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#TBT “Quando as mulheres abrem portas, é para todas passarem”: Entrevista com a Promotora de Justiça Gabriela Manssur

Saiu no JUSTIÇA E CIDADANIA

Veja a Publicação Original

Formada em Direito pela PUC/SP, especializada em Violência contra a Mulher pela Universitá di Roma e mestranda em Direitos Políticos e Econômicos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Maria Gabriela Prado Manssur é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo desde 2003. Atualmente, faz parte do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do MP-SP (Gevid), é Diretora da Mulher da Associação Paulista do MP e está envolvida em uma série de projetos voltados à proteção dos direitos das mulheres.

Atleta amadora, ela organiza corridas de rua voltadas à recuperação da autoestima de mulheres vítimas de violência e trabalha projetos pioneiros, tanto para reduzir os fatores de vulnerabilidade dessas mulheres, quanto para ressocializar seus agressores. Uma de suas últimas novidades é a criação de um chat bot para orientar mulheres agredidas.

Nesta entrevista exclusiva concedida à Revista J&C, no dia do seu aniversário, a Promotora fala sobre os trabalhos mais recentes, incluindo a atuação relacionada aos crimes do médium João de Deus. Manssur também comenta os avanços das políticas públicas desde o advento da Lei Maria da Penha e as perspectivas de empoderamento feminino, dentro e fora das carreiras jurídicas, diante de um cenário de ascensão do conservadorismo.

Revista Justiça & Cidadania – Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil é o País que mais mata mulheres no mundo. Nos últimos dez anos, o feminicídio cresceu 15%. O que explica crescimento tão expressivo?
Gabriela Manssur – Não se deve a uma causa específica, mas a um contexto. Embora tenhamos uma Constituição Federal que afirma que homens e mulheres são iguais perante a lei, temos uma sociedade em que isso ainda não é observado na prática. Há desqualificação da condição de ser mulher em várias situações e as mulheres são vistas como cidadãs de segunda categoria, que sofrem violência pelo fato de “não se comportarem” de acordo com o entendimento dos homens. Temos esse contexto histórico de País machista. Paralelamente, embora a Lei Maria da Penha (Lei no 13.340/2016) seja extremamente moderna, ainda há a necessidade de investimentos para que tenha maior efetividade. Quando a mulher denuncia, os processos são muito demorados, as medidas protetivas demoram para ser concedidas e há ainda uma preocupação com o comportamento da mulher, um julgamento social, ao invés de foco exclusivo nos fatos cometidos pelo agressor. Há uma estrutura ruim nas delegacias de polícia para o atendimento desta mulher, poucas delegacias especializadas e penas muito baixas para os crimes de violência contra a mulher. O feminicídio é o ápice da pirâmide, mas para chegar lá vários outras violências contra a mulher foram cometidas. O sistema não consegue evitar mortes anunciadas, porque não consegue prevenir o feminicídio com proteção à mulher. “Ah, mas ela voltou ao relacionamento”. Então, temos que desenvolver mais projetos e estruturas de empoderamento para garantir a autonomia dessa mulher, para que ela não retorne aos relacionamentos abusivos.

J&C – Porque a mulher volta para esses relacionamentos?
GM – Por dependência psicológica, dependência econômica, por preocupação com o cuidado dos filhos, por medo, vergonha e frustração. É um conjunto de circunstâncias que devem ser analisadas e trabalhadas. Nenhuma mulher gosta de apanhar, mas ela não pensa nisso quando volta. Acaba se enfiando cada vez mais no buraco, em relacionamentos cada vez mais agressivos, em que terá a cada dia menos autoestima, forças e recursos para escapar da violência.

J&C – O sistema de Justiça está preparado para lidar com a violência contra a mulher?
GM – Percebemos grandes melhoras desde que foram formadas varas, promotorias e grupos especializados em violência contra a mulher. Há envolvimento de muitos promotores e juízes em todo o Brasil, que estão preocupados e se dedicam exclusivamente ao combate e à prevenção da violência contra a mulher. Há a formulação de teses, enunciados e discussões de casos levados à Justiça. Vamos formando convicções, entendimentos, analisando situações, observando quais são aquelas de maior incidência e em quais podemos melhorar. Deixo registrado meus elogios ao Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência
Doméstica (Fonavid) e à Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, bem como ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pelo trabalho de conscientização, prevenção e combate à violência contra a mulher. Mas é necessário que o Poder Executivo se faça mais presente na execução das políticas públicas previstas na Lei Maria da Penha. Isso é imprescindível. O município tem que estar aparelhado, tanto do ponto de vista material quanto de recursos humanos, para receber as mulheres que sofrem violência. A cada três horas, uma mulher sofre violência. A cada 36 horas, uma mulher morre em São Paulo vítima de violência doméstica. Não adianta o Judiciário e o MP estarem totalmente engajados se não houver prioridade dos governos municipais, estaduais e federais, e que isso não seja plataforma política, mas política pública. É um direito da mulher.

