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Feminismo nikkei: a luta das descendentes de asiáticos contra estereótipos

Saiu no site REVISTA MARIA CLAIRE:

 

Veja publicação original: Feminismo nikkei: a luta das descendentes de asiáticos contra estereótipos

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Por Aline Takashima

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Delicadas, tímidas e doces. Nos estudos, são inteligentes, esforçadas e especializadas em matemática. Já no sexo, submissas e silenciosas. Esses estereótipos perseguem as mulheres de ascendência asiática em todos os aspectos da vida. Na luta contra o preconceito, três brasileiras criaram coletivos que discutem padrões, vícios e, mais importante, constroem autoestima das descendentes no país

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Haruno Aizawa estava no colo da mãe, ao lado do pai e rodeada pelos irmãos quando embarcou no navio em Kobe, no Japão, em 1934. Aos 2 anos, cambaleava no convés quando atravessou o Oceano Pacífico em uma viagem de três meses. Pegou catapora, sarampo e quase morreu antes de chegar ao porto de Santos. A família se estabeleceu em Assaí, Paraná, onde nas escolas se falava japonês e os imigrantes trabalhavam no plantio de algodão e café. Quando criança, Haruno não tinha sapatos, tamanha pobreza. Criada para ser dona de casa, conheceu o marido na lavoura. Nunca o contrariou. Ele era severo, machista e controlador, conta a neta de Haruno, a artista plástica paulistana Caroline Ricca Lee, 28 anos, que decidiu investigar a história da avó quando entrou em contato com o feminismo asiático, a vertente do movimento que defende os direitos das mulheres desta ascendência e que luta contra a fetichização e o preconceito. “Minha avó sofreu com uma sobreposição de machismos: do meu avô, da comunidade nipônica e do patriarcado brasileiro”, explica Caroline.

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Caroline Lee, 28, artista plástica - “Ao apontar o machismo que há na minha família, entendo como o patriarcado formou meu caráter” (Foto: Julia Rodrigues )

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Quando Haruno, hoje com 86 anos, reproduz comportamentos machistas, como insistir para as mulheres da casa lavarem a louça, a neta diz: “Batian [avó, em japonês], você acha mesmo que devo servir um homem? Vivemos num novo tempo”. Imediatamente, Haruno muda a feição e acena com a cabeça. “Ao apontar o machismo na família, entendo como o patriarcado ajudou a moldar o meu caráter. É um trabalho de libertação para as duas gerações”, diz Caroline, que também é performer e costureira freestyle, como define seu trabalho de estilista. Com os cabelos curtos, batom vermelho e delineador marcado, descobriu na moda e na arte a fuga da opressão e do bullying que sofreu na escola por ser gorda e ter ascendência asiática. “É importante me orgulhar dos meus traços”, diz. Aos 15 anos, começou a frequentar festas de punk rock, onde encontrou um cenário underground e muitas feministas. Embora se identificasse com as pautas das mulheres, possuía vivências diferentes por conta da origem sino-japonesa – seu pai é filho de chineses, e a mãe, de japoneses. No Brasil, existem mais de 2 milhões de residentes amarelos, segundo o IBGE, e quase nenhum debate sobre o que isso representa. Caroline mergulhou no feminismo asiático na França e Alemanha, em 2016, quando foi fazer uma residência artística e se deu conta de que nunca era reconhecida como brasileira. Percebeu que precisava promover a representatividade das mulheres amarelas por aqui e criou a Plataforma Lótus, coletivo que fomenta a visibilidade das nipônicas. Na época, investigava o assunto no Centro de Estudos Orientais do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC, em São Paulo. “Precisava ter essa discussão com mulheres iguais a mim [fora da academia]”, escreveu no Facebook. Em uma semana, reuniu 50 pessoas. Hoje, a página tem quase 3.500 curtidas e um grupo fechado com 2 mil mulheres amarelas, que discutem gênero e etnia. O grupo tem também sul-coreanas, tailandesas, vietnamitas, israelenses e palestinas – asiáticas amarelas e marrons.

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Uma situação recorrente a todas elas, no Brasil e no exterior, é a fetichização. As mulheres asiáticas são tratadas como se fossem iguais: silenciosas, submissas e tímidas. O esteriótipo é o de que são muito magras, têm lábios rosados, pele de porcelana e uma docilidade servil. No sexo, se transformam em uma dominatrix sensual, perigosa e misteriosa. Esse imaginário inclui piadas sobre as vaginas “apertadas” e “na horizontal”. “Somos vistas como uma ‘viagem ao Oriente’. É uma violência física, sexual, verbal e mental”, explica Caroline. Em diversos relacionamentos, a ativista sentiu que os parceiros tentavam colocá-la numa caixinha. “Eles esperam algum estereótipo, como conhecer todos os restaurantes japoneses da cidade.” Ela detesta, por exemplo, quando querem apresentá-la a alguém que “adora orientais”.

