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“MAS VOCÊ GOSTA MESMO DE FUTEBOL?”

Saiu no site THINK OLGA:

 

Veja publicação original: “MAS VOCÊ GOSTA MESMO DE FUTEBOL?”

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Por Olga Bagatini

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O preconceito contra mulheres que gostam de esportes começa nas sutilezas. “Mas você gosta de verdade de futebol? Então explica aí a regra do impedimento. Ou melhor, diz a escalação do seu time em 1973.” Boa parte das torcedoras já ouviu alguma dessas perguntas ou precisou provar seu conhecimento para ser “aceita” por homens em estádios ou simples rodas de conversa.
“Lugar de mulher é na cozinha”, “futebol é coisa para homem” e “mulher não entende de esporte” são outras frases ouvidas com frequência por aquelas que ousam ocupar um espaço historicamente reservado aos homens. Meninos geralmente são incentivados a gostar de futebol desde crianças, enquanto as meninas não recebem o mesmo estímulo, explica a pesquisadora Carolina Moraes no artigo As Torcedoras Querem Torcer.
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Desde criança, o homem é estimulado a assistir e praticar esportes, vínculo que enaltece sua virilidade e sua sociabilidade. Para a mulher, há uma defasagem nesse incentivo. Segundo Carolina, isso reforça no imaginário social a suposição de que elas desconhecem “regras, esquemas táticos, histórico de campeonatos, jogadores, técnicos, e porque não, os modos de torcer”.
Culturalmente, o estádio tornou-se um espaço de socialização do homem, onde ele encontra seus iguais, reforça sua identidade, expressa sua masculinidade e extravasa frustrações cotidianas. “A presença da mulher se torna um fator de coerção, que faz homens evitarem certos tipos de comportamento. Logo, ele sente que está perdendo espaço em um ambiente destinado a ele, se desestabiliza e reage com violência”, explica Bianca Tavolari, doutoranda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.
O contraste causa estranhamento à presença feminina no ambiente esportivo. Mas a hostilidade enfrentada pelas torcedoras nos estádios também tem origem histórica. Durante muito tempo, a sociedade patriarcal impôs à mulher um padrão de comportamento: ela deveria ser “bela, recatada e do lar” para ser respeitada. “O espaço público era destinado a homens, garotas de programa e ‘mulheres da vida’. Aquela considerada ‘para casar’ só podia sair na rua acompanhada do marido ou de um parente”, relata Bianca.
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Na década de 40, um decreto-lei assinado por Getúlio Vargas chegou a proibir a ida de mulheres desacompanhadas às arenas esportivas. Parece absurdo? O Irã, que disputou a Copa do Mundo da Rússia, proíbe a participação de mulheres em eventos esportivos . Elas lutam para mudar essa realidade e chegam a se disfarçar de homem, com perucas e bigodes falsos, para ir a jogos. Embora no Brasil não haja mais empecilhos legais, a violência, muitas vezes velada, ainda inibe a presença das mulheres.
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Por outro lado, uma mulher acompanhada de um homem corre menos risco de ser questionada e assediada. Isso também é explicado por um fator histórico, de quando o casamento ainda era um ato de aquisição em que a mulher – tratada como objeto – passava das mãos do pai para as do marido. Aquelas que não conseguissem se casar ficavam “sem dono”, eram vistas com maus olhos pela sociedade e tornavam-se alvos de hostilidade. Como se a companhia masculina pudesse “validar” a mulher. Até hoje, essa diferença é sentida por torcedoras.
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“Sempre ia aos jogos com meus dois irmãos mais velhos. Quando comecei a ir sozinha, o assédio já começava no caminho para o estádio, com olhares nas ruas, ônibus e filas”, conta uma torcedora palmeirense que preferiu não se identificar. “Já na arquibancada, o papo começava: ‘Mas você está sozinha? Seu namorado deixa? Linda desse jeito e sozinha?’. Sempre frisavam o fato de eu estar sozinha, como se não fosse uma opção minha.”
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Infelizmente, os casos de assédio são frequentes. A reportagem da Think Olga procurou mulheres que sofreram com machismo em estádios e recebeu dezenas de relatos em poucas horas. São casos de torcedoras que tiveram seus corpos tocados sem autorização, foram alvo de cantadas, olhares inconvenientes, abuso psicológico e até mesmo ameaças de morte.
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“Um dia, na confusão que é para ir embora depois de uma partida, um torcedor do mesmo time que o meu pegou na minha bunda. Ele não encostou, não esbarrou, não tocou, ele apertou minha bunda, com a mão cheia”, escreveu uma palmeirense. “Na minha reação de olhar para trás com os olhos arregalados, coração palpitando, eu vi um mar de homens, sem chances alguma de identificar o verdadeiro agressor. E nem adiantaria, eu era nova, medrosa, não faria muito além de um olhar ressentido.”
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Uma corintiana conta que precisou fazer boletim de ocorrência após receber ameaças. Ela foi a um jogo no estádio do Morumbi e postou uma foto nas redes sociais. Alguns são-paulinos que viram a publicação adotaram um tom extremamente agressivo. “Um falou para eu já cavar minha cova, o outro que eu era uma puta, outro que ia arrancar meu cabelo. Eles se sentiram no poder, se sentiram superiores por eu ser mulher e por ser nova”, conta. Na delegacia, ouviu que a culpa era dela. “O delegado não quis saber, disse que eu não deveria ter ido ao jogo porque não era lugar para mulher.”
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Outra torcedora foi acuada durante uma caravana. “O cara já me incomodava, dizia que eu ficava gostosa com o uniforme do Palmeiras. Durante um jogo em outra cidade, ele tentou se aproveitar de mim na comemoração do gol. Só parou quando um amigo homem disse que ia tomar uma atitude. E no ônibus, voltando para São Paulo, ele sentou do meu lado, colocou a mão na minha perna e tentou me beijar à força. Fui sentar no primeiro banco e não consegui pregar o olho na viagem de volta, com medo de que algo acontecesse. “
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Além das violações e desqualificações, mulheres que gostam de futebol muitas vezes têm sua orientação sexual questionada. “Eu costumo torcer e gritar muito durante o jogo. Uma vez, no Itaquerão, um cara encostou do meu lado e disse: ou você é lésbica ou veio para chamar atenção de macho. Entrei em desespero e fui embora, tive que ver o segundo tempo em casa”, relata uma santista.
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A arquibancada reflete os aspectos mais sombrios de uma sociedade. É um lugar onde os cidadãos muitas vezes acham que têm salvo-conduto para reproduzir comportamentos violentos, homofóbicos, racistas e machistas. Aquelas que tentam ocupar esse espaço são recebidas com desconfiança, cantadas, assobios, assédio moral e sexual, o que faz da simples presença da mulher um ato de resistência. Devemos lembrar que o estádio é um lugar como qualquer outro, onde os direitos de todas as pessoas devem ser respeitados.
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“Apenas a ocupação da mulher nesses espaços quebrará a lógica vigente. E não é só a presença no espaço físico do estádio, elas têm que estar na torcida, nos campos, nos debates, na mídia”, explica Bianca Tavolari.
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Deixa Ela Torcer

