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A lei que obriga agressores de mulheres a ressarcir o SUS

Saiu no site NEXO

 

Veja publicação original: A lei que obriga agressores de mulheres a ressarcir o SUS

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Vítimas de violência também poderão receber pelos danos sofridos. Ao ‘Nexo’, duas especialistas falam sobre os impactos das medidas que serão incorporadas à Lei Maria da Penha

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Mulheres vítimas de violência física, sexual ou psicológica serão ressarcidas por seus agressores pelos danos sofridos. O Estado também poderá cobrar dos responsáveis os gastos com os tratamentos fornecidos às vítimas pelo SUS (Sistema Único de Saúde). As medidas estão previstas em lei aprovada pelo Congresso Nacional em agosto de 2019 e sancionada na terça-feira (17) pelo presidente Jair Bolsonaro.

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Com isso, três novos parágrafos foram acrescentados ao artigo 9º da Lei Maria da Penha, de 2006. Além do que trata do ressarcimento de custos de saúde à vítima e ao sistema público, os outros dois obrigam o agressor a arcar com os gastos de dispositivos de segurança disponibilizados para o monitoramento das vítimas, como o botão do pânico, que emite um alerta de socorro quando acionado. Também preserva a mulher e seus dependentes de qualquer ônus que possa decorrer do pagamento da dívida pelo agressor.

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O texto, porém, não define nenhuma punição a quem descumprir a nova determinação. Ele passa a valer em 45 dias após a data de sua publicação no Diário Oficial, na quarta-feira (18).

13 mulheres foram assassinadas por dia no Brasil em 2017, segundo o Atlas da Violência de 2019

4.936 mulheres foram mortas em 2017 no país, segundo o mesmo levantamento

30,7% foi o aumento no número de homicídios de mulheres no país entre 2007 e 2017

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A origem da lei

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A proposta teve origem num projeto apresentado pelos deputados Rafael Motta (PSB-RN) e Mariana Carvalho (PSDB-RO), em 2018. O senador Roberto Rocha (PSDB-MA), que foi o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, afirmou não ser “justo que a sociedade seja onerada, ainda que indiretamente, por causa de ilícitos cometidos pelos agressores da violência doméstica”.

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“Já era tempo de se estabelecer a responsabilidade do agressor em ressarcir essas despesas, que, cabe ressaltar, não existiriam se ele não tivesse praticado o delito”

Roberto Rocha (PSDB-MA)

Senador, em seu parecer sobre o projeto

O Senado havia definido que o ressarcimento só ocorreria em casos de condenação definitiva dos agressores pela Justiça, mas a Câmara decidiu modificar o texto, permitindo que as vítimas possam ser indenizadas ainda durante a tramitação do processo penal. A justificativa dada foi que, se dependesse da condenação, as chances de cobrança dos danos causados seriam menores.

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Os ressarcimentos ao INSS

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Ressarcir o Estado com base na Lei Maria da Penha já foi tentado em relação ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), autarquia responsável pelo pagamento das aposentadorias, salário-maternidade, pensão por morte, auxílio-doença, auxílio-acidente, auxílio-reclusão, entre outros benefícios.

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Em 2012, houve uma onda de ações que pediam que responsáveis por violência doméstica ressarcissem o INSS por causa dos benefícios pagos em decorrência dos crimes que haviam cometido. A Advocacia-Geral da União, que representou a autarquia do governo federal, ajuizou ações regressivas por causa de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e pensão por morte para os dependentes.

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Num dos casos, um homem havia matado a companheira, deixando um filho de três anos. No momento da ação, R$ 3.859 já haviam sido gastos com pensão por morte. O próprio assassino havia inicialmente recebido o benefício, cortado após o caso ter sido noticiado. Como a criança teria direito à pensão até completar 21 anos, o gasto da Previdência Social somaria R$ 156 mil. Em 2013, houve a primeira decisão da 3ª Vara da Justiça Federal em Brasília favorável ao INSS.

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“O INSS e a coletividade não podem arcar com o custo da pensão por morte. Isso porque se o réu não tivesse cometido ato ilícito, não haveria a necessidade de concessão do benefício”, escreveu o juiz, à época.

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Outra ação cobrava do agressor R$ 49.160 referentes ao auxílio-doença pagos à ex-mulher que fora, em 2009, vítima de tentativa de homicídio.

