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Este texto é sobre mulheres

 

Saiu no site INSTITUTO GELEDÉS

 

Veja a publicação original: Este texto é sobre mulheres

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Por Elaine Carneiro de Albuquerque

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Quando pensei em escrever sobre a experiência de relacionamento que tive nos últimos meses com um homem, meu primeiro impulso foi de expor, denunciar e apontar culpados/as pelo vivido e experimentado. Culpar e denunciar a pessoa que eu julgava ser o personagem principal dessa minha história, culpar os espaços que julgo acolhedores, mas que de certa forma, abrigam a existência desse tipo de “criatura”, e elas são muitas entre nós. Culpar as mulheres que “se permitem” viver essa situação, como se essa decisão fosse uma opção simples… Enfim, queria achar culpados/as pela minha experiência ruim, pelos meus enganos, pelas minhas arranhaduras ainda não saradas.

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Guardei esse impulso inicial e consegui, com esse tempo a mais, revisitar essa experiência e como sempre faço, compreende-la a partir da minha percepção de mulher negra e como consequência das migalhas que nos oferecem neste “mercado afetivo” e que muitas vezes a gente agarra e agradece. Por isso, esse texto agora emerge deste lugar do feminino e da identidade política, me colocando na centralidade desta história, como a personagem principal da minha vida, como tem que ser.

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Pouco depois que conheci esse outro personagem, que é “coadjuvante”, algumas mulheres, vejam bem, estou falando de e que mulheres me procuraram para contar suas experiências com esse personagem, que embora posso identificar como vilão, é e sempre será um personagem secundário para mim, porque minha narrativa tem a centralidade nas mulheres.

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Então, algumas dessas mulheres chegaram por meio de amigas mais próximas que foram suas interlocutoras. As vidas dessas mulheres foram profundamente marcadas por suas experiências com esse “coadjuvante”, resultando em situações extremas: Uma delas vendeu sua casa; outra temia se identificar para mim e ele saber… Era a presença do medo em todos os relatos que me chegaram. Hoje, com algumas poucas leituras de depoimentos de outras mulheres e estudos superficiais sobre Psicologia, penso que junto com estas mulheres, experimentei mais do que os já conhecidos “relacionamentos abusivos”, e mesmo correndo o risco de uma classificação errônea de uma leiga, identifico que conhecemos uma pessoa “Narcisista” ou “Perversa”, ou os dois. Antes disso, não imagina esse tipo de “gente”.

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Uma dessas mulheres me marcou mais intensamente. Não veio por intermédio de ninguém, mas através de uma solicitação de amizade em uma rede social. Aceitei essa “amizade” por ter encontrado em seu perfil, muita identificação comigo, arte, cultura, religiosidade… enfim, era uma mulher de largos sorrisos nas fotos. Poderia ser, sem dúvida, uma das minhas amigas, se a circunstância fosse outra. Essa mulher (vou sempre destacar essa identidade de gênero), quase que imediatamente a minha aceitação, entrou em contato comigo por “chat”, se identificando como esposa desse, diga-se, “perverso”. Ela me bombardeou com fatos e fotos que ilustravam seu dolorido e desesperado depoimento. Era uma mulher em estado de sofrimento fazendo o papel que qualquer outra mulher como ela (ou como eu) desempenharia. Ela me alertou, me implorou, se expos, colocou a nudez desse amor que lhe feria a alma e a dignidade.

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E o que eu fiz com isso? Minha escuta inicial foi de espanto, estava assustada e perplexa com tudo que me veio de uma vez só em uma única hora, pois minutos antes, uma amiga havia mandando mensagens com informações que obteve dele. Então, assustada com a mensagem anterior que ainda estava lendo, acreditei em tudo que esta outra moça me falava, mas no final fiz exatamente o que me implorou para não fazer, fui ao encontro dele, que nesta altura estava enlouquecido ligando para se explicar. Ouvi a versão dele pessoalmente, me confortei com esta versão que mexia com minha vaidade e autoestima e silenciei a fala dessa mulher, suas dores e desconsiderei seu alerta, como fiz com as outras e pior, silenciei meus instintos que gritavam.