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Kemi, 24, estudante - “Os homens imaginam uma mulher delicada. Enquanto isso, bato o copo na mesa e rio alto” (Foto: Julia Rodrigues )

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Existe, inclusive, um termo para designar os homens que só se relacionam com asiáticas: yellow fever, que costumam tratar as mulheres como objetos sexuais. O enredo é clássico: o flerte começa inocente e evolui para um relacionamento abusivo, no qual o parceiro tenta controlar o que ela pensa e fala, onde vai e com quem conversa. O domínio se estende na cama. Não à toa, 49% das mulheres amarelas admitem ter sofrido assédio sexual, de acordo com pesquisa do Instituto Datafolha de 2017. A ocorrência contra as asiáticas é maior do que em outros grupos.

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Esses estereótipos fetichistas nasceram das incursões militares norte-americanas na Ásia no século passado. Em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial, foi criada uma rede de bordéis no Japão para atender às tropas americanas remanescentes. Milhares de mulheres foram coagidas a se prostituir, de acordo com registros do governo japonês. Em 1958, outras 300 mil trabalharam no comércio sexual na Coreia do Sul, após a Guerra da Coreia. A indústria também prosperou no Vietnã durante o conflito no país. E, até hoje, a figura fetichizada das mulheres asiáticas persiste no Ocidente.

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AS RAÍZES DO ATIVISMO

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Não é a primeira vez que elas se levantam contra o machismo. A jornalista japonesa Kanno Sugako (1881-1911), pioneira na discussão de gênero em seu país, foi condenada à morte por suas ideias revolucionárias. A escritora chinesa Qiu Jin (1875-1907) criou, na virada do século, um jornal com uma pauta empoderadora. Acusada de tramar um golpe contra o governo, foi decapitada em praça pública. A partir da década de 1970, imigrantes e descendentes passaram a relatar suas vivências em países ocidentais. Hoje, os EUA concentram as principais ações. Caroline acompanha de perto o trabalho do Sad Asian Girls, coletivo que aborda o sexismo nas artes, a plataforma Reappropriate, um dos mais antigos blogs feministas-asiáticos, e o movimento #NotYourAsianSidekick, de direitos civis para mulheres asiáticas americanas.

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Todas essas feministas também são inspiração para a estudante de Ciências Sociais paulistana Kemi, 24 anos, que tem a pele escura, tatuagens e traços que não correspondem ao estereótipo da descendente de japoneses. “Os homens imaginam uma mulher delicada, magra, quietinha e subserviente. Enquanto isso, bato o copo na mesa, rio histericamente e falo alto.” Por não se enquadrar no biótipo esperado dela, desenvolveu transtornos alimentares na adolescência. Passava dias sem comer. Com terapia e apoio médico, mudou a relação com a comida. Hoje, valoriza a culinária preparada pelas avós, mães e tias. “É uma reaproximação identitária”, revela. Muitas das suas características são parecidas com as dos seus antepassados, do arquipélago de Okinawa. A Ilha foi um reino independente por 400 anos, com idioma e cultura próprios, até ser conquistada pelo Japão Imperial, no século 19. “Quero ser reconhecida como okinawana, além de japonesa. A colonização tentou apagar as ideias e a cultura do meu povo.”

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Ainda na escola, Kemi começou a pesquisar o encarceramento negro. A partir daí, conheceu a luta das mulheres transexuais, interseccionais e o feminismo asiático americano. “Sentia muita falta de conteúdos no Brasil, com o contexto do país.” Estima-se que entre 1908 até a eclosão da Segunda Guerra, cerca de 189 mil imigrantes japoneses chegaram por aqui. Após o término do conflito, mais de 50 mil agricultores nipônicos vieram para o país, segundo a Agência de Cooperação Internacional do Japão. Hoje, somos a nação com a maior comunidade nipônica fora do Japão. Por isso, desde 2015 Kemi contribui com o blog Outra Coluna, em que escreve sobre questões raciais, entre elas o feminismo. No mesmo ano, criou a página no Facebook Perigo Amarelo, com quase 7 mil curtidas. O nome não foi escolhido à toa. No final do século 19, difundiu-se a noção de que os asiáticos eram uma ameaça prestes a dominar o mundo com hábitos “estranhos”, línguas incompreensíveis e vestimentas diferentes. Tanto o site quanto o Facebook são voltados aos coreanos, japoneses e chineses. A partir deste mês ela passa a ser também colunista de Marie Claire.

