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Mães de guerra: mulheres que perderam os filhos em crimes violentos se unem

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE: 

 

Veja publicação original: Mães de guerra: mulheres que perderam os filhos em crimes violentos se unem

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Por Luiza Karam

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Sofrimento, revolta, sensação de impotência: para se reerguerem, mulheres que perderam os filhos em crimes violentos, na zona de combate que se tornou o Rio de Janeiro, apoiam-se umas nas outras. Unidas pela dor e pela cor, descem o morro onde moram e sobem a favela vizinha para tomar café da manhã juntas. A cada encontro, uma nova é acalentada – inclusive Marinete da Silva, a mãe de Marielle Franco, que falou com exclusividade à Marie Claire

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Já faz mais de um mês que Marinete recebe por WhatsApp mensagens difamando sua filha mais velha, Marielle, morta com quatro tiros na cabeça. “Mulher de traficante, drogada, aliada de bandido”, mentiras sobre uma das vereadoras mais votadas no Rio, defensora ferrenha dos direitos humanos. Toda noite antes de deitar, Marinete pede a Nossa Senhora que os responsáveis pelo assassinato que destruiu a família – e chocou o Brasil – sejam punidos. Marinete, no entanto (e infelizmente), é apenas mais uma mãe a perder seu filho na guerra civil que acontece no Rio.

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A costureira Flavia Concecio: com o apoio de mães de jovens assassinados, ela começa a reconstruir a vida (Foto: Reinaldo Canato /  Lucas Landau / Produção-executiva Vandeca Zimmermann )
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O filho de Janaina, 33, morreu comprando pipoca. A polícia confundiu o saco de papel com uma arma e mirou em sua testa. O tiro ultrapassou a aba do boné preto. O rapaz tinha 16 anos. Terezinha perdeu o caçula na porta de casa. Eduardo, 10, foi alvejado por um policial militar, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Ana Paula teve de provar que o filho morto não era bandido. Aos 19 anos, Johnatha foi vitimado por um PM da então recém-instalada Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela carioca de Manguinhos. Ele tinha ido à casa da avó deixar uma travessa de pavê.

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“Não é possível  que uma mulher sozinha dê conta de algo tão brutal. Saber  que há outras sentindo o mesmo que eu me dá  forças para levantar” – Marinete da Silva,  mãe de Marielle (Foto: Reinaldo Canato /  Lucas Landau / Produção-executiva Vandeca Zimmermann )
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Monica velou o filho em caixão fechado. Ele e mais um tinham ido comemorar o primeiro emprego de outro amigo. A bordo de um Palio branco, sem qualquer questionamento ou explicação, os três foram fuzilados pela polícia com 111 tiros. Foi Lucia quem deu à luz Rafael em 1992, quando nem podia imaginar que, dali 23 anos, ele seria baleado às 8h da noite, no Morro da Coroa (RJ), entregando pizza, um de seus dois empregos.
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O triste desfecho das histórias não é a única premissa a reunir essas mães. Seus predicados ressoam sem disfarce: mulheres negras (ou simplesmente “não brancas”, como se definem), pobres, moradoras da periferia em um dos estados mais violentos do país. Nas últimas semanas, o assassinato da vereadora Marielle Franco, 38, jogou luz sobre o extermínio de jovens, negros, moradores de comunidades – justamente os filhos de Janaina, Terezinha, Ana Paula e Lucia que a parlamentar defendia. Assim como as mães dos meninos assassinados na guerra carioca sempre ficaram silenciadas, com a mãe dela, Marinete, não foi diferente – Marie Claire foi a primeira a entrar na casa da família e passar três horas com ela.

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Marielle Franco, a vereadora assassinada com quatro tiros no mês passado, que virou emblema da guerra no Rio (Foto: Reinaldo Canato /  Lucas Landau / Produção-executiva Vandeca Zimmermann )
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Dor, substantivo feminino

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Para se fazerem ouvidas e juntarem forças, elas se reuniram em um grupo, o Café das Fortes. E, há dois anos, acolhem outras quando novos jovens são assassinados. “A mãe é a mais desamparada nessa hora. Ficamos destroçadas, sem aquilo que tínhamos de mais valioso”, afirma Mônica Cunha, assessora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e criadora do Café. Desde julho de 2016, sempre que podem, essas cerca de 20 mulheres que perderam seus filhos pelas mãos de policiais ou milicianos se reúnem nas primeiras horas da manhã, para se amparar, se conscientizar, se fortalecer. Em volta da mesa de uma delas, dividem um café da manhã caprichado, com frutas, sucos, pães e frios, enquanto debatem políticas públicas e se atualizam dos meandros de cada caso envolvendo seus filhos mortos. A anfitriã costuma ser quem perdeu o filho mais recentemente.

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“É muito difícil não cair na depressão e na inércia depois dessas tragédias. A ideia de se juntar vem da certeza de que uma mãe pode ajudar a levantar a outra”, conta Mônica, com conhecimento de causa, já que ela também assistiu à morte lenta do filho, desde muito antes da execução propriamente dita. “Tudo na conta do Estado brasileiro”, diz. Ao meio-dia de uma terça-feira de novembro de 2001, ela, então uma cozinheira de 35 anos, bateu
o telefone na cara da delegada que anunciava a detenção de seu filho do meio, Rafael, 15, por uma tentativa de roubo de carro. Pensou que fosse engano, afinal, o jovem não era de dar problema. Mas, enquadrado no artigo 157, de assalto à mão armada, ele foi encaminhado ao Degase, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Governo do Rio, naquela que seria a primeira de outras três passagens do garoto pelo sistema.

