no mesmo voo quando cheguei a Dortmund, na Alemanha. Meu maior desespero nem era estar ali, mas pensar no que seria feito de Thomas. Depois fiquei sabendo que uma vizinha ouviu que ele chorava muito e avisou minha avó, que o levou para casa.

Assim que saímos do aeroporto, fomos para uma boate. Éramos cerca de 20 meninas, com idades entre 13 e 17 anos. Ao lado de outras imigrantes ilegais, recebia homens para fazê-los gastar dinheiro com bebida. Naquele lugar clandestino, sofri todo tipo de violência: estupros, humilhações, surras.

Até que me apaixonei por um cliente, que nunca me deu bola. Em uma dessas noites em que ele me rejeitou, estiquei a madrugada na casa de uns amigos que havia feito na cidade. Cheiramos cocaína, tomamos uísque e, num impulso, me atirei pela janela. Do sétimo andar. Pouco antes de completar 18 anos.

Por sorte ou azar, caí em cima de um carro com teto solar e fui resgatada a tempo. Além dos arranhões, a única coisa que me aconteceu foi uma fratura leve na bacia. Do hospital, me levaram para um abrigo de menores. Não podia dormir fora, mas, durante o dia, as saídas eram liberadas.

Uma noite, num restaurante, conheci Renata. Conversamos bastante e ela me convidou para ir à sua casa. Morava com a família, que meio que me adotou. Em pouco tempo, passei a almoçar lá todos os dias e mal me dei conta de quando comecei a ficar com seu irmão,
Christian, um drogado como eu, sustentado pelos pais.

Em dois meses, estava grávida de minha primeira filha, Janaina, que, por causa do meu vício, nasceu com epilepsia. Meu relacionamento com seu pai era tumultuado. Brigávamos feio e ele sempre me batia. Até que, uma noite, Janaina teve uma crise e eu a levei para o hospital. Na entrada, cruzei com um turco bonito, de olhos verdes, e trocamos telefone. Taner foi meu segundo marido e tive mais uma menina, Ailyn. Morávamos os quatro numa casa pequena, mas gostosa. Cuidava da limpeza, das crianças, e sempre esperava ele voltar do trabalho com um jantarzinho. Quando achei que nosso relacionamento já era sólido o bastante, contei minha história para ele. E as brigas começaram. Ele me espancava e me humilhava diariamente. Mas não por muito tempo.

Passei um mês fazendo saques diários no cartão dele, até juntar um dinheiro, e, numa tarde em que ele estava fora, pegar um trem com as meninas para Turim, na Itália. A ideia do destino foi de Melissa, uma amiga. A única coisa que levei, além de algumas roupas, foi o e-mail de Cláudio, seu conhecido que tinha um restaurante na cidade e, segundo ela, poderia me ajudar.

Assim que cheguei, escrevi me apresentando. Ele foi simpático, educado, e passou a conversar frequentemente comigo sem nunca, porém, tocar no assunto do emprego. Passados dois meses, com o dinheiro acabando, telefonei para Melissa avisando que voltaria à Alemanha. ‘Mas por que você não procurou o meu amigo?’ Só então descobri que o homem com quem estava me comunicando era outro Cláudio, um militar brasileiro em missão de paz no Afeganistão, não o do restaurante. Por coincidência, também morava em Turim.

Nunca sequer falei com o tal dono do restaurante. O meu Cláudio me mandou uma foto dele e eu, uma minha. No dia 2 de dezembro de 2005, nos conhecemos pessoalmente. Desde essa data, não nos separamos mais.

Mandei passagens para uma tia levar meu filho para a Europa, e tive com Cláudio mais duas meninas, Yildiz e Heinrich, hoje com 12 e 9 anos. Comecei a trabalhar num call center e, em uma tarde de 2007, no ponto de ônibus, escutei uma transexual falando ao celular: ‘Não aguento mais macarrão! Não é possível que não exista um lugar aqui onde se possa comer arroz com feijão’. Esperei ela desligar e disse: ‘Eu faço’. Meio desconfiada, ela me deu € 100 e anotou um endereço num papel. ‘Consegue me entregar ainda hoje?’

Corri para casa, entrei em um site de receitas e anotei tudo o que precisava. De lá, voei para o mercado e levei o que havia de mais parecido com a minha lista de ingredientes. Cheguei em sua casa com arroz, feijão, farofa e bife acebolado quentinhos. Cinco minutos depois, meu telefone tocou. Era ela, dobrando o pedido para o outro dia.

No mês seguinte, me chamou para cozinhar em uma festa cheia de brasileiros, a maioria jogadores de futebol famosos. Até que, numa dessas baladas, uma jornalista me conheceu e fez uma reportagem na qual me intitulava ‘a quituteira dos VIPs’ em um jornal local. A coisa cresceu tanto que, em cinco anos, abri o Liliam Bufê, ganhei uma medalha de reconhecimento do departamento de imigração italiano e um prêmio de melhor empresária estrangeira.

Hoje, 22 anos depois de ter sido traficada, me curei das drogas com terapia e já tenho dois netos, Gabriel e Rafael. Vendo cerca de mil cupcakes por dia, 6 mil pães de queijo e 100 bolos por mês. Mas meu sonho mesmo é ter uma casa para abrigar crianças que vivem na rua. O amor de Cláudio e o dos meus filhos me curou. Além da comida, que tanto me fez falta na infância e, depois, virou meu sustento e me trouxe de volta à vida.

 

 

 

 

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