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Sagrado Feminino e Feminismo: duas vias de empoderamento

Saiu no site METRÔ JORNAL

 

Veja publicação no site original:   Sagrado Feminino e Feminismo: duas vias de empoderamento

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Como conciliar as duas concepções e construir caminhos

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Por Clarissa De Franco

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Sagrado Feminino e Feminismo, Círculo de Mulheres, culto às Deusas, Wicca, neopaganismo… Tudo isso são formas de vivenciar a espiritualidade nas mais recentes décadas em que o trânsito religioso aumentou.

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A busca pela espiritualidade tornou-se mais diversificada e nem sempre ligada a uma instituição religiosa, gerando um movimento de resgate do papel e do lugar das mulheres na História.

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A estudiosa Daniela Cordovil sugere que nessa Nova Era a humanidade passa a identificar a supremacia do masculino e a mentalidade patriarcal como predadora do meio ambiente, propondo um “resgate do feminino como elemento primordial da conexão com o sagrado”.

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Nesse sentido, a sacralidade do feminino aponta para busca de empoderamento e conscientização das mulheres sobre si mesmas, seus ciclos corporais e menstruais, sua conexão com a natureza, seu papel na História com figuras femininas de referência, as características que lhes (nos) seriam comuns e partilhadas.

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Nesse contexto, representações de distintas tradições mitológicas, religiosas, filosóficas e culturais, além de figuras históricas, são resgatadas e colocadas lado a lado, como forma de gerar referências femininas atemporais.

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Diana, Afrodite, Atena, Iemanjá, Mãe Terra, Lua, Deusa Tríplice, Joana Darc… mulheres históricas ou míticas que oferecem uma possibilidade de representação arquetípica.

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AS TENSÕES ENTRE SAGRADO FEMININO E FEMINISMO

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Como um movimento de empoderamento feminino, tudo indicaria que o Sagrado Feminino ou o Círculo Sagrado de Mulheres fossem saudados pelos feminismos militantes.

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Isso porque entre Sagrado Feminino e Feminismo há grandes pautas maiores em comum, como busca por visibilidade das mulheres e ocupação de lugares de reconhecimento e poder, luta por igualdade de condições ou equidade no gênero, luta pelo fim da violência de gênero, entre outras.

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No entanto, há “torção de nariz” entre muitas feministas para as mulheres (chamadas de maneira positiva ou pejorativa de bruxas) dos Círculos Sagrados.

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Assim como muitas dessas bruxinhas não compartilham dos discursos feministas por considerá-los radicais.

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IMAGINÁRIO RELIGIOSO X IMAGINÁRIO DE LUTA POLÍTICA

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Para compreender essa tensão, recordamos que tal debate esbarra em uma origem mais ampla e anterior. Por causa das grandes narrativas religiosas tradicionais, a representação das mulheres passou a ser reforçada socialmente de modo a reproduzir estereótipos de gênero.

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A pesquisadora Carolina Teles Lemos aponta para as naturalizações de gênero que as religiões cristãs têm reforçado e produzido ao longo de sua história.

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Ela indica que o reforço à perspectiva de naturalização da maternidade, da virgindade e da figura da mulher relacionada a atributos como pureza, docilidade, cuidado e compaixão estariam relacionados com o mito à figura de Maria.

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Ela aponta que a construção do patriarcado e suas relações desiguais é apoiada na tradição judaico-cristã, na exaltação da imagem de um Deus-Pai e um filho homem salvador.

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Ao passo que às mulheres são reservados os lugares: pecadora, destruidora de moral e perigosa, como Eva, Maria Madalena, ou ainda o lugar da virgem, pura, bondosa e mãe.

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Esses lugares idealizados teriam reforçado ao longo da História o controle social da Igreja sobre a sexualidade feminina, por meio das narrativas e atributos dos personagens bíblicos.

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Além das narrativas cristãs, outras religiões tradicionais, como o islamismo, operam com práticas que tendem a reforçar um lugar de submissão à mulher, necessitando da tutela de um homem para realizar ações públicas.

