Crianças têm o conceito de imagem corporal formado por volta dos 3 anos. “Entre 4 e 5, elas desenvolvem níveis mais elevados de autoconsciência e compreendem que os outros podem percebê-las ou julgá-las. Portanto, é importante evitar críticas e observações muito duras”, recomenda a psiquiatra Graccielle Rodrigues da Cunha, especialista em infância e adolescência . “Entre 6 e 7 anos, estão mais conscientes da perspectiva do outro e começam a internalizar avaliações externas para formar sua autoestima e identidade”, explica.

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Como elas têm mais consciência do corpo e das habilidades físicas antes de desenvolver as habilidades cognitivas, é natural que se preocupem, primeiro, com as características físicas. “No início, as comparações são mais concretas e se relacionam com tamanho (‘sou maior que meus colegas’) ou habilidades (‘sou mais rápida que eles’). O conceito de beleza vem do mundo externo, por meio de experiências sociais e culturais”, contextualiza Graccielle.

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É o que percebe a permacultora Júlia Taragano, de Florianópolis, mãe de gêmeas de 5 anos de idade. “Desde que nasceram, todo mundo fala da beleza delas. Elas chamam a atenção, porque são diferentes do padrão brasileiro, loiras e de olhos azuis”, conta. “Procuro falar, também, de outras qualidades. Digo que são corajosas, espertas, criativas.”

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Segundo a psiquiatra, a autoestima é construída a partir de uma avaliação de si mesmo em diferentes domínios, como aparência, capacidade atlética e inteligência. A criança forma a sua através do desenvolvimento de confiança, independência e iniciativa, muito mais do que por ser ou não bonita. “Ao estimular desafios e conquistas na infância, elas aprendem que a realização e o sucesso dependem não apenas de qualidades inatas, mas também de seus esforços e de outros fatores ambientais, como o apoio de amigos ou família”, diz.

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Menina bonita, menino inteligente

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Em uma sociedade que enfatiza muito mais a beleza das mulheres do que a dos homens, não é de se admirar que as meninas comecem a se preocupar com sua aparência muito mais cedo e intensamente que os meninos. “No geral, as mulheres passam mais tempo e gastam mais dinheiro cuidando de sua aparência do que os homens. As crianças veem isso dentro de casa, na mídia, na vida social”, comenta Graccielle.

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“Um estudo dos Estados Unidos analisou 11.927 personagens de filmes e programas de TV veiculados entre 2006 e 2011 e descobriu que as mulheres eram muito mais retratadas usando roupas sexy (28%, em relação a 8% dos homens), magras (34% vs. 11%), e descritas por outros personagens como fisicamente atraentes (15% vs. 4%). Outro estudo analisou os diálogos de diversos filmes e concluiu que, na maioria deles, personagens masculinos falam muito mais do que os femininos, mesmo nos filmes de princesas, em que as mulheres são o centro da história”, diz.

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Essa preocupação com a aparência é a todo momento intensificada pela comparação do próprio corpo com ideais estéticos completamente diferentes dos corpos que encontramos na realidade. “A maioria das mulheres brasileiras não são altas, magras e loiras. O que se percebe é a construção de uma imagem irreal pela mídia e pela sociedade, a partir de demandas externas. Isso impacta diretamente a formação da subjetividade da criança”, comenta a psiquiatra Ana Olmos, consultora do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana.

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A advogada Mayara Silva Souza sente isso na pele desde a infância. Como mulher negra nascida na periferia, ela não via sua beleza valorizada. “As meninas brancas dificilmente terão dificuldade de ouvir o quanto são lindas e parecem bonecas ou princesas. Já para as negras, esses elogios dificilmente chegam de forma espontânea. Por isso, é ainda mais importante para nós estar bem com a aparência”, diz. Para ajudar meninas com uma história parecida com a sua a desenvolverem sua autoconfiança desde cedo, Mayara decidiu oferecer oficinas de maquiagem tribal africana para crianças e jovens de 9 a 18 anos em uma favela na Zona Leste da capital paulistana, no projeto Adote uma rainha.

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“Pensei na maquiagem, porque é uma ferramenta usada para elevar a autoestima, mas também pode ser vista como instrumento de sedução e até de competição entre as mulheres. Por isso, criei uma oficina de maquiagem tribal africana, que tem outra conotação. Expliquei para as meninas o significado e a cultura por trás desse estilo de maquiar tão lindo e pouco conhecido. Deu super certo!”, conta Mayara.

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“Além de lindas, elas se viram como guerreiras, fortes e empoderadas, muito além de uma estética artificial”.

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Uma questão de mercado

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O exemplo de Mayara mostra como produtos de beleza podem ser usados a favor do empoderamento feminino. No entanto, esse tipo de abordagem é um contraponto ao que a indústria da beleza propõe massivamente para as mulheres. “Estamos numa sociedade capitalista, num contexto social e econômico que cria necessidades de consumo artificiais atendendo a padrões de beleza instituídos de fora pra dentro. Nesta sociedade de consumo, a beleza é produzida e, quem tem dinheiro, consegue construí-la desde a infância, seja indo ao dentista, corrigindo pés tortos, fazendo cirurgias plásticas, cortes de cabelo ou comprando roupas, calçados ou cosméticos”, analisa Ana, do Alana.

