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Treze anos após Lei Maria da Penha, só 2,4% das cidades têm casas-abrigo para mulheres

Saiu no site O GLOBO

 

Veja publicação original:   Treze anos após Lei Maria da Penha, só 2,4% das cidades têm casas-abrigo para mulheres

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Levantamento do IBGE mostra que não houve avanço nos últimos anos no acolhimento às vitimas de violência doméstica; ‘Se não fosse pelo abrigo, eu teria morrido’, diz uma delas

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Por Daiane Costa e Constança Tatsch

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RIO — Casada por sete anos, G. não podia sair de casa. Nem trabalhar, falar com vizinhos, usar o celular. Não tinha ninguém com quem dividir sua rotina de violência doméstica , que incluía chutes e agressões com corda. O marido às vezes sumia por duas semanas, deixando a mulher e as duas filhas sem dinheiro. Faltava comida, a água e a energia eram cortadas.

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Ela suportou até o dia em que ele ameaçou as meninas com uma faca. Foi até um orelhão e chamou a polícia. Não tinha ninguém no mundo, nem dinheiro. Elas foram acolhidas em uma casa-abrigo onde ficaram por seis meses.

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— Se eu ficasse em casa, ele ia acabar fazendo alguma coisa muito ruim. Dizia que ia me matar. No abrigo, a gente não podia sair, mas não era ruim. Fiquei por lá até que o juiz mandou ele sair de casa, aí eu pude voltar com as meninas. Eu nem tinha esperança de vida, achava que podia morrer a qualquer instante. Só cuidava das meninas. Dei graças a Deus pelo abrigo. Se não fosse por isso, eu teria morrido — afirma.

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As ameaças duraram mais um tempo até que G. arrumou um emprego. Hoje, ela vive em paz com as filhas, que estão na faculdade.

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Mesmo previsto na Lei Maria da Penha , criada há 13 anos, o acolhimento em casas-abrigo de mulheres ameaçadas de morte como G. só é realidade em 2,4% das cidades brasileiras. Ao todo, são 153. Nos últimos cinco anos, não houve avanço algum. Os dados são de 2018 e constam da mais recente pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE , divulgada nesta quarta-feira.

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A situação preocupa ainda se comparada à realidade apontada pelo levantamento anterior, realizado em 2013. À época, 2,5% dos municípios contavam com 155 desses equipamentos sob a gestão das prefeituras.

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— A Lei Maria da Penha é uma Ferrari, mas nossas instituições estão cheias de buracos e lombadas. Há uma cultura organizacional que não permite que ela avance. A casa-abrigo é uma política excelente, mas é um modelo emergencial, precisamos pensar em outros modelos. Não está certo a gente tirar a mulher de dentro de casa, quem tem que sair é o agressor — afirma a delegada Eugênia Villa, criadora da primeira delegacia de investigação de  feminicídios  do Brasil, em 2015, em Teresina.

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As casas-abrigo estão mais presentes em cidades maiores, que têm mais recursos para investimentos, do Sul e Sudeste. Entre os 3.808 municípios com até 20 mil habitantes, apenas nove possuem tais equipamentos. Já nas cidades com mais de 500 mil habitantes, 58,7% possuem essa estrutura.

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Em relação aos investimentos feitos pelos estados em casas-abrigo, houve melhora entre 2013 — quando 12 unidades da federação contavam com equipamento gerido pela administração estadual — e 2018, quando este número subiu para 20. Hoje, somente Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás e os três estados do Sul não investiram nesse equipamento de apoio à mulher vítima de violência doméstica e familiar.

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Ao todo, eram 43 casas em todo o Brasil sob gestão estadual. São Paulo é o estado que investiu mais: conta com 14. Assim como nas casas administradas pelos municípios, a atividade mais frequente oferecida é o atendimento psicológico.

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A vida na casa-abrigo

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Ana Cleide Nascimento é coordenadora de uma casa-abrigo em Teresina, a única no estado do Piauí. O local tem capacidade para 20 pessoas, que geralmente ficam três meses, mas o período pode se estender caso não tenham para onde ir, ainda estejam em risco ou em situação de alta vulnerabilidade.

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Ali, a vítima da violência doméstica é acolhida, assim como os filhos, e existe uma articulação com uma rede de serviços para manter sua integridade preservada e o agressor afastado. Ela recebe atendimento médico, jurídico (para tratar da separação e garantir o afastamento do agressor) e social, em que são abordadas questões relacionadas a emprego, habitação, renda e escola para as crianças.