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Diante do preconceito, torcedoras de todo o Brasil começaram a se unir. A gremista Thaís Odorissi Oliveira criou o grupo “Gurias do Grêmio”. Além de ser um ambiente onde mulheres se sentem à vontade para torcer e falar de futebol sem serem ridicularizadas por homens, elas também fazem campanhas para reivindicar espaço.
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Depois do Gre-Nal 431, clássico gaúcho marcado por assédio contra torcedoras e jornalistas, as Gurias lançaram o manifesto “Deixa Ela Torcer”, que jogava luz no problema. “Em 2018, é inadmissível que a gente ainda tenha que aguentar assédio, violência, ameaça e piadinha para se expressar como torcedora, seja no estádio, entre amigos, no bar, na rua ou na internet. Os estádios também são nossos”, diz o manifesto.
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Mulheres do Galo Marx, do Atlético Mineiro, lançaram em 2017 a “Estádio Sem Assédio” para ecoar a  voz de mulheres que sofrem com machismo no futebol. Integrantes da Camisa 33, organizada do Remo, do Pará, também se mobilizaram: lançaram uma cartilha que explica didaticamente quais atitudes são permitidas e quais são consideradas desrespeitosas com torcedoras. “Respeita as minas! Conversar? Pode. Empurrar as minas? Não pode. Perguntar o nome? Pode. Agir com intimidade sem permissão? Não pode. Alentar juntos? Pode. Se aproveitar na hora do gol? Não pode”, diz a campanha, que teve apoio da diretoria do clube.
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O INTERfeminista surgiu a partir de um deslize do próprio clube. Em 2016, o Internacional fez uma campanha de marketing para o Dia da Mulher que dava a entender que a maior conquista de uma torcedora seria a admiração dos homens colorados. O caso levou a colorada Isadora Laguna Soares a escrever uma carta aberta questionando a visão que a instituição tinha das torcedoras. Da repercussão nasceu o coletivo. Elas encabeçaram a campanha “Ouvi No Estádio”, que chamou atenção para frases machistas ouvidas por mulheres na arquibancada. “Fica quieta, mulher tá no estádio só pra caçar homem!” e “não deve nem saber a escalação do time” foram alguns dos absurdos. Até hoje o coletivo se reúne para ver jogos e propor pautas para aumentar a presença feminina no clube.
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Movimentos similares começaram a pipocar em todos os cantos do País, como o Coralinas, do Santa Cruz, e o Toda Poderosa Corinthiana. Em 2017, o Museu do Futebol de São Paulo foi palco do 1º Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada, que uniu mais de 300 torcedoras de 11 estados do Brasil. Entre as principais pautas do grupo estão a fabricação de modelos femininos dos uniformes dos clubes (veja mais abaixo), luta pelo fim dos cânticos machistas e homofóbicos nos estádios, aumento da participação feminina e a transformação do futebol em um ambiente de mais respeito às mulheres.
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Papel dos clubes