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Nesse sentido, um ala mais ativista do feminismo no mundo, em especial grupos que ganham notoriedade internacional, como o Femen, compreendem as religiões como fontes de opressão e submissão das mulheres, sendo que qualquer prática religiosa ou espiritual imediatamente evoca um imaginário a ser combatido.

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Ao mesmo tempo, a ideologia das lutas feministas é rechaçada por algumas bruxinhas dos Círculos do Sagrado Feminino, que consideram os feminismos muito radicais, duros, base para uma guerra desnecessária entre homens e mulheres. Religião e política seguem em arenas ideológicas tensas, embora a História tratou por vezes de aproximá-las.

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Claro que ao conversarmos sobre imaginário, narrativas e estereótipos, deixamos de fora nuances importantes do debate. Nem todas as religiões e as formas de religiosidade operam em uma lógica machista e mesmo as que operam agregam espaços de reflexão e adeptos com outras práticas e linhas de pensamento. Mas o mal-estar conceitual e histórico está vivo.

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O DEBATE ENTRE NATUREZA E CULTURA

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Outro tópico importante é a diferença estrutural nas perspectivas do Sagrado Feminino e do Feminismo. Enquanto adeptas do Sagrado Feminino retomam os ciclos naturais da mulher, valorizando seu corpo, a menstruação, a gestação, suas relações com os ciclos da natureza, exaltando características de um feminino arquetípico.

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Portanto, universal e atemporal, as feministas militantes, xs “queer”, LGBTs e grande parte da linha de Estudos de Gênero rejeitam tais categorias, por conta da produção de narrativas essencialistas sobre o que é ser mulher.

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Quem fortemente chamou atenção para estas produções discursivas foram Simone de BeauvoirMichel FoucaultJudith Butler e muitas outras/os.

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A partir desse chamado do gênero, o sujeito não pode ou não deve ser definido a partir de parâmetros pré-determinados.

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Pois o ser mulher, ser homem, ser trans, ser bi, ser hetero, ser travesti, não seriam realidades ou verdades internas, e sim, construções móveis inseridas na historicidade, na linguagem e nos processos culturais.

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Ao abordar um feminino universal ou uma força que uniria todas as mulheres a partir de algumas características como gerar, nutrir, entre outras, o Sagrado Feminino acaba por aderir a mentalidades que se contrapõem à luta feminista de desconstrução sobre as ideias de feminilidade que o patriarcado incutiu socialmente.

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O feminino trans, um feminino que transita, borra e desafia fronteiras do que é ser mulher, e fronteiras de gênero de modo mais amplo, coloca-se, diante da perspectiva de um feminino sacralizado dos Círculos Sagrados, como um desafio.

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Afinal, definir as mulheres a partir de características a elas historicamente atribuídas não seria justamente um reforço ao pensamento binário e dicotômico no qual se apoia o patriarcado e as invisibilidades e exclusões de gênero? A sacralidade do feminino estaria na vagina? Na menstruação? Na intuição?

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Na maternidade? E as mulheres que não menstruam, não têm filhos, não têm vagina? Como o feminino que se pretende sacralizado pode se encontrar com a perspectiva feminista de desconstrução dos estereótipos de gênero?

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A espiritualidade New Age não se propõe a manter os mesmos padrões rígidos da religiosidade tradicional. No entanto, quando mantém o discurso que essencializa uma natureza para a mulher, o Sagrado Feminino acaba por situar-se em um lugar desconfortável em relação às lutas de gênero.

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SAGRADO FEMININO E FEMINISMO: OS DEBATES DE GÊNERO

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O Sagrado Feminino, que enaltece deusas e figuras femininas mitológicas e históricas de referência, apoia-se epistemologicamente na perspectiva arquetípica, vinda da Psicologia Junguiana.

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Tal perspectiva considera que existem estruturas na psique humana que perpassam culturas e períodos históricos, que seriam como modelos que se configuram em imagens primordiais associadas a experiências da humanidade, presentes no inconsciente coletivo.

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Estamos nos referindo aos arquétipos, conceito desenvolvido em algumas obras de Jung, como O Homem e seus símbolos, Arquétipos do Inconsciente Coletivo, entre outras.

