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Violência psicológica contra a mulher: comentários à Lei n. 14.188/2021

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Veja a Publicação Original

No dia 28/07/2021 houve a sanção da Lei n. 14.188/21, que define o programa de cooperação “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica” como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher e altera o art. 12-C da Lei n. 11.340/2006 para prever a possibilidade de o risco atual ou iminente à integridade psicológica (não apenas à integridade física) justificar o deferimento de medida protetiva de urgência.

Na seara criminal, as alterações mais relevantes foram a criação de uma modalidade qualificada de lesão corporal em contexto de violência doméstica contra a mulher (Código Penal, art. 129, § 13) e o novo crime de violência psicológica (Código Penal, art. 147-B). O presente artigo tem por objetivo analisar as repercussões jurídicas da nova lei.

1 QUALIFICADORA DA LESÃO CORPORAL COMETIDA CONTRA A MULHER POR RAZÕES DA CONDIÇÃO DO SEXO FEMININO

A lesão corporal leve, até o advento da Lei n. 14.188/2021, tinha duas modalidades no art. 129 do Código Penal. A simples, do caput, punida com detenção de 3 meses a 1 ano, e a qualificada, do § 9º, quando cometida contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, esta punida com detenção de 3 meses a 3 anos. Esta última era qualificada pela relação com a vítima, não pelo resultado. Nestas duas figuras (caput e § 9º), o legislador objetiva a proteção de pessoas de ambos os sexos.

Com a novel lei, o art. 129 passa a contar com mais um parágrafo (§ 13), com a seguinte redação:

Art. 129. […]

§ 13. Se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos).

Como se nota, trata-se de nova qualificadora da lesão corporal de natureza leve, mirando como vítima somente a mulher ferida no ambiente doméstico e familiar, ou ainda por preconceito, menosprezo ou discriminação quanto ao sexo.

O conceito de violência doméstica ou familiar é obtido da leitura do art. 5º da Lei n. 11.340/2006, definida como qualquer ação ou omissão baseada no gênero contra a mulher, em três contextos relacionais: relações domésticas, familiares e íntimas de afeto:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

A agressão no âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. Inclui-se a agressão do patrão em face da empregada doméstica, contra colegas de república ou contra pessoa temporariamente agregada à unidade doméstica. A respeito, temos a lição de Damásio de Jesus e Hermelino de Oliveira (2007, online):

Não se pode afirmar que essas normas foram expressas visando à proteção da empregada doméstica. De ver-se, entretanto, que não se pode dizer que a excluíram de sua incidência, até porque o mandamento constitucional proíbe a violência no âmbito das relações familiares. (…) Para que se possa opinar sobre a questão proposta, é também necessário relembrar o conceito legal de empregado doméstico como sendo ‘aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas’ (art. 1.º da Lei 5.859, de 11 de dezembro de 1972). Essa prestação de serviços no seio das famílias e no ambiente residencial é que justifica o tratamento legal dado à relação de trabalho doméstico e sua forma de proteção (…). A propósito, os escritores nunca desprezaram os empregados domésticos. No passado, encontramos a figura do mordomo fiel, que muito se prestou a tantas peças literárias, sendo, amiúde, a chave do deslinde de histórias policiais misteriosas. Hoje, diante das transformações da família e da vida moderna, a figura da empregada da casa passou a ser objeto de peças teatrais, algumas de muito sucesso, aparecendo como protagonista principal do enredo, tal o seu envolvimento com a vida das pessoas da residência. De se concluir, pois, que ela merece a proteção da Lei 11.340/2006.

As empregadas domésticas estão sujeitas a uma dupla discriminação, de gênero e de classe social (esta última normalmente com um forte recorte de raça). Esta forma de trabalho doméstico é uma continuidade da colonialidade de gênero e raça sobre as mulheres negras (ANDRADE; TEODORO, 2020).

Nesses ambientes, são comuns as abordagens sexuais e o STJ já decidiu pela aplicação da Lei Maria da Penha em crime de assédio sexual contra empregada doméstica. Assim:

Assédio sexual. Lei Maria da Penha. Crime cometido contra empregada doméstica. Condição de vulnerabilidade comprovada. Coabitação entre agressor e vítima. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Requisitos atendidos. Competência do juízo especializado. Omissão. Inocorrência. Rediscussão do julgado. Impossibilidade. Aclaratórios rejeitados.