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Em 2016, a então senadora Marta Suplicy, na época filiada ao MDB, apresentou um projeto de lei que obriga o ressarcimento ao INSS. Ele foi aprovado pelo Senado em 12 de março de 2019, e seguiu para a Câmara dos Deputados, onde ainda será analisado.

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Até 2019, 14 processos tinham sido ajuizados contra agressores, com dez decisões favoráveis ao ressarcimento, mas apenas sete tinham sido concluídas. O restante dependia de julgamento de outras instâncias. Três das ações negaram o pedido e uma ainda não havia sido analisada.

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Na quarta-feira (18), a Sexta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu que o INSS deve pagar auxílio para a mulher que precisa se afastar do trabalho por ter sido vítima de violência doméstica, uma vez que a manutenção do vínculo trabalhista para mulheres alvo de alguma medida protetiva é prevista na Lei da Maria da Penha por até seis meses. Embora o tribunal tenha julgado um caso específico, a decisão vale para casos semelhantes. Cabe recurso.

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Duas visões sobre a lei

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Nexo ouviu duas especialistas na área de defesa dos direitos das mulheres sobre os efeitos das mudanças na Lei Maria da Penha.

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  • Leila Linhares, advogada, diretora da ONG Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) e uma das elaboradoras do texto da Lei Maria da Penha.
  • Aparecida Gonçalves, secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos entre 2006 e 2016.

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A lei tem potencial para inibir a agressão às mulheres?

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LEILA LINHARES Já estava se discutindo na Lei Maria da Penha o direito da mulher de receber uma espécie de apoio financeiro. Isso agora passa para o agressor, que muitas vezes não tem um tostão. Na realidade, não dá em nada em relação a inibir. É importante que a gente avance em leis, mas o que eu acho é que não tem que introduzir isso na Lei Maria da Penha. Tem que introduzir em lei autônoma. Porque senão fica se fazendo uma colcha de retalhos. Muitas vezes se faz isso para fins puramente eleitorais ou de marketing político. Isso vai abrindo brechas para que daqui a pouco coloquem coisas contrárias ao espírito da lei. No direito civil, a vítima tem o direito de receber, além da ação criminal, por danos morais e danos físicos. Qualquer vítima pode processar seu agressor por danos físicos ou por danos de outra natureza. No fundo, a indenização ao SUS vai depender de quanto a pessoa ganha. Isso não desestimula a violência. O agressor vai pagar uma ninharia se for o caso mas não é por causa disso que ele vai deixar de ser violento. Nossa legislação proíbe cadeia por dívida. A única punição criminal por dívidas é a dívida por pensão alimentícia. Se não pagar, pode ser preso, mas na lei brasileira não existe prisão por dívida. No fundo, não desestimula nada.

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APARECIDA GONÇALVES Não tenho segurança em dizer que vai inibir. Quando teve a questão do ressarcimento ao INSS, também não alterou muito o quadro. Efetivamente, não tenho elementos para dizer. O INSS fez uma investigação sobre quais eram as vítimas de violência contra as mulheres que estavam recebendo benefícios do Estado, que tiveram que se aposentar por problemas de saúde ou que tinham sido assassinadas e o próprio agressor continuou recebendo pensão. Tudo isso o INSS pediu o ressarcimento. Mas pode ser que não tenha tido o tamanho ou a repercussão que vai ter essa lei sancionada agora.

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A iniciativa pode influenciar a subnotificação de casos de agressão por causa do medo que as mulheres sentem em denunciar?