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O mito da minoria modelo

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Um dos tópicos que Kemi aborda em seus textos é o da noção, errônea, de que asiáticos são disciplinados, competentes, ricos e inteligentes – e hábeis em exatas –, um mito conhecido como “minoria modelo”. A expressão ficou conhecida nos anos 1960, quando o The New York Times publicou o texto Success Story, Japanese-American Style (História de sucesso, estilo americano japonês, em tradução livre), do sociólogo William Pettersen, que transformava a figura do amarelo perigoso na do asiático dócil e focado. Kemi também sofreu com esse padrão. Ela, que tem transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, nunca conseguiu fixar os conteúdos como os colegas. O ato de estudar sempre foi um desafio – que dominou com maestria. E não foi com a ajuda dos professores, que diziam, em frente a turma: “Ela é japonesa, só que ao contrário”. Aos 14 anos, Kemi começou a sentir os primeiros sintomas da depressão e do transtorno bipolar, diagnosticado cinco anos depois. Para ela, o resultado tardio está relacionado ao seu fenótipo. Certa vez, uma psicóloga afirmou na primeira consulta: “Você se sente triste porque a sua família é muito exigente com as suas notas”. Só que o desempenho escolar nunca foi prioridade para os pais de Kemi. A situação se repetiu várias vezes. Atualmente, recebe acompanhamento de um psiquiatra com ascendência chinesa. “Ele foi o único que não presumiu nada da minha família e minha vivência. Foi bom ser vista como uma pessoa inteira e não uma série de estereótipos.” De fato, o estereótipo agrava a ansiedade e a pressão entre os estudantes. Segundo a American Psychological Association, o suicídio é a segunda principal causa de morte para os asiáticos americanos entre 15 e 34 anos. De acordo com uma pesquisa da Universidade de Washington, quase 16% dos descendentes de asiáticos nascidos na América tentaram se matar – a média entre os americanos é de 13%.

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A MISCIGENAÇÃO BRASILEIRA

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Camila Yuri Ifuku Mendes, 21 anos, sabe bem o que é ser encaixada em estereótipos. A estudante de Ciências Sociais é neta de imigrantes japoneses e seu pai é negro. Ela tem olhos puxados, cabelo cacheado volumoso e a pele mais escura do que a dos parentes maternos. “Se as negras são classificadas como hipersexuais e exóticas, as asiáticas são vistas como servis e tímidas. Sofro com os dois estereótipos – depende da forma que o outro me enxerga”, afirma.

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No colégio, Camila não queria ser vista como negra, porque elas eram consideradas vulgares e indesejáveis. As asiáticas, embora diferentes, eram mais bem-aceitas. “Por muito tempo, quis ter o cabelo liso e a pele alva.” Ela nasceu em São Paulo, mas cresceu em Ipeúna, uma pequena cidade do interior. Na oitava série, recebeu do professor de Matemática o apelido de “xing ling”, em referência aos produtos chineses “falsificados”. Isso porque não era tão boa na matéria como espera-se de uma nipônica. “A partir daquele momento, não tive mais nome. Só voltei a ser a Camila quando entrei na faculdade.” Apesar das dificuldades nas exatas, seus colegas diziam que teriam que “matar” a asiática para passar no vestibular.
Quando iniciou o curso de Ciências Sociais, na Unesp, encontrou sua vocação. “Comecei a pesquisar raça, tema que estudarei até o fim da vida.” A paixão é tanta que sua militância se confunde com os estudos. Integra o Coletivo Negro da faculdade, estuda a militância asiática e quer entrar no grupo de estudos de africanidades. “O meio acadêmico é uma forma de concretizar a militância. Minha vida sempre envolveu questões raciais.” Em 2017, criou dois grupos no Facebook. Afro-asiáticos: questões identitárias, com 460 pessoas, e Afro-asiáticos Brasil, exclusivo para negros e asiáticos, com 50 membros. “Os amarelos são supervalorizados e os negros, vistos como preguiçosos”, resume a estudante. E afirma que o mito da minoria modelo reforça o racismo também contra os negros, porque constrói a ideia de que não são “bem-sucedidos”, como os asiáticos, porque não querem. Quando a família japonesa veio para o Brasil, vivia em situação de pobreza da mesma forma que a africana.  A diferença, ela pontua, é  que os japoneses não passaram pela escravidão.

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Camila Ifuku, 21, estudante - “Um professor me apelidou de Xing Ling porque eu não era tão boa em matemática”   (Foto: Julia Rodrigues )

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O AMOR ENTRE AMARELOS

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As militantes relatam que o machismo que sofrem também é exercido pelos homens amarelos. Caroline, da Plataforma Lótus, explica que muitos deles, em processo de embranquecimento, menosprezam as asiáticas. Mas, assim como as mulheres, também são estereotipados, retratados como não viris, o que faz com que muitas descendentes se relacionem apenas com parceiros brancos. “Existe uma recusa da nossa própria etnia em construir algo belo, frutífero e legal. Não podemos compactuar e nos diminuir dessa forma”, afirma.

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Por isso, mesmo sendo um movimento recente, os grupos feministas asiáticos já trazem resultados para a autoestima das ativistas. Kemi defende que “é importante enxergar o próprio potencial quando encontramos uma pessoa parecida. Representatividade aumenta o amor-próprio”. Hoje, Camila sabe que não é a única afro-asiática no país. “Não sou uma pessoa ‘vaga’, como categorizam o pardo no Brasil.” Caroline explica que “o coletivo é um lugar de reconhecimento e pertencimento, onde a gente conta as nossas vivências e vê que as nossas histórias importam”. As transformações estão só começando, e vão impactar gerações a se sentirem mais livres. Afinal, não estamos sozinhas – nem somos todas iguais.

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Beleza: Rafael Valentini (Capa MGT) com produtos L’Oréal Professionnel e Nars | Assistente de fotografia: Iago Fundaro | Produção-executiva: Vandeca Zimmermann

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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