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A casa, mantida pelo governo estadual, tem endereço sigiloso, e a mulher é encaminhada para lá a partir da delegacia. A vítima pode levar pertences como roupas e documentos. Só sai para atendimentos, como ir à delegacia, defensoria, médico, alguma situação de trabalho, e sempre acompanhada por uma técnica. O contato com a família é intermediado pela equipe. Embora ganhem segurança, perdem a possibilidade de uma vida normal.

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— Elas ficam muitas vezes revoltadas, não querem ficar muito tempo. Tentamos promover algum passeio com a segurança necessária, oferecemos oficinas. Elas cuidam da casa, da limpeza — afirma Ana Cleide. — Muitas já chegam em depressão ou com transtornos como ansiedade e pânico, porque a violência física sempre vem junto com a psicológica.

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De acordo com o levantamento do IBGE, a principal atividade ofertada pela casa-abrigo é o atendimento psicológico individual, presente em 74,5% das existentes. Já as creches são as atividades menos ofertadas por estas instituições, presente somente em 19% delas.

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Em 2018, 1.221 mulheres ou 3,3 por dia, e suas 1.103 crianças foram atendidas pelas casas-abrigo de gestão municipal.

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— Infelizmente, quando o agressor está solto, a vítima é que vai presa. Ela tem que ir para um abrigo, só pode levar filho pequeno, não pode trabalhar, ter contato com gente de fora. O agressor ameaça família, filhos, ninguém pode saber onde está essa mulher — afirma Solange Pires Revorêdo, ela mesma vítima de violência doméstica e fundadora do Grupo de Apoio à Mulher (GRAM).

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Depois da sua denúncia, Solange recebeu a sugestão de ir para um abrigo em outro estado e mudar de identidade, mas conseguiu ficar na sua cidade.

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— São poucas as que conseguem fugir por conta própria, 90% precisam do abrigo. Quando não têm essa assistência, morrem. É assim. Por isso é de extrema importância essa mulher ter para onde ir para se fortalecer. Para denunciar, ela tem que ter certeza de que vai estar em segurança.

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Delegacias  

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A pesquisa também mostrou que 9,7% dos municípios brasileiros oferecem serviços especializados de atendimento a violência sexual e somente 8,3% possuem delegacias especializadas de atendimento à mulher. Esses serviços também estão concentrados nos municípios mais populosos.

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Para a delegada Eugênia Villa, é preciso providenciar atendimento onde quer que a vítima esteja. Por isso, ela considera que, melhor do que ter uma delegacia especializada, é que haja equipes preparadas em todas as unidades da polícia.

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— Toda delegacia deveria ter uma equipe especializada, com uma delegada e assistente social ou psicóloga. A oitiva tem que ser qualificada, essa mulher tem que ser ouvida uma vez só, de preferência pela assistente social ou psicóloga, com quem tem mais abertura. Para essa mulher revelar fatos de violência psíquica, o atendimento tem que ser demorado. Rotina policial de registrar, a pressa de ouvir, isso não funciona — diz Eugênia.

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Mas o levantamento mostra que caiu o percentual de municípios com organismo executivo de políticas para mulheres, como uma secretaria ou departamento, de 27,5% para 19,9% entre 2013 e 2018.

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— Estamos caminhando a passos curtos em direção à melhoria de ações de proteção à mulher. Ainda falta muito para chegarmos a um patamar aceitável diante da quantidade crescente de mulheres que são vítimas de violência — explicou a gerente da pesquisa, Vania Maria Pacheco.

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Segundo os dados mais recentes do Atlas da Violência do Ipea e do Fórum de Segurança Pública, entre 2007 e 2017 aumentou em mais de 30,7% o número de homicídios de mulheres. De acordo com os pesquisadores, uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil.

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Um outro levantamento, do Fórum, feito com dados coletados pelo Instituto Datafolha, mostra que em 2017, mais de 4,7 milhões de mulheres foram vítimas de agressão física. São 536 agressões por hora.

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Para a delegada Eugênia Villa, é preciso melhorar as instituições e, acima de tudo, investir mais em educação.

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— A gente trabalha o feminicídio, mas essa é a reta final. Já passou pelo silêncio dos vizinhos, pela falta de apoio da família, pela inação dos serviços de saúde, os filhos já deram sinais na escola… Estamos apostando todas as fichas na polícia. Mas isso é um problema social, está além da polícia. É um campo de forças que tem como base o patriarcado, relações do machismo, que a gente tem que vencer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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