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LEILA LINHARES A subnotificação está ligada a vários motivos, entre eles o medo que a mulher sente em denunciar, a dependência econômica ou emocional desse agressor, ou então os familiares, o padre, o pastor, que dizem para ela que é assim mesmo, que ela tem que manter a família. Muitas vezes a mulher passa a se sentir culpada em denunciar. É como se ela fosse a causadora da desunião da família, não quem a agrediu. A vítima por “n” motivos muitas vezes não denuncia, ou quando denuncia não quer que ele seja preso. Porque muitas vezes é esse homem quem mantém a família. A violência familiar e doméstica é muito complicada por conta dessa relação vítima-agressor. E claro que as mulheres têm medo de serem mais agredidas ainda quando tomam determinadas medidas. O que significaria a necessidade de que essas mulheres pudessem ter um acolhimento maior no serviço público de saúde, de assistência social, acesso à formação para a capacitação para o trabalho, ou seja, uma série de questões previstas na Lei Maria da Penha, mas que não são aplicadas. Quem são as mulheres agredidas que conseguiram entrar em programas públicos de acesso à capacitação, à renda, ou à escolarização? Esses serviços estão sendo cada vez mais desmanchados, têm sido esvaziados. Muitas vezes essas mulheres não têm para onde recorrer mesmo quando não querem dar queixa na polícia. Se elas tivessem onde recorrer, muitas vezes, prefeririam esse caminho. Elas têm medo de denunciar e não ter uma garantia de proteção. Vou denunciar e quem me protege?  O centro de referência está fechado, o abrigo está fechado, o agressor continua solto porque é primário, tem bons antecedentes. Essa mulher avalia o risco-benefício em denunciar, como qualquer um de nós faria.

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APARECIDA GONÇALVES Eu acho que pode agravar o problema de subnotificação. Vamos pegar o número de estupros que é o mais visível. Se pegarmos os dados do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], com base em dados do DataSUS, houve no Brasil quase 500 mil estupros em 2014. Por quê? A mulher estuprada recorre aos serviços de saúde para fazer a contracepção de emergência, a pílula do dia seguinte, vai fazer o tratamento para não engravidar, para não pegar DST/Aids, para se prevenir. Quando vemos os dados da segurança pública, isso se transforma em 50 mil boletins de ocorrência. Você vai ter um número que é 10% o número da saúde. É uma questão que temos que pensar. Hoje, a notificação na saúde é eficiente porque se notifica o quadro epidemiológico, não notifica para ir na delegacia e virar um boletim de ocorrência.

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A medida tem alguma relevância para os tratamentos oferecidos pelo SUS?

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LEILA LINHARES O que o SUS precisa é aumentar o orçamento do Estado, os recursos para a saúde que foram cortados durante 20 anos. Querer tentar fazer com que o agressor salve o SUS é piada. Não tem como. Vamos melhorar o SUS, colocar dinheiro para que as mulheres tenham centros de saúde para atendê-las, no sentido físico, emocional. O sistema de saúde tem dados estatísticos confiáveis. Em princípio deveriam cadastrar os casos de violência doméstica, mas é complicado, porque muitas vezes espera-se que o sistema de saúde acabe tendo um poder de polícia. Essa mulher que muitas vezes não vai à delegacia e vai ao sistema de saúde ter o nome dela publicizado para as autoridades é complicado. Muitas vezes ela chega lá e diz que caiu da escada. O que é importante, além dos dados que o sistema possa fornecer, e é possível sim que quando ela declare que houve violência, que o sistema de saúde tenha esses dados, é que o sistema tenha serviços especializados para atender essas mulheres.

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APARECIDA GONÇALVES Para mim, o governo não gasta quando salva a vida de uma mulher, ele investe. Quando investe para fazer uma cirurgia reparadora da pele de uma mulher, quando ela foi queimada, é um investimento. Não consigo pensar que vai devolver um problema. É um investimento do Estado brasileiro naquela cidadã, dizendo que ela não precisa viver daquele jeito. O que significa em termos de valores, não tenho ideia, mas com certeza não é pouco. O governo não vai conseguir os 100% de ressarcimento, a maioria das pessoas não vai ter esse recurso, vai recorrer na Justiça. Não acho a lei de todo ruim, mas a minha pergunta é: o custo-benefício vale a pena? Ter uma lei em que o agressor vá ressarcir o Estado pelos danos que ele causou, ele não vai ameaçar a mulher mais uma vez para ela não ir procurar ajuda, como ele faz com a questão da delegacia? A gente não está mais uma vez isolando as mulheres? Qual estratégia adotar para que isso de fato seja uma medida eficiente? Um dos últimos casos que tenho acompanhado é de agressor que incendiou a casa e a mulher, e não são poucos os casos do tipo. A mulher precisou ser internada, fazer de cinco a dez cirurgias para restabelecer a pele, fazer exames. Qual é o custo disso? O agressor é milionário para pagar isso? Se 85% da população é pobre, é disso que estamos falando. Não quer dizer que os pobres são agressores, mas são a maior parte da população.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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