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Sobrecarga doméstica na pandemia pode dificultar a eleição de mulheres em 2020

Saiu no site Huffpostbrasil

Veja a publicação original: Sobrecarga doméstica na pandemia pode dificultar a eleição de mulheres em 2020

Há 4 anos, o Brasil elegeu 649 prefeitas para 5.568 municípios e 7.808 vereadoras, o equivalente a 11,6% das prefeituras e 13,6% do Legislativo municipal, respectivamente. Desde então, passou a ser obrigatório um financiamento mínimo para campanhas eleitorais de mulheres, as organizações para promover essas candidaturas aumentaram e avançou o cerco a candidaturas laranja que utilizavam mulheres. Mas a expectativa de aumentar a representatividade feminina nas Câmaras municipais e prefeituras em 2020 pode ser frustrada devido à pandemia do novo coronavírus.

Pesquisadoras e mulheres envolvidas em campanhas femininas ouvidas pela reportagem do HuffPost afirmam que as consequências da crise sanitária para as mulheres, como sobrecarga com tarefas domésticas, o cuidado com filhos e idosos, além de perda de renda e o temor da contaminação, podem inviabilizar o sucesso delas nas urnas. Barreiras históricas de financiamento e controle masculino de decisões nas cúpulas dos partidos também continuam presentes.É unanimidade entre as especialistas que a renovação está limitada. A chance de uma mulher que nunca foi candidata se eleger neste ano é menor do que nos pleitos anteriores.

Vai ser muito difícil candidaturas novas terem chance porque elas não vão ter as condições normais de fazer campanha.Luciana Ramos, cientista política da Fundação Getulio Vargas (FGV).

 

“Há maior dificuldade de pessoas que não têm cargo no momento e ainda não são conhecidas politicamente entrarem na disputa com chances porque a pandemia cria uma situação que dificulta o corpo a corpo, que tem sido algo super importante para candidatas, por exemplo, que vêm das periferias, que são ligadas a trabalhos comunitários”, afirma a cientista política Flávia Biroli, presidente da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).

O isolamento social e as demandas trazidas pela crise também reduziram o tempo e a disposição para novos nomes atuarem na articulação política nos últimos meses e no desenvolvimento da própria equipe de campanha. “Vai ser muito difícil candidaturas novas terem chance porque elas não vão ter as condições normais de fazer campanha, que era ir para rua, entregar panfleto, ter uma equipe de voluntários se dispondo a falar sobre a candidata, fazer encontros, rodas de conversa, de aproximação da candidata com os eleitores”, afirma a cientista política Luciana Ramos, da FGV (Fundação Getulio Vargas).

As eleições para os cargos de prefeito e vereador foram adiadas para 15 e 29 de novembro, respectivamente, primeiro e segundo turnos. Os partidos e coligações têm até 26 de setembro para registrar os candidatos e até 27 de outubro para apresentar à Justiça Eleitoral um relatório discriminando as transferências do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral e a estimativa dos recursos recebidos.

Uma das mudanças das eleições deste ano é que os recursos públicos destinados a candidaturas femininas terão de ser proporcionais ao número de mulheres na disputa, conforme estabelecido em resoluções do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). A regra vale tanto para o Fundo Eleitoral quanto para o Fundo Partidário.

Desde 2018, é obrigatório que ao menos 30% do Fundo Eleitoral vá para mulheres na disputa eleitoral, mesmo patamar mínimo de candidaturas. Agora, o valor precisará ser proporcional. Se houver 40% de candidatas mulheres, por exemplo, 40% do dinheiro irá para elas.

O TSE, por outro lado, ainda não concluiu julgamento que pede proporcionalidade também na distribuição de recursos em relação ao critério racial. A discussão iniciada em julho foi interrompida por um pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Alexandre de Moraes. Não há previsão para retomada.

Outro possível avanço para promoção de equidade foi barrado pelo tribunal. Em maio, ficou decidido que não pode ser obrigatória a presença de ao menos 30% de mulheres na direção dos partidos. Ao julgar uma consulta, a corte entendeu que esse pedido fere a autonomia partidária e que tal mudança só poderia ser feita pelo Legislativo. Foi decidido que a cota de 30% será para candidaturas nas eleições internas das legendas, mas não foi estabelecida qual punição a quem descumprir a decisão.

Em nota ao HuffPost, o TSE informou que, por determinação do presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso, “haverá uma ampla campanha nesta eleição junto à sociedade para maior participação feminina na política e para que os partidos façam sua parte”. “Uma primeira ação da atual gestão foi a live Mais Mulheres na Política, e campanhas publicitárias entrarão no ar em algumas semanas”, diz o texto.