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A marca de brinquedos Estrela decidiu investir em um nicho de mercado ainda pouco explorado no Brasil: cosméticos e maquiagens para crianças de 5 a 12 anos. A nova linha de produtos deve incluir batons, esmaltes, sombras para os olhos e gloss, e será vendida em lojas próprias da Estrela Beauty. A primeira unidade está sendo montada no Shopping Morumbi, em São Paulo, com inauguração prevista para abril. Procurada pela reportagem, a empresa não se manifestou.

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Depois de mais de um ano de pedidos insistentes das duas filhas, Gabriela finalmente cedeu e comprou um estojo de maquiagem para elas, mas controla o uso, enfatizando sempre que se trata de uma brincadeira, não de uma atividade cotidiana. “Foi bem difícil encontrar o estojo de maquiagem pra criança, precisei comprar pela internet. Realmente, existe a demanda e não tem a oferta adequada do ponto de vista da composição. Mas uma loja de cosméticos infantis me preocupa, porque não vai entrar na categoria de brinquedo. Pra mim, cada coisa tem seu lugar. Se elas querem uma bolsa, por exemplo, eu compro em loja de brinquedo e direciono o uso como uma brincadeira”, comenta.

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A composição de cosméticos infantis deve atender a definições específicas para não agredir a saúde das crianças. De acordo com a cartilha da Anvisa, esse tipo de maquiagem deve ter baixo poder de fixação e ser facilmente removida com água, incluindo os esmaltes. Esses produtos podem ter gosto ruim para evitar que as crianças os levem à boca. Além disso, é importante não utilizar maquiagens para bonecas, já que não são seguras para a pele infantil.

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“A vontade de usar maquiagem aparece normalmente porque a criança se espelha no comportamento das pessoas da família e pode surgir tanto em meninos quanto em meninas muito pequenas. Também é comum que as crianças queiram vestir as roupas ou calçar os sapatos dos pais. Brincadeiras de faz de conta, como se fantasiar, estimulam a criatividade e ajudam a construir a identidade”, diz Graccielle.

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No entanto, “é o contexto em que isso está inserido que pode ser prejudicial. Aprender a se maquiar com o intuito de ficar mais bonita e usar essa beleza como forma de sedução é o que é inadequado para a idade. O maior problema nem é a maquiagem, mas a posição em que a mulher é vista na sociedade. Grande parte das propagandas e dos programas voltados para adultos incluem mulheres em atitudes sensuais e reforçam a ideia de que a beleza é um atributo essencial. E, cada vez mais, estamos expondo as crianças a esses conteúdos sem supervisão”, continua.

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“A infância tem que ser vivida em toda sua plenitude, não com um pé no mundo adulto. Reproduzir no critério de beleza para as crianças o padrão dos adultos é absurdo. Brincar de se maquiar é uma coisa; precisar ter seus próprios produtos e usar para sair não é brincar, é se adaptar a um modelo. No desenvolvimento da subjetividade, todo estímulo do mundo externo é pedagógico, afirma Ana.

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“Não podemos passar a mensagem de que ‘pra você ser amada, desejada – aí entramos na erotização precoce – você precisa de maquiagem’. Criança não é adulto em miniatura”.

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Júlia não pensa em permitir que as gêmeas usem esse tipo de brinquedo. “Vai incentivar desde o começo da infância a mulher a não se valorizar ao natural”, acredita ela, que também prefere não usar maquiagem, dando o exemplo.

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A hora certa de deixar os filhos usarem maquiagem deve ser determinada por cada família. Para Ana, se mães e pais não acham adequado que os filhos usem maquiagem, não é preciso ter medo de proibi-lo. “Eles devem dizer que não importa se os outros têm, ‘aqui em casa não tem’. Os pais não podem ter medo de apresentar a realidade que querem para os filhos. Diga ‘aqui não. Nós não achamos adequado’. Não tenha dúvida, diga o não pertinente à sua casa”, recomenda.

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Já Graccielle aponta para a necessidade de atentar ao meio social das crianças: “o que deve prevalecer é a regra da família, mas precisamos lembrar que, a partir dos 10 anos, pertencer a um grupo passa a ser muito importante para definir a autoidentidade. Então, se a criança apresenta uma necessidade saudável de compartilhar momentos com os amigos, vale flexibilizar um pouco, criando algumas regras como que tipo de maquiagem poderá usar (só brilho labial, por exemplo) ou em que momento. Não existe uma fórmula para lidar com isso, mas construir desde cedo uma relação de confiança, tentando equilibrar cobranças e elogios e estimular os filhos a buscar suas próprias soluções torna tudo mais fácil. Quando a criança tem um vínculo seguro com seus pais, ela tem uma melhor autoestima e está menos suscetível a vincular seu sucesso ao mundo externo”.

 

 

 

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