J&C – Como garantir efetividade da Lei Maria da Penha?
MG – Já temos tudo pronto, os projetos de ressocialização do agressor, os projetos de fiscalização das medidas protetivas, os projetos para garantir autonomia às mulheres vítimas, encaminhá-las ao mercado de trabalho e retirá-las da situação de violência. Mas e o atendimento psicológico e jurídico dessa mulher? Quem a acompanha na delegacia e na audiência? Ela tem direito a sempre estar acompanhada de um advogado. E as questões de Direito de família, quem resolve? Aí estão grandes conflitos, porque a mulher sofre a violência e quer se separar, mas vem a questão dos alimentos, guarda, visita e por aí vai. Ela fica sempre em situação de conflito, não consegue resolver, e fica cada vez mais propensa a sofrer nova violência.

J&C – O que mais faz falta em termos de estrutura?
GM – Há muitos lugares que não têm defensoria pública, promotorias e varas especializadas a contento para atender essa demanda. Sabemos que é difícil estruturar todos os municípios, mas deve haver maior investimento e prioridade, porque temos mais casos de violência doméstica do que de corrupção. Tanto se fala de combate à corrupção e pacote contra a corrupção, mas e o pacote de combate à violência contra a mulher? Ninguém fala disso no Governo. Estamos batendo nessa tecla faz tempo, mas abrimos os jornais todos os dias e vemos mais uma mulher estuprada, mais uma mulher agredida fisicamente. Hoje houve um caso horrível no Rio de Janeiro (caso Elaine Caparroz, 55 anos, supostamente agredida durante horas em seu apartamento pelo estudante de Direito Vinicius Serra, 27 anos). Nos deparamos com vários casos graves no dia a dia da Promotoria de Justiça. Isso começa na inferiorização da mulher, o que é passado muitas vezes na mídia, geralmente como se fosse brincadeira, mas que coloca a mulher em situação de inferioridade. Não é um falso moralismo, é uma realidade, que traz ao inconsciente coletivo o desempoderamento da mulher, um tratamento desqualificado, como se as mulheres não tivessem os mesmos direitos. Se elas não atuam da forma que os homens esperam delas, acabam sofrendo violência.

J&C – Como funciona o projeto Tempo de Despertar, de ressocialização de agressores?
GM – Verificamos homens processados pela questão da violência doméstica e os encaminhamos para grupos reflexivos. São feitos dez encontros, no qual há discussões e conscientização sobre machismo, masculinidade, Lei Maria da Penha e igualdade de gênero. Não é um perdão judicial, corre em paralelo ao processo. Ao final eles têm um parecer da equipe técnica, que apresenta ao juiz a possibilidade de uma atenuante genérica da pena caso o homem seja condenado. Reduz de 65% para 2% as taxas de reincidência. É um projeto muito bom.

J&C – Em entrevista recente sobre a criação de multas para punir o agressor sexual na França, a senhora comentou que “o homem pensa duas vezes antes de agredir quando sente no bolso”…
GM – O homem gosta de passar a imagem social de que é inabalável. O homem que comete violência contra a mulher age como se fosse um sedutor social fora de casa. No momento em que isso se inverte e a sociedade fica sabendo que ele é agressor, isso mexe muito com o empoderamento masculino, com essa masculinidade que é tão forte no Brasil. É como se o homem tivesse que passar a imagem de ser bom pai, bom chefe de família, bom trabalhador e ser maravilhoso dentro de casa. Quando cai a máscara, ele se envergonha dessa condição e não quer mostrar para os outros. A segunda questão é quando ele percebe a violência contra a mulher como se fosse contra alguém da família. Vi uma pessoa que sei que faz violência psicológica contra a esposa, ao ver uma foto de violência gravíssima contra a mulher, dizer “imagine se fosse contra minhas filhas”. A partir do momento em que ele sente a violência contra a mulher – não no lugar da mulher, porque isso ele nunca vai sentir – quase na sua pele, contra uma mulher muito próxima, ele repensa. Uma terceira questão importante é pagar pela violência, a pena pecuniária, a multa pelo descumprimento de alguma medida protetiva ou obrigação de fazer. Ele sente no bolso e pensa duas vezes.

