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Feminicídio, Mayara Amaral e Lei Maria da Penha

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Veja publicação original: Feminicídio, Mayara Amaral e Lei Maria da Penha

Por GABRIELA MANSSUR

 

A morte de Mayara foi um crime de ódio e menosprezo, com requintes de crueldade e por questões de gênero.

 

O Brasil é o quinto país do mundo com maior índice de morte violenta de mulheres, apenas atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Uma vez ouvi essa expressão da antropóloga e pesquisadora Beatriz Accioly em uma palestra “coração valente”. Não sabia a quem ela se referia, havia chegado atrasada e perdido o fio da meada, mas fiquei com aquilo na cabeça.

Em um primeiro momento, pensei que ela estava se referindo a nós, operadoras do direito, acadêmicas e todas que atuam na defesa dos direitos das mulheres. Sim, somos nós: insistimos, lutamos e enfrentamos todos os dias preconceitos contra as nossas falas e atitudes, fazendo que nossas vozes sejam ouvidas.

Muitas vezes somos tachadas de loucas, autoritárias, feminazis, radicais, mas não desistimos nunca. Acredito, inclusive, que não tenha visto, nestes 23 anos de militância, nenhuma ativista que simplesmente desistiu. Por isso, nosso coração é valente. Mas, na realidade, Bia se referia a todas as mulheres.

Fato é que, neste mesmo período de militância, vi muitas mulheres que tiveram arrancado de si seu coração valente, sem direito de defesa ou de resistência, sem direito a nada. Algumas sobreviveram, outras já não estão mais aqui para seguir em frente. Vítimas de violência física, moral patrimonial, sexual e psicológica. Todas nós estamos sujeitas. E, provavelmente, iremos sofrer, uma vez que uma a cada três mulheres sofre alguma dessas violências.

 

Por que tanta injustiça contra as mulheres? E não me venha falar que apanhou porque mereceu, que foi estuprada porque estava de roupa curta, que morreu porque traiu. Nós não iremos mais tolerar essa tentativa de justificativa da violência. Nem do agressor e nem da sociedade, que julga sem se colocar na pele da mulher em situação de violência. Se baseia em notícias infundadas, desprovidas de técnica e investigação, geralmente desqualificando as mulheres. E quanto a isso, nada é feito, a versão do homem sempre prevalece.

 

Será que mesmo com 11 anos de existência da Lei Maria da Penha, reconhecida como uma das melhores do mundo na proteção dos direitos das mulheres, não conseguiremos avançar?

 

O Brasil é o quinto país do mundo com maior índice de morte violenta de mulheres, apenas atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. E, a cada 12 segundos, uma mulher é agredida. Não podemos esquecer que o pano de fundo dessa violênciaé, sem sombra de dúvidas, a relação de subordinação, poder e controle do homem sobre a mulher, culturalmente construída e imposta.

 

E ai da mulher que ousar transgredir essas regras. Poderá lhe custar a integridade física, moral, psíquica e, muitas vezes, a própria vida.

 

Sinceramente, evito essa palavra para não generalizar comportamentos, mas não consigo me distanciar dela quando abordo o tema: machismo. Sim, o machismo que mata, que estupra, que violenta, que aprisiona mulheres em suas casas e relacionamentos, destrói sonhos, profissões, rouba a sua identidade e faz nossos corações valentes pararem de bater. Sem falar no trauma e nas consequências gravíssimas causadas aos “filhos da violência”, uma vez que 67% dos crimes ocorrem na frente das crianças.

 

O machismo julga as mulheres, dá lição de moral, impõe estereótipos goela abaixo, e coloca sempre a mulher em situação de inferioridade e submissão, como se fosse ser humano de menor importância. O machismo constrói a cultura da banalização da violência contra a mulher e da tolerância social.

 

Até quando vamos criticar as leis existentes ao invés de rever nossos posicionamentos jurídicos, a própria aplicação da lei Maria da Penha, os nossos conceitos, ideologias e crenças pessoais? Não as minhas, nem as suas, mas de todas e todos nós. É uma reflexão que toda a sociedade precisa fazer.

 

E aqui faço um “mea culpa”. Logo no início da edição da Lei Maria da Penha, fui uma das primeiras a defender, com unhas e dentes, a inaplicabilidade integral da Lei 9099/95. Talvez por estar cansada de assistir como “saía barato bater em mulher”.

 

Hoje, atuando na linha de frente nestes 11 anos, vejo que foi uma proposta precipitada e radical de minha parte, respeitando opiniões em sentido contrário.

 

Com efeito, a suspensão condicional do processo para crimes de ameaça e de lesão corporal de natureza leve (praticamente 80% dos casos), desde que o autor não seja reincidente e com a condição sine qua non de seu encaminhamento a grupos de reflexão e responsabilização, seria muito mais eficaz que uma condenação de três meses de detenção em regime aberto, sem nenhum acompanhamento do agressor, da vítima e sem perspectiva de ressocialização.

 

Evitaria a reincidência, que hoje gira em torno de 65%, e diminuiria em muito o número de processos que abarrotam o Judiciário. Proporcionaria uma prestação jurisdicional com muito mais qualidade e desafiaria quem quisesse provar o contrário. Mas está decidido pelo STF, então não ouso falar mais nisso.

 

Mas não é o aniversário da Lei Maria da Penha, celebrado nesta semana, que me traz aqui. A existência da lei, eu comemoro todos os dias em que faço uma denúncia, atendo uma vítima, desenvolvo um projeto, escrevo ou falo algo sobre violência contra a mulher. Essa lei, definitivamente, deu voz às mulheres.