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As torcedoras têm se movimentado para combater a violência de gênero no futebol. Mas o que fazer quando o machismo parte do próprio clube? Ou quando a instituição é conivente com os preconceitos reproduzidos livremente na arquibancada?
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O Dia da Mulher é costumeiramente celebrado por clubes de futebol brasileiros. Jogadores entrando com as mães em campo, distribuição de flores, homenagens à “delicadeza feminina”… Pelo menos em 2018, a maioria das agremiações abriu mão dos clichês antiquados e usou o 8 de março para agir em prol do que a data realmente significa: a luta por uma sociedade mais igualitária.
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O Atlético Mineiro, em parceria com o Instituto Maria da Penha, lançou uma ação para combater a violência contra mulheres, incentivando as vítimas a denunciar os agressores. Já o Fluminense chamou atenção para o número de mulheres assassinadas diariamente no Brasil. Os jogadores entraram em campo de luto, com uma faixa preta no braço, para lembrar que a cada 90 minutos (tempo de uma partida), uma mulher é assassinada no Brasil.
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O Corinthians lembrou que “não é não” e estampou suas camisas com a frase “Respeita as Mina”. O Flamengo pediu às torcedoras que contassem suas histórias com o clube e deu descontos no programa de sócio-torcedor. Figueirense, Inter, Palmeiras e Santos insistiram que lugar de mulher é onde ela quiser. O Coritiba promoveu um encontro com as torcedoras para discutir assuntos de interesse das mulheres. Cruzeiro, Avaí, Chapecoense e Sport deram ingressos gratuitos às torcedoras.
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Mesmo assim, alguns clubes cometeram deslizes. O Luziânia ofereceu a entrada gratuita às mulheres no jogo contra o Gama, desde que estivessem acompanhadas do marido ou namorado. A Federação de Futebol do Rio de Janeiro (Ferj) também deu ingressos para o jogo entre Madureira e Vasco, mas só podiam aproveitar o benefício mulheres uniformizadas e acompanhadas de um torcedor.
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De nada adiantam as campanhas pontuais se as diretorias dos clubes, compostas majoritariamente por homens, não tomarem posições firmes nem planejarem ações contínuas e efetivas para combater o sexismo. É papel dos clubes e gestores de estádios fazer campanhas de conscientização, dizer claramente o que é assédio e o que não é, oferecer espaços seguros onde a mulher se sinta confortável para denunciar, além de aplicar as devidas punições aos agressores. É importante que o homem entenda que não pode ofender ou assediar uma mulher e seguir impune – mesmo o ambiente lúdico do estádio deve ser de respeito.
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Algumas agremiações já caminham nessa direção. O Náutico, por exemplo, criou uma Diretoria da Mulher justamente para acolher a parcela feminina da torcida. O São Paulo firmou o compromisso de prestar auxílio às torcedoras após uma pesquisa apontar que 74% das são-paulinas temem ir ao estádio sozinhas e 59% já sofreram algum tipo de assédio. O clube passou a promover encontros periódicos, dar apoio a vítimas de violência e dialogar com autoridades para melhorar as condições de acesso e saída de torcedoras do Morumbi.
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São condutas como essas, que visam resultados a longo prazo, que deveriam servir de exemplo. Não basta aos clubes “lamentar” os episódios de abuso. Eles devem se posicionar, combater situações negativas e evitar que se repitam. “A violência e o assédio é uma realidade que precisa ser enfrentada de frente pelos clubes brasileiros, e que muitas vezes acaba ignorada porque esses clubes não têm nem sequer uma mulher em cargos importantes de gestão. Não adianta entregar flores, entregar ingressos, se o mínimo, que é a segurança e atenção, os clubes não estão entregando há décadas”, questiona a jornalista Renata Mendonça em reportagem das Dibradoras.
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A saga por uma camisa feminina