J&C – A impressão é a de que os agressores sequer estão preocupados com a condenação criminal. A multa realmente faz diferença?
GM – Poucas vezes o homem vai preso por violência contra a mulher, e justamente por isso não há medo de cometer violência. Há a necessidade de penas mais rígidas. Quando há uma ameaça, a mulher tem que mudar completamente seu cotidiano, mas quando ele é condenado cumpre um mês em regime aberto, não há efeito punitivo intimidatório. A questão da pena com multa por violação de medida protetiva, se fixada em valor alto, tem peso simbólico e intimidatório maior. A possibilidade de multa nos crimes de violência contra a mulher já está prevista, inclusive, nos enunciados do Fonavid e do Copevid. A violência contra a mulher não pode ser tratada como caso banal, é um crime que pode futuramente tirar a vida de alguém e que tem, inclusive, reflexos na família. As crianças que são submetidas a situações de violência no seu convívio sofrem muito. Poderão ser os próximos agressores ou ter como válvula de escape as drogas e o álcool. Já as mulheres acabam desenvolvendo baixa autoestima e vão se relacionar só com pessoas violentas, como se aquele padrão de comportamento fosse o único possível.

J&C – O CNJ investe em novas tecnologias e em Inteligência Artificial para desafogar o Judiciário. Essas ferramentas também podem ajudar no enfrentamento da violência contra a mulher?
GM – Sem dúvida, a tecnologia tem que ser usada no combate à violência contra a mulher. Estou desenvolvendo um chat bot, para que tenhamos respostas simples para a mulher que sofre violência e não sabe o que fazer. Todos os dias recebo, tanto de pessoas menos informadas, de classes mais baixas, quanto de pessoas do meu convívio pessoal, muitas perguntas relacionadas à violência contra a mulher. Virei um 180 (serviço telefônico de atendimento à mulher vítima de violência doméstica) ambulante (risos). Preciso dar vazão a isso sem que a pessoa tenha que pegar o telefone e me ligar. Fiz uma pesquisa e vi que hoje em dia o principal meio de comunicação é o WhatsApp. Por isso estou desenvolvendo no meu site, o Justiça de Saias, um robô para fornecer as informações que a mulher que sofre violência precisa, que vai indicar por geolocalização o endereço da delegacia e do Ministério Público mais próximo, esclarecer quais são as medidas protetivas que ela pode pedir e por aí vai. Pretendo lançar agora em março.

J&C – Quais outros conteúdos estão disponíveis no Justiça de Saias?
GM – O site uma plataforma de notícias, com tudo o que acontece relacionado ao empoderamento feminino e à violência contra a mulher. Estão lá decisões judiciais importantes, acórdãos recentes, entendimentos jurídicos e os enunciados da Copevid. Coloco também a agenda de eventos importantes, os projetos que desenvolvo e, às vezes, o meu dia a dia, quando dou alguma palestra, por exemplo. Fica tudo à disposição para as pessoas consultarem. Porém, apesar de não ser minha intenção, acabou virando um canal de denúncias. Por meio de do email de contato as pessoas pedem ajuda, contam situações de violência, etc. Uma equipe de voluntários orienta as mulheres e as encaminha, de acordo com a situação, para o 180 ou para o próprio Ministério Público.

J&C – Há no site notícias sobre os crimes cometidos pelo médium João de Deus?
GM – Na verdade, não. Eu participei de uma entrevista no programa do Pedro Bial quando ele trouxe à tona o caso do João de Deus, o que levou as pessoas a me identificar equivocadamente como a Promotora do caso. Comecei a receber pelas redes sociais, pelo site e pelo email institucional muitas denúncias e pedidos de ajuda. Por isso criamos um canal específico e institucional do MP, com mais duas colegas, que são a Silvia Chakian e a Valéria Scarance, para receber as vítimas de São Paulo, fazer as oitivas, encaminhar para o MP de Goiás e prestar todo auxílio que precisarem. Apesar de ter minha opinião jurídica sobre o caso, não entrei no mérito, mas fizemos uma escuta especialmente cuidadosa, demorada, detalhada, para que as mulheres fossem atendidas nas suas expectativas e seus direitos pudessem ser efetivados. São casos gravíssimos, chocantes, que provocaram graves abalos emocionais nestas mulheres e, inclusive, em nós, porque são casos pesados, que misturam muita coisa, como usar a fé das pessoas em situações de fragilidade.