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É “cancelamento” agora o nome que se dá para isso? Pois “cancelei” essa mulher e pior que isso, usei-a como justificativa de minha decisão para continuar nesta relação porque “era uma mulher em sofrimento somente por estar perdendo seu amor”. Ela realmente amava e acho que ainda ama essa criatura. Me compadeci dela somente neste sentido, de pena, e fiquei feliz e me senti superior por estar com pena dela, porque foi assim que minha vaidade e autoestima incentivaram-me e como a gente se apega a qualquer possibilidade de ser amada.

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Ela? Logicamente, me acusou de não ser quem eu parecia ser nas minhas redes sociais, ou seja, uma ativista negra feminista; me xingou, me odiou, me desejou sofrimento e finalmente me bloqueou. Ela, de fato, esperava sensatez ou pelo menos a “escuta sensível”, o apoio de uma mulher como eu e ela.

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Vivi os primeiros dias deste contato chorando copiosamente. Meu corpo respondeu a isso com febre e choro. Pensava nesta mulher e no que ela me falou, mas me consolava com os carinhos e com o possível amor que se apresentava para mim, que também me envaidecia e me acolhia. No final das contas, essa mulher foi sempre presente nesta história que eu pensava ser “a dois” (rindo…). E como ela mesmo falou que seria, foi pivô de muitas brigas e desconfianças, pois o contato nunca foi interrompido. Ele jurava que iria fazer esse rompimento em todas as vezes que eu descobria novos contatos entre eles. Com o tempo, deixei para lá, como deixei outras mulheres, afinal, ele estava comigo (ri agora internamente quando escrevi isso… juro que estou rindo porque precisa ser cômico para não ser mais trágico).

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Essa relação foi relativamente breve, durou pouco mais de 5 meses, mas tem sido profundamente marcante na minha experiência como mulher que se julgava madura, experiente, com conhecimento e autoestima suficiente para não viver mais certas relações (novamente estou me ironizando aqui…).

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Nestes 5 meses eu julgava ser a “namorada”. Frequentava a casa dele desde o primeiro encontro. Dormia dias seguidos na casa onde ele morava com a família. Participava das reuniões familiares e fui sempre muito bem recebida por todos/as, inclusive pela matriarca da família (outra mulher). Diga-se de passagem, que depois descobri que eu não era a única a frequentar e ser tratada desta forma. Os momentos bons eram breves e passageiros desde o início. Ele “surtava” com qualquer coisa e com todas as minhas outras relações além dele (amigas, família, amigos…); me acusa de ter relacionamentos sexuais com todas as minhas amigas (até com mulheres da minha família); mandava quase que diariamente áudios e mensagens me xingando e me ameaçando (eu apagava imediatamente com vergonha de mim mesma). Em público me envergonhava e me constrangia com as mesmas reações; tudo seguido de intermináveis desculpas chorosas de arrependimento, se vitimizando. E eu? Desculpava e minimizava a gravidade da violência verbal e psicológica e me aconchegava novamente nos carinhos, elogios, no sexo formidável, nas promessas com verbos no tempo futuro… Afinal, tinha tantas identidades…O cara era do candomblé como eu (ogã), capoeirista, percussionista e melhor, anti Bolsonaro e adorava cozinhar para mim! Perfeição demais… o resto se conserta.

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E as mulheres? Quando eu tinha novas informações sobre suas experiências anteriores carregadas de violências, inclusive e principalmente física, eu me convencia que foi em outro tempo. Quando me contavam que o tinham visto com outra pessoa em algum lugar, optava pela versão dele, não por acreditar nele, mas por ser mais confortante para mim. Ou seja, durante toda a relação eu minimizei, cancelei, invisibilizei as outras mulheres, personagens sempre importantes na minha vida e também nesta relação. Me anulei e anulei todas as outras mulheres e tentei cuidar dessa relação a partir do outro, como sempre fazemos e somos ensinadas.

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Entrei numa onda de querer entender como ele pensava, sentia e porque o uso dos dispositivos violentos como respostas a qualquer indício, mesmo pequeno, de contrariedade de suas vontades e expectativas. Li muito sobre o assunto e iniciei o diálogo com ele sobre o problema, ao mesmo tempo em que a relação para mim começou a ser sustentada mais pela relação sexual, porque, nestas alturas, eu já apresentava desencanto pelo homem que eu havia criado e com as expectativas não concretizadas. Ele era “tediante” para mim e mesmo assim, “fui que fui ficando”, como diz a letra da música. O homem perfeito do início passou a ser um menino mimado com necessidades e cuidados que eu, como mulher, precisava suprir. Meu empreendimento foi então na “cura” desta pessoa (novamente rindo sozinha aqui. Quem eu seria para curar alguém desse nível?).