Pandemia aprofunda desigualdades entre mulheres

Além do entrave para representatividade feminina e para renovação, o cenário da pandemia pode intensificar desigualdades entre candidatas mulheres e até levar à desistência de novas candidaturas. “A gente está falando de mulheres que têm ainda menores chances do que outras para terem uma candidatura efetiva. Para as mulheres negras, as mulheres mais pobres, a situação com a pandemia se complicou ainda mais e tudo que a gente tem de dado de políticas adotadas indica que as desigualdades pré-existentes vão se aprofundar com o coronavírus. Uma delas é de gênero e a outra é racial”, ressalta Flávia Biroli.

As mulheres estão sem emprego em maior proporção que os homens, têm menores rendimentos e estão mais sujeitas à informalidade. Nos últimos anos, o nível de ocupação dos homens se manteve expressivamente mais elevado do que o das mulheres, de acordo com o estudo “Síntese de Indicadores Sociais 2019 – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira”, publicado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Segundo a pesquisa, essas desigualdades são atribuídas, entre outros fatores, à discriminação no mercado de trabalho e à divisão por gênero das atividades de afazeres domésticos e cuidados, em especialmente porque não há políticas públicas ou legislação no País direcionada a essas questões.

Apesar de não haver uma diferença entre os gêneros no mercado informal como um todo – ambos representam cerca de 40% -, enquanto os homens apresentam maior participação de empregados sem carteira e em trabalhadores por conta própria, as mulheres são maioria no trabalho auxiliar familiar e compõem quase que integralmente o trabalho doméstico sem carteira, grupo em que representam 73,1% do total.

“Tem um impacto indireto – e que passa também pelo cálculo dos partidos – que é a desistência de muitas mulheres de se candidatar”, complementa Carolina de Paula, cientista política, pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticosda UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Em abril, pesquisa do Datafolha mostrou que as mulheres estão mais isoladas e preocupadas com a pandemia do que os homens. “Elas se protegem mais, ferem menos o isolamento social, isso pode também impedir que elas saiam candidatas. Além de estarem sobrecarregadas em casa, elas também não querem correr o risco de se contaminar, fazer uma campanha, participar de reuniões; a gente sabe que muita coisa vai acontecer online, mas também existem alguns municípios pequenos que não tem toda essa estrutura”, diz.

Reabertura com creches e escolas fechadas

Outro agravante no Brasil é o fato de que muitas pessoas tiveram de voltar ao trabalho presencial sem que creches e escolas tivessem reaberto. Como o cuidado com os filhos recai mais sobre as mães, esse fator amplia a desigualdade de gênero.

“O Brasil tem situação de enorme desvantagem para as mulheres trabalhadoras que é o fato de que a reabertura desse jeito absolutamente descoordenado que tem acontecido não foi feita se pensando que as pessoas precisam ter as crianças cuidadas enquanto elas estão trabalhando”, aponta Biroli.

O tempo gasto com os filhos também é apontado como uma dificuldade por Luciana Ramos. “Quantas mulheres vão topar se candidatar nas condições atuais, que não podem ter um apoio dentro de casa? É muito difícil que elas consigam de fato se dedicar a uma campanha. Requer um tempo muito grande de fazer reuniões com as comissões dentro dos partidos, com as lideranças, e ainda ter de fazer campanha. Acho que o cenário é menos promissor do que a gente imaginava antes da pandemia para as mulheres”, afirma.

De acordo com a pesquisa do IBGE publicada em 2019, a taxa de realização de afazeres domésticos no domicílio ou em domicílio de parente é de 92,2% para as mulheres e de 78,2% para os homens. Já os cuidados de moradores ou de parentes não moradores fica em 37% para mulheres e 26,1% para os homens.

Outro levantamento do instituto com dados de 2018 revela que a mulheres dedicam 21,3 horas a atividades domésticas, enquanto os homens gastam 10,9 horas com essas atividades.

Campanha online parece solução, mas reproduz desigualdade

Mesmo no ambiente online, tendência na disputa eleitoral deste ano, esse tipo de obstáculo também está presente. “Fazer campanha online é bem mais caro do que fazer na rua, principalmente em lugares com população menor e para quem está fazendo pela primeira vez. Quem tem já uma base de apoio, já é conhecida minimamente, parte já de um lugar em que o custo para ampliar e chegar no número de votos que precisa, é menor. Com a pandemia, quem está saindo candidata pela primeira vez está bastante prejudicada”, afirma Gabriela Juns, coordenadora de estratégia digital do Instituto Update, organização que estuda e fomenta a inovação política na América Latina.