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“Fiquei desesperada quando ele foi para o Socioeducativo. Mas, principalmente, revoltada com a condição em que o via a cada visita: meu menino sofria violência lá dentro. Não comia, não estudava. Pelo contrário, tornava-se cada vez mais revoltado. Eu não sabia o que fazer. Mas precisava agir.” Adotou, então, o Estatuto da Criança e do Adolescente como livro de cabeceira, devorou as páginas e começou a reivindicar seus direitos – e os de outras mães. No dia de visita, combinava com as mulheres da fila, também à espera para encontrar seus filhos, que chegassem com uma hora de antecedência, para debaterem o Estatuto. Em cima de uma pedra grande, do lado de fora do Educandário Santo Expedito, em Bangu, Mônica se sentava para que todas as outras pudessem vê-la. E ia repassando adiante tudo que tinha aprendido sobre direitos humanos.

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Monica Brailko, participante do café. seu filho foi assassinado há seis meses, e o caso segue impune (Foto: Reinaldo Canato /  Lucas Landau / Produção-executiva Vandeca Zimmermann )
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Assim nasceu o Movimento Moleque, projeto estruturado por ela e outra mãe daquela fila, Ruth Sales, que preza pelo cumprimento dos direitos dos adolescentes infratores e seus familiares, em medidas socioeducativas de verdade. Paralelamente, começou a frequentar a Criola, ONG de mulheres negras do Rio, onde apurou a fala política que hoje é sua marca. Por fim, matriculou-se num curso técnico de educação social. Mas, no dia da formatura, não pôde ir à festa: chamada às pressas por um amigo do filho, recebeu a notícia de que um policial havia baleado Rafael. Numa via de mão dupla, na Zona Norte do Rio, ele morreu às 16h de uma terça-feira de 2006, de joelhos, implorando pela vida. “Meu filho cometeu atos infracionais, mas nada dava o direito de tirarem a vida dele”, emociona-se. “A força para não desistir veio das pessoas do Movimento Moleque. Foi isso que me levou a atender casos de violação de direitos humanos, na Comissão da Alerj, e perceber cada vez mais como essa corrente de pessoas é poderosa. O Café das Fortes foi se moldando com o tempo. Um momento e espaço reservado às mães, para que consigam seguir seu caminho conscientes da injustiça e fortalecidas para lutar.”

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O golpe é outro

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O que Mônica denuncia há 15 anos é, na verdade, um mal crônico: o assassinato de jovens pobres e negros. Pelo último levantamento do Ministério da Saúde, o Brasil é o país com maior número de mortes violentas no mundo: aqui, mata-se quase 60 mil pessoas todo ano. E o perfil das vítimas fatais permanece o mesmo há pelo menos uma década: homens, com menos de 30 anos, afrodescendentes – nesse período, enquanto houve um crescimento de 18% na taxa de homicídio de negros, a mortalidade de indivíduos não negros diminuiu 12%.

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De acordo com a Anistia Internacional, muito se explica pelas políticas de segurança pública no país, marcadas por operações policiais repressivas em áreas marginalizadas. A Polícia Militar do Rio de Janeiro é a que mais mata. Entre 2005 e 2014, foram registrados 8.466 casos no estado – 5.132 apenas na capital; mais de 90% negros. “O recorte racial é o motivo central de esses assassinatos não chegarem ao grande público”, acredita Mônica.

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“O recorte racial é o motivo central de esses crimes não chegarem ao grande público. A ideia de nos juntarmos vem da certeza de que uma  mãe pode ajudar a outra” – Mônica Cunha, criadora do Café das Fortes (Foto: Reinaldo Canato /  Lucas Landau / Produção-executiva Vandeca Zimmermann )
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O assunto, entre os focos de denúncia da trajetória de Marielle Franco, foi debatido durante o último Café das Fortes, no dia 19 de março – cinco dias depois da morte da vereadora. Entre um pedaço de melão e um sanduíche de presunto, as mães tomavam fôlego para rememorar as mortes dos filhos, debatendo a busca de reparações judiciais para cada caso. Entre as 15 presentes, estavam lá o braço direito de Mônica no Café, sua xará Monica Brailko, 42, cujo filho foi morto no ano passado, e a costureira Flavia Concecio, 43, que luta pela sobrevivência do primogênito, recém-saído do sistema socioeducativo. “Eu era microempresária, tinha uma confecção com nove funcionários. Há seis meses, meu filho foi detido e entrei numa depressão profunda. Perdi tudo”, conta. “Mas, desde que conheci o Café, as coisas têm mudado, consegui alguns bicos… Devo muito a essas mulheres.”

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É na casa da mãe de Marielle que Mônica quer fazer o próximo café. No dia da minha visita a Marinete (leia a íntegra em revistamarieclaire.globo.com), contei a ela sobre essa vontade. Com as mãos grandes que a filha havia herdado, segurou nas minhas e respondeu: “Não é possível que uma mãe sozinha dê conta de algo tão brutal. Saber que há outras sentindo o mesmo que eu me faz acreditar que terei forças para levantar daqui pra frente. Vou precisar delas”. E elas de você, Marinete.

 

 

 

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