(STJ, EDcl no Habeas Corpus nº 500.314/PE, 5ª T., rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 15/08/2019)

A violência no âmbito da família engloba aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, em razão de parentesco (em linha reta e por afinidade), ou por vontade expressa (adoção). Nesse sentido, já decidiu o STJ:

A Lei Maria da Penha objetiva proteger a mulher da violência doméstica e familiar que, cometida no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, cause-lhe morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, e dano moral ou patrimonial. Estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica, podendo integrar o polo passivo da ação delituosa as esposas, as companheiras ou amantes, bem como a mãe, as filhas, as netas, a sogra, a avó, ou qualquer outra parente que mantenha vínculo familiar ou afetivo com o agressor.

(STJ, AgRg no AREsp 1.626.825/GO, rel. Min. Felix Fischer, j. 05/05/2020)

Ao incauto pode parecer que apenas nesta terceira situação fica dispensada a coabitação entre os envolvidos. Mas não. Na linha do entendimento sumulado pelo STJ na Súmula 600: “Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista no art. 5º da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima”.

Ainda de acordo com o parágrafo único do art. 5º da Lei n. 11.340/2006, as relações pessoais nele enunciadas independem de orientação sexual. Notável a inovação trazida pela lei nesse dispositivo legal, ao prever que também a mulher homossexual, quando vítima de ataque perpetrado pela parceira, no âmbito da família ou relação íntima de afeto encontra-se sob a proteção do diploma legal protetivo. Na hipótese de relação homoafetiva entre homens, não tem aplicação a Lei Maria da Penha, pois não se trata de violência de gênero.

A lei também se aplica às mulheres transexuais, ou seja, pessoas que têm identidade de gênero de mulher. Nesse sentido:

A Lei Maria da Penha pode ser aplicada a mulheres transexuais e/ou travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização, alteração do nome ou sexo no documento civil. (Enunciado n. 30 da COPEVID)

A Lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do art. 5º, da Lei n. 11.340/2006. (Enunciado n. 46 do FONAVID)

Note-se que, embora a norma explicativa (Código Penal, art. 121, § 2º-A, inc. I) contenha a expressão violência doméstica e familiar, deve ser lida como violência doméstica ou familiar, pois nada impede que o fato ocorra no âmbito doméstico sem que haja vínculo familiar (como a empregada doméstica), nem há óbice a que ocorra fora do âmbito doméstico entre familiares (como a irmã sem coabitação). Tal decorre da própria definição do art. 5º da Lei n. 11.340/2006, que se refere expressamente aos crimes cometidos no âmbito da unidade doméstica e no âmbito da família.

No caso do menosprezo e da discriminação à condição de mulher, o tipo se torna aberto, pois compete ao julgador estabelecer, diante do caso concreto, se o crime teve como móvel a discriminação derivada da condição feminina. Para a adequada compreensão e aplicação da norma, deve-se analisar as circunstâncias do fato, à luz dos estudos sobre as relações de gênero.

Nesse sentido, estabelece o Enunciado n. 25 da COPEVID: “Configura a qualificadora do feminicídio do art. 121, § 2º-A, inc. II, do Código Penal o contexto de: tráfico de mulheres, exploração sexual, violência sexual, mortes coletivas de mulheres, mutilação ou desfiguração do corpo, exercício de profissões do sexo, entre outras”. Outro exemplo de feminicídio não-íntimo presente na legislação de outros países (Colômbia, Nicarágua, Venezuela) é a situação de se ofender a mulher como forma de humilhar um adversário, como no conflito de grupos criminosos.

De uma forma geral, costuma-se indicar como ataque ou discriminação de gênero o ataque ao feminino ou ao fato de a mulher descumprir “papeis tradicionais”, ou mesmo ocupar espaços tradicionalmente reservados aos homens. Exemplos: a agressão a uma mulher porque está com roupas curtas, porque teve relacionamento com homem casado, porque se recusou a amamentar uma criança, a universitária porque “paquerou” dois homens, a uma mulher porque se recusou a sair com um desconhecido, além de outros exemplos.