A instituição, junto com a ONG Elas no Poder, criou a Im.pulsa, uma plataforma online gratuita para capacitar mulheres a cargos eletivos. O site é dividido em 4 frentes: disponibiliza cartilha, vídeo-aulas, exemplos de estratégias bem sucedidas e documentos pré-moldados, como planilhas  de orçamento de campanha. Em junho, 2 mil pessoas acessaram o conteúdo.

Apesar do maior peso do online em 2020, Juns afirma que as ações de pré-campanha estão em curso nas ruas, mesmo com a crise sanitária. “Em lugares menores, principalmente periferias, a campanha não deixou de acontecer na rua. As pessoas estão saindo, na medida do possível. Articulações estão acontecendo offline. As pessoas não têm acesso à internet. Quando têm, têm um pacote de dados limitado”, destaca.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) 2018, do IBGE, 25% dos brasileiros não têm acesso à internet. Isso representa cerca de 46 milhões de pessoas.

As dificuldades de financiamento de campanhas online também reproduzem a realidade offline. Fenômeno considerado decisivo na disputa de 2018, o uso das redes sociais por mulheres não necessariamente aponta “para uma democratização da campanha”, segundo a pesquisa Democracia e representação nas eleições 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gênero, da FGV, coordenado por Ramos e pela professora Catarina Helena Cortada Barbieri.

Variáveis como a quantidade de recursos de campanha, o pertencimento a uma classe social mais abastada, a idade, o grau de instrução e a cor da pele das candidatas podem estar relacionadas com o uso da tecnologia.

Ao analisar campanhas ao cargo de deputada federal por São Paulo, as pesquisadoras identificaram vantagens de candidatas com ensino superior completo, brancas, com renda mais alta e com mais recursos investidos. Os 20% com mais dinheiro apresentaram uma taxa de uso de impulsionamento de publicações no Facebook de 71%, mais que o dobro dos 30,4%, da faixa financeira imediatamente anterior, por exemplo.

“A página [em vez de perfil no Facebook] permite impulsionar conteúdo importante nas redes sociais porque é o processo de furar a bolha, poder alcançar mais potencial de eleitores. Mulheres com essas características vão conseguir, em geral, realizar boas campanhas e terão mais chances de se eleger”, afirma Luciana Ramos. “Mulheres de classe social mais baixa, jovens, negras, embora algumas tenham acesso a essas ferramentas, têm lugares onde elas moram que não têm acesso à internet e nem todas têm habilidade de poder usufruir ao máximo as potencialidades da ferramenta para de fato conseguir angariar mais votos”, completa.

Pandemia pode fazer eleitores olharem para questões sociais

Se por um lado a pandemia pode inviabilizar candidaturas, por outro, há uma esperança de que o eleitorado esteja mais aberto a agendas sociais. “As pessoas estão se sentindo mais vulneráveis, estão vendo a importância de ter um sistema de saúde pública efetivo, a importância de haver responsabilidade estatal, que está faltando tanto nesta pandemia. Pode ser que essas agendas que têm sido historicamente mais ligadas à atuação das mulheres ganhem mais força nessa eleição”, aposta a cientista política Flávia Biroli.

A condução de governantes mulheres no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus chamou atenção em alguns países. A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, por exemplo, decidiu pelo confinamento de toda a população por um mês e o fechamento total de fronteiras.

Para Gabriela Juns, do Instituto Update, nomes que se destacaram em suas comunidades na crise sanitária também podem construir um caminho até as urnas. “Tem um fenômeno que são lideranças periféricas que passaram os últimos meses completamente envolvidas em lidar com a redução do impacto da covid-19 nas comunidades. Por um lado, isso tomou tempo, mas por outro, coloca elas em evidência nos territórios delas. Elas são reconhecidas pelo trabalho que estavam fazendo. Tem um caminho de duas vias importante e essas lideranças podem se valer disso para ganhar espaço”, afirma.

Outro fator que motiva o otimismo em ampliar a representatividade feminina é a articulação na sociedade civil e o uso da internet de forma construtiva. Na avaliação de Juns, o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSol-RJ) e o debate sobre o uso de laranjas nas eleições de 2018 para preencher a cota de 30% de candidaturas por gênero foram fatores que ampliam as iniciativas de fomento às mulheres na política recentemente. De acordo com levantamento feito pelo Instituto Update em 2019, havia 80 projetos com esse objetivo.

“Eu acredito que a internet pode impulsionar até [candidaturas femininas]”, diz a cientista política Carolina de Paula. “A gente vê pessoas com pouco recursos, mas que são criativas e conseguem inflar as redes de um modo bastante eficiente e isso pode aproximá-las das eleitoras e eleitores. Tem esse lado bem positivo para fazer a informação chegar às pessoas, especialmente as candidaturas de vereadoras que são campanhas que não têm muito recursos e na maioria das vezes são estreantes. Pode ser uma boa oportunidade.”

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