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Sempre que falamos de estruturas que perpassam os humanos de todas as épocas, as “antenas” de estudiosos e militantes de gênero se erguem, afinal, o acultural e o atemporal são caminhos que facilmente desembocam em naturalizar o que poderia ser localizado historica e socialmente. No entanto, Jung indica que o arquétipo não se refere a um conteúdo fixo.

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Nenhum arquétipo pode ser reduzido a uma simples fórmula. Trata-se de um recipiente que nunca podemos esvaziar, nem encher.

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Ele existe em si apenas potencialmente e quando toma forma em alguma matéria, já não é mais o que era antes.

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Persiste através dos milênios e sempre exige novas interpretações. Os arquétipos são os elementos inabaláveis do inconsciente, mas mudam constantemente de forma.

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Nesse sentido, os conceitos de Anima e Animus, comumente associados a determinadas características do “ser mulher” e do “ser homem” ou à feminilidade e masculinidade, estariam sendo usados de modo equivocado.

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O uso popular da teoria arquetípica de Jung transformou a perspectiva dos arquétipos em uma matéria de direção unicamente essencialista, quando sua teoria aponta para outros parâmetros.

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Embora não se possa negar o reforço a dicotomias de gênero naturalizados no uso da teoria de Jung, se seguirmos profundamente seus argumentos, reconheceremos que ele postula, antes, uma psique híbrida para todxs, em que Animus e Anima estariam presentes como energias e representações do masculino e do feminino sem um conteúdo definido em todos os seres humanos, atuando de forma complementar no dinamismo da psique.

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MASCULINO E FEMININO

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Masculino e feminino não seriam representações diretas e literais de como ser homem e como ser mulher ou ainda de como devem ser homens e mulheres, mas sim princípios energéticos com potencial de tornarem-se algo além de si, por meio do encontro com o outro pólo.

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A postulação junguiana acerca de gênero não é binária, conforme se reproduz popularmente. As concepções de Animus e Anima não deveriam ser traduzidas como o masculino é y e o feminino é x, pois não foi desse modo que Jung se pronunciou.

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A popularização da teoria junguiana e sua utilização no campo esotérico trouxe uma prática de simplificação de alguns de seus conceitos. E esta simplificação deu lugar ao reducionismo que atrela características específicas (conteúdo) ao arquétipo do masculino e do feminino (forma).

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É importante lembrar que Jung viveu em um tempo em que as reivindicações de direitos e políticas públicas de gênero ainda se debruçavam sobre direito à voto das mulheres em muitos países.

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Nesse período, a patologização das sexualidades não convencionais ainda era uma realidade forte, no qual ainda não se formulava entre muitas sociedades a possibilidade civil de casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a alteração oficial e pública da identidade de gênero. Teoria Queer, Judith Butler e toda essa corrente que nos tempos atuais é quente, nada disso ainda existia.

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De maneira pouco convencional e quebrando paradigmas da ciência da qual era herdeiro, Jung propôs que o funcionamento da psique ocorre em uma dinâmica que equilibra elementos complementares e que por vezes ocupam funções aparentemente opostas no funcionamento psíquico, sugerindo, desta forma, uma psique híbrida entre masculino e feminino.

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COMO APROXIMAR SAGRADO FEMININO E FEMINISMOS

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Em termos de prática, não se pode pensar a emancipação feminina hoje sem a formação de redes, que incluem as mais diferentes concepções da luta feminina e feminista.

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O papel da tecnologia nessa formação e manuntenção das redes é um chamado importante de algumas feministas como Donna Haraway e Judy Wajcman em uma busca de conexões na luta feminista, tão plural e por vezes conflitiva, como no caso aqui citado entre Sagrado Feminino e feminismos políticos.

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Nexos, conexões, redes, assim as mulheres nos unimos e nos conscientizamos umas às outras de aspectos da luta desconhecidos para as partes.

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Cada ponta da luta é apenas expressão da luta maior, que é a defesa da possibilidade de existir em uma vida plena, psicologica, social, profissional, amorosa, corporalmente.

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Uma vida sem violências, sem invisibilidades, sem opressões. Sendo bruxas, deusas, ciborgues, com ou sem pênis, trans, não-binárias, homossexuais, religiosas, ativistas, diretoras, donas de casa. Solidariedade, mulheres, é tudo que temos.

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