 

O caso Mayara

 

Venho aqui hoje para falar sobre o caso Mayara, mais um crime de morte violenta. Ainda que se discuta, tecnicamente, se os fatos e as circunstâncias consistam em crime de latrocínio ou feminicídio (isso cabe aos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, competentes para investigar, processar e julgar o caso concreto), de uma coisa temos absoluta certeza: foi um crime de ódio, de menosprezo, com requintes de crueldade e por questões de gênero. Quanta injustiça.

Mayara sofreu toda as formas de violência contra a mulher de uma só vez: sexual, quando foi estuprada; moral, quando foi xingada; psicológica, quando foi humilhada e subjugada; física, quando foi agredida. Tudo isso culminou no golpe final: foi morta por golpes de martelo, tendo seu corpo carbonizado e desfigurado, na tentativa de ocultá-lo e de sumir com todos os vestígios desses crimes bárbaros. Já vimos casos semelhantes, não?

 

Mas os crimes contra Mayara não pararam por aí: teve a violência patrimonial, pois seus bens foram subtraídos. E pior: sofreu violência simbólica, institucional e o julgamento social, quando já não estava mais aqui para contar exatamente o que aconteceu. Quanta injustiça.

 

A quem interessa a vida sexual da Mayara? A quem interessa a vida sexual das mulheres? Essas circunstâncias não podem mais ser usadas contra mulheres, como forma de defesa da desvalorização dos nossos direitos humanos, da nossa dignidade, de nossa liberdade, da nossa moral e da memória das que já se foram.

 

Será que ninguém pensa no sofrimento dos pais, dos irmãos, dos amigos? De todas nós que, em algum momento, nos identificamos com Mayara? Sonhadora, feminista, música, estudiosa, amorosa, boa filha e com vontade de mudar o mundo, em pleno vigor da juventude. Quanta injustiça.

 

Tanto no caso de latrocínio quanto de feminicídio, o bem jurídico tutelado não deixa de ser a vida. Muito embora o latrocínio esteja inserido no capítulo de “Crimes contra o Patrimônio” no Código Penal, pois também protege o patrimônio. Ambos os crimes são hediondos. As diferenças entre eles, do aspecto processual e penal, são duas:

1. A pena mínima do latrocínio é de 20 anos, enquanto que a do feminicídio é de 12.

 

2. O crime de latrocínio é julgado pelo juiz ou juíza de direito do caso, em apenas uma fase processual. Já o de feminicídio é julgado pelo Tribunal do Júri, composto por sete jurados representantes da sociedade, e se desenvolve em dois ritos processuais.

 

Para configuração do latrocínio, a morte da vítima deve resultar da violência empregada para a subtração patrimonial. Este é o elemento subjetivo do tipo, a vontade inicial do autor dos fatos. Ou seja, crime contra o patrimônio, seguido de morte.

 

Já no feminicídio, a vontade do autor dos fatos é especificamente a morte da mulher, pela condição do sexo feminino. E envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de ser mulher.

 

Mas, infelizmente, o crime patrimonial ainda é mais importante e mais valioso que a integridade da própria mulher no nosso sistema jurídico. Um furto simples, por exemplo, prevê a pena de um a quatro anos de reclusão e multa. E ninguém pergunta pra vítima, na delegacia, se ela está mentindo ou se quer pensar melhor para fazer o B.O. ou se ela deu causa ao furto porque estacionou em lugar errado.

 

Enquanto que, na lesão corporal de natureza leve, cuja pena é de três meses a três anos de detenção, muito se duvida da palavra da mulher ou da culpa pelas agressões, mesmo que a vítima apresente vários hematomas por todo o corpo.

 

E a Lei do Feminicídio, tendo como base o conceito criado por Marcela Lagarde após estupros e mortes de mulheres no México, veio justamente para evitar a culpabilização da mulher e expressões como “crime passional”, “matou por amor”, “matou por ciúmes”, “matou porque foi traído”.

 

E mais, veio para punir, na medida da gravidade e da intensidade da violência empregada, crimes de ódio contra as mulheres, evitando a sensação de impunidade e inércia do Estado.

 

Se Mayara fosse do sexo masculino, ela teria sido estuprada e morta a marteladas? Teria seu corpo carbonizado e desfigurado? Não restam dúvidas; foi um crime de gênero, de ódio e menosprezo.

 

A adequada aplicação das leis e a atuação eficaz do sistema da Justiça não apagarão o bárbaro crime contra Mayara, nem contra Mércia, nem contra Eliza. Muito menos contra as cunhadas Valéria e Jaqueline, que foram brutalmente assassinadas em Taboão da Serra no mês passado.

 

Mas é obrigação e responsabilidade do Estado essa resposta para as mulheres, para a sociedade e, principalmente, para os familiares da vítima. É preciso mostrar que as vítimas de violência não estão sozinhas, tampouco são culpadas ou abandonadas pela Justiça.

 

Ainda nesse sábado assistindo com meus filhos à querida Maria da Penha no programa Altas Horas, da Rede Globo, me emocionei quando ela disse: “façam isso que vocês estão fazendo, pela filha de vocês”.

 

Termino este texto com o último whatsapp que recebi de uma amiga ontem, por volta de uma da manhã: “esse caso da Mayara me pegou sabia? Não de me colocar no lugar igual ao de todas, não tenho essa pretensão, mas de pensar que, se trocados os nomes, poderia ser eu”. Sim, poderia ser qualquer uma de nós.

 

Nestes 11 anos da Lei Maria da Penha, sinceramente, não tenho nada para comemorar. Em tempos em que ouvimos que a expressão empoderamento feminino é “clichê constrangedor” e que a Lei Maria da Penha é uma “leizinha vagabunda”, apenas agradeço por ter um coração valente. E que vai continuar lutando pelas mulheres enquanto bater, como o da Mayara, que, em algum lugar, bate e clama por justiça.

 

 

 

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