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Apresentei artigos sobre relacionamentos abusivos para ele e falamos de terapia. Já percebendo meu desinteresse por ele, passou a usar como estratégia justamente os problemas psicológicos e traumas da infância, reivindicando meus cuidados e apoio para se tratar e ficar comigo. Neste momento, eu já não queria mais “namoro” ou compromisso como casal, já morria de vergonha dessa relação que ao mesmo tempo, não conseguia romper. Ele investia no meu sentimento de “salvadora”, “cuidadora”, “acolhedora”. Fazia exibição de suas “mudanças” nas redes sociais, postava fotos nossas, se matriculou para voltar aos estudos, se posicionava politicamente nas conversas ou me apoiava em debates do tipo, mas em troca queria e exigia sempre meu reconhecimento.

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Então veio a quarentena do covid-19. A pandemia me salvou, pois acabei me colocando em uma situação que me tornei suspeita e não pode mais encontrá-lo. Ele insistia em vir cuidar de mim e eu não aceitei. Nossos contatos foram se resumindo as redes sociais e telefonemas e mesmo dessa forma, as violências continuaram. Mas um dia, não sei porque, acabei reconhecendo que esse ciclo não se romperia sem a minha decisão.

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Incentivada pelas mulheres da minha vida, minhas amigas, filhas (que não sabem muito dessa história), pelas leituras sobre a temática e distante fisicamente, pela fé e força na ancestralidade, minha referência nas Yabás, resolvi fazer um Boletim de Ocorrência, depois de uma madrugada inteira de mensagens me xingando e ameaçando por eu não ter atendido seu telefonema me cobrando atenção e fidelidade. Decidi ainda por “contato zero”, conforme orientava minhas leituras sobre o assunto (o que já quebrei por algumas vezes).

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Uns 3 ou 4 dias se passaram e nestes, com várias tentativas de contatos, ele acabou por me mandar uma foto dele com uma pessoa muito próxima de mim e com quem já vinha se relacionando há algum tempo, mesmo não me deixando um dia que fosse. O susto foi grande. Como assim?!!! O cara estava chorando e fazendo declarações de amor, músicas, etc, etc, etc… Meu impulso foi exatamente o mesmo que a personagem que apresentei no início deste texto. Entrei em contato com ela, a mulher próxima e também a bombardeei com minhas informações e experiências.

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Agora, finalmente, percebo que mais que a minha história, essa é a história de mulheres, não a história dele, mas a minha história que se entrelaça com todas as outras mulheres que passaram e que, infelizmente, passarão. Não sei qual será a decisão dessa minha amiga, mas agora compreendi que me envolver nesta trama nefasta de agressões e violências psicológicas foi por minha posição contraditória de anular as histórias de outras mulheres, para vivenciar minha vaidade, meu desejo e minha expectativa criada, minha verdade. Mas também pelo desespero por amor, por cuidado, pelo desejo de ser o amor de alguém e todas essas nossas faltas como mulheres negras, independente da nossa situação social e cultural.

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Mas foram outras mulheres, foram as minhas mulheres negras, suas escutas, seus colos, apoios, suas avaliações e quando necessário, seus silêncios, que me ajudaram a encurtar essa história, a não adoecer totalmente, a não me perder de uma vez e a fazer o caminho de volta para esse reencontro comigo. Alguns cuidados vieram de homens, amigos/irmãos. Na verdade, nunca, em nenhum momento eu estive só, sem essa força do feminino que vem das outras, dos outros e delas, minhas ancestrais, minhas yabás.

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Então esse texto, essa narrativa, esse depoimento, essa carta aberta para outras mulheres, não se trata de denunciar, de culpar e de me vitimizar, mas de destacar a minha mulher e as outras mulheres que fizeram e farão sempre parte desta história e de todas as histórias de minha vida. É a narrativa de uma mulher para outras mulheres, em agradecimento por elas existirem em mim e para mim. Também é um texto para pedir desculpas e me desculpar, me perdoar por ter me escondido de mim, por ter silenciado minha essência e por isso ter respondido da mesma forma com outras mulheres, mesmo as que estavam próximas de mim. Estou me perdoando. Estou perdoada.

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