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O censo do IBGE aponta que 51% da sociedade brasileira é composta por mulheres. Segundo um relatório divulgado pela Pluri Consultoria em 2012, 68,9% (cerca de 67 milhões) dessas mulheres torcem por algum time de futebol. O Flamengo é o clube com mais torcedoras, cerca de 14 milhões, seguido pelo Corinthians, com 11 milhões. Para efeitos de comparação, o Palmeiras – dono da quarta maior torcida do Brasil – tem um total de 12,3 milhões de fãs, entre homens e mulheres.
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Os números são claros: o público feminino forma um potencial mercado consumidor de artigos de futebol. No entanto, elas ainda relatam dificuldades para comprar camisas do seu time de coração no modelo desejado ou tamanho adequado. Para se justificarem, fornecedores de material esportivo ignoram os dados acima e dizem que não há “demanda” ou “interesse” suficientes por produtos femininos.
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Todo torcedor sabe que vestir a camisa do time dá uma sensação de pertencimento, faz com que ele se sinta parte daquele grupo e daquela história. A falta de produtos para mulheres é mais uma maneira sutil de excluí-las. “É um meio de apagamento, de deixar implícito que aquele não é nosso lugar”, desabafa Hellen, uma das 14 milhões de flamenguistas. “É muito difícil encontrar qualquer acessório feminino. Mesmo quando tem a camisa, o design é diferente, não veste bem ou carrega os estereótipos dos papéis de gênero. As da Adidas, por exemplo, tendem a ser extremamente decotadas”, relata a torcedora, que costuma recorrer a modelos infantis.
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Alana Takano, uma das 11 milhões de corintianas, enfrenta o mesmo problema. “As camisas disponíveis não remetem a versões femininas das camisas dos jogadores, e sim algo ‘fofo’, tipo camisetas rosas. Às vezes até alteram o símbolo. Um horror”, conta. “Não busco produtos diferenciados. Só queria a versão das camisetas tradicionais que se adaptasse ao meu corpo. Nada absurdo, né?”.
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A corinthiana chegou a questionar a fabricante Nike depois de uma tentativa frustrada de comprar a versão feminina da camisa 2 de 2017. Foi ignorada por semanas, até que a empresa respondeu que não faria o modelo desejado devido à “tendência” de mulheres que preferiam o modelo 1. “Não sei de onde eles tiraram esse absurdo, até porque aquela camisa fazia alusão ao título de 77 e tinha um baita significado pra quem é corintiano”, diz Alana, que reuniu algumas amigas para subir a tag #RespeitaAsTorcedorasNike.
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Com ampla divulgação na imprensa e apoio do movimento Toda Poderosa Corinthiana, a empresa voltou atrás e, sem alarde, colocou a camisa 2 à venda nas lojas. “A Nike nunca me respondeu, o Corinthians nunca se manifestou. Mas, em 2018, lançaram a camisa dois feminina sem nenhum transtorno”, diz Alana.
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Em 2016, a diretoria do Atlético Mineiro recebeu duras críticas por usar modelos de calcinha para apresentar os novos uniformes. Não bastasse a polêmica do desfile, as camisas, feitas pela empresa canadense DryWorld, ainda levavam o recado “dê à sua mulher” nas instruções de lavagem. Até quando a paixão do público feminino por futebol e por seus times será ignorada?
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Para a Copa do Mundo da Rússia, a CBF, em parceria com a Nike, mostrou mudança de mentalidade: fez a versão feminina da camisa oficial e colocou a jogadora da seleção brasileira de futebol feminino Andressa Alves como garota-propaganda, ao lado de craques como Neymar e Philippe Coutinho.
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O recado está dado. Já passou da hora de fabricantes e clubes levarem esse público-alvo em conta, não apenas pelos milhões a mais que poderiam lucrar, mas por entenderem que mulheres também são torcedoras e têm direito de estar nos estádios e ocupar as arquibancadas com uniforme, amor ao time e, acima de tudo, com respeito.
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