J&C – Temos hoje no Congresso Nacional uma pauta de reforma dos costumes. Enxerga possibilidade de retrocessos no Legislativo em relação às políticas de proteção e empoderamento da mulher?
GM – Espero que na parte legislativa não tenhamos retrocesso, porque seria uma perda muito grande para os direitos das mulheres e para as pessoas que tanto lutaram para a conquista desses direitos. Porém, na parte dos costumes culturais, a intolerância contra os direitos das mulheres já está aumentando. A mulher quer entrar no mercado de trabalho e aí vem esse discurso de que ela nasceu para ser mãe e ficar em casa, que faz o homem se sentir empoderado para tentar proibir que ela saia para trabalhar. Temos que buscar um equilíbrio com prevenção, combater com mais rigidez, mostrar que a violência contra a mulher é crime e que todos os fatos denunciados serão investigados.

J&C – Quais são os obstáculos para superar a sub-representação feminina na política?
GM – A grande questão é o incentivo na base, temos que investir em formação de líderes femininas. Não é só garantir cotas para mulheres, é fazer um trabalho anterior, em todos os setores da sociedade. Isso é válido nas empresas, para que as mulheres possam alcançar cargos de CEO, e também no sistema de Justiça, preparando as mulheres desde que entram nas carreiras jurídicas para participar da vida institucional e da vida política. Há uma espécie de seleção natural. A mulher tem dupla jornada, a atividade-fim já exige muito, de forma que ela não consegue participar das decisões institucionais, das reuniões, das comissões, das alianças. Quando tenta voltar, com os filhos já maiores e a carreira um pouco mais consolidada, ela está lá atrás. Temos que reivindicar um espaço que já era nosso por direito, mas que não ocupamos de fato. Não é doloso, mas algo que, naturalmente, afasta as mulheres. Na política fora da instituição, há a questão da exposição. A mulher nesses cargos fica exposta, as mídias sociais sempre trazem consigo a culpabilização do ponto de vista pessoal. Não se avalia se a mulher é competente ou preparada, mas a roupa que ela veste, o decote, o comportamento, se é solteira ou já casou três vezes. As pessoas se preocupam mais com a vida pessoal do que com a competência e o trabalho que essa mulher oferece. Essa é a culpabilização da mulher.

Agora, não gosto de discurso negativo, sempre trabalho com o aspecto positivo. Avançamos muito. Só o fato de falar sobre isso nessa revista já é um avanço. Temos agora a Diretoria da Mulher na Associação Paulista do Ministério Público, a primeira do Brasil, que já trouxe alguns avanços e conquistas em relação à participação das mulheres. Nessa Diretoria editamos o livro “As especialistas”, para apresentar mulheres e suas especialidades dentro da carreira, pois muitas vezes não nos convidam para eventos porque não conhecem mulheres especializadas em determinada matéria. Essa diretoria também deu o start para que o Ministério Público do Paraná criasse sua própria Diretoria da Mulher. Conquistamos a criação da Comissão de Mulheres na Associação
Nacional dos Membros do Ministério Público
(Conamp) e também criamos o Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público, do qual sou coordenadora geral, com 500 promotoras e procuradoras da República inscritas e unidas para pleitear direitos iguais entre homens e mulheres nas instituições. Isso reflete positivamente na sociedade.

J&C – A senhora é conhecida por não apenas atender as mulheres, mas por sempre buscar dar-lhes espaço de participação e voz. Em suas palavras, o que significa sororidade?
GM – Abrir portas para outras mulheres, apoiar outras mulheres e vibrar com outras mulheres. Nunca ajudá-las, atendê-las. Esse é o meu papel enquanto mulher e Promotora de Justiça. Talvez isso ainda falte. Apesar de ter muitas mulheres que me apóiam, muitas vezes eu me sinto sozinha nessa luta. Ainda falta muita sororidade.

J&C – Onde buscar essa sororidade que falta? Como fazê-la florescer?
GM – Dando exemplos de que quando as mulheres se juntam coisas maravilhosas acontecem. Quando as mulheres abrem portas para outras mulheres, não é para uma passar, é para todas passarem. Por mais que me sinta sozinha como falei, sempre aparece uma voz que me ajuda e essa voz é sempre de uma mulher.

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