Importante mencionar, outrossim, que o corte de cabelo forçado de mulher configura violência de gênero. Assim:

Caso dos autos em que o corte de cabelo, como realizado, sem autorização e de forma vexatória, com gravação de vídeo e exposição, constitui lesão corporal, tendo provocado clara alteração desfavorável no aspecto físico e exterior da vítima.

(TJ-RS, APR 70083288860 RS, rel. Des. Luiz Mello Guimarães, 2ª Câm. Crim., j. 17/12/2019)

É interessante notar que, incidentes as circunstâncias do § 9º bem como alguma das qualificadoras dos §§ 1º, 2º ou 3º do art. 129, o § 10 determina que se imponha a pena da respectiva qualificadora, aumentada em 1/3 (um terço) em razão da violência doméstica. A Lei n. 14.188/2021, no entanto, não inseriu disposição semelhante. A qualificadora do § 13, aplicável no caso de lesão corporal simples, cede, se for o caso, seu lugar aos §§ 1º, 2º ou 3º, e não há disposição que determine o aumento da pena porque a lesão, qualificada na forma daqueles dispositivos, foi praticada no âmbito doméstico ou familiar contra a mulher ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Nesse caso, a circunstância especial deve ser considerada na aplicação da pena-base, considerando-se que a violência doméstica contra a mulher possui uma reprovabilidade mais acentuada que a violência doméstica contra homem, exatamente por reforçar a discriminação de gênero, que fomenta uma violência mais incisiva sobre um grupo vulnerável.

Em nenhuma situação se admite o acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP), seja em razão da sua proibição para crimes cometidos com violência ou grave ameaça, seja em face da sua não aplicação para delitos contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (art. 28-A, §2º, IV, do CPP).

Em tese, pela pena mínima, seria admissível a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/1995). Todavia, para os crimes praticados em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, o art. 41 da Lei n. 11.340/2006 proíbe a suspensão condicional do processo (v. Súmula 536 do STJ). Para as situações de lesão corporal por menosprezo ou discriminação à mulher, fora do contexto da Lei n. 11.340/2006, em tese seria cabível o benefício, todavia deve-se atentar para a presença dos requisitos subjetivos, diante da motivação discriminatória. A interpretação sistemática com o art. 41 da Lei n. 11.340/2006 e com o art. 28-A, § 2º, inc. IV, do CPP, sinaliza que crimes com motivação discriminatória possuem uma gravidade mais acentuada, de forma que os motivos e as circunstâncias do crime não autorizam a concessão do benefício (Lei n. 9.099/1995, art. 89, caput, c/c Código Penal, art. 77, II). Por exemplo, há diretriz para a não utilização da suspensão condicional do processo para a resolução de casos de racismo, “pois desproporcional e incompatível com a infração penal dessa natureza, violadora de valores sociais” (MPSP, Aviso n. 206/2020 da PGJ).

Em relação à ação penal, vale relembrar que tanto a lesão corporal leve (caput), quanto a lesão corporal em contexto de violência doméstica (§ 9º) praticada contra vítima homem, são crimes sujeitos à ação pública condicionada à representação, por força do art. 88 da Lei n. 9.099/1995. Quando se tratar do crime do § 13 em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ação penal será pública incondicionada, diante do regramento do art. 41 da Lei n. 11.340/2006. Todavia, na hipótese de crime de lesão corporal do § 13 fora do contexto de violência doméstica, por menosprezo ou discriminação à condição da mulher, não será possível realizar-se analogia in malam partam; portanto, a ação penal será pública condicionada à representação.

Verifica-se que a nova legislação traz uma significativa exasperação da pena, que passa a ser de 1 a 4 anos. Aparentemente, a elevação é feita para se assegurar que a lesão corporal tenha pena mais elevada que a violência psicológica. Esta elevação de pena pode trazer alguns efeitos positivos na prática. Por exemplo, a antiga pena mínima de três meses do § 9º virtualmente inviabilizava a efetiva aplicação do art. 152, parágrafo único, da Lei de Execuções Penais, introduzido pela Lei Maria da Penha, que prevê que “Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação”. Isso porque o breve tempo de pena não permitia a inclusão do apenado em programa reflexivo, que usualmente exigem alguns meses para sua realização (além do eventual tempo em lista de espera). Agora, estas intervenções serão mais factíveis na execução penal.

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