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Eu, Leitora: “Precisei quase morrer para a sociedade me olhar”, diz trans espancada

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:  Eu, Leitora: “Precisei quase morrer para a sociedade me olhar”, diz trans espancada

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Figurinista, diretora de arte e modelo, Lua Guerreiro, 24 anos, é uma mulher trans. Ela conta que estava na Cantareira, em uma famosa região de Niterói, no estado do Rio, quando foi agredida após pedir um isqueiro emprestado a um homem que estava trabalhando em uma barraca. Agredida por pessoas que não conhecia — chegaram a quebrar uma cadeira em sua cabeça —, ela acredita que a agressão foi motivada por transfobia e diz que ainda sofreu com preconceito na delegacia e no hospital onde foi procurar atendimento após o ocorrido

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Por Lua Guerreiro em depoimento a Kamille Viola

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Fui muito abençoada por ter uma mãe professora, que sempre me estimulou intelectualmente. Ficava muito sozinha, então os livros eram minha companhia constante. No quintal da minha casa, encenava peças, desfilava minhas roupas feitas de lençol, cantava e dançava — às vezes para os animais, às vezes para parentes ‘sequestrados’ para formar uma plateia.

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Quando tinha 11 anos, mais ou menos, minha irmã nasceu e meus pais se separaram. Ficamos só nós e meus avós, que moravam na casa da frente. Tive uma vida simples, mas sem grandes faltas. Todo mês, no dia do pagamento da minha mãe, a gente tinha direito a um dia de princesa, quando íamos ao cinema, lanchávamos e ganhávamos pequenos mimos. Minha mãe sempre nos incentivou a ter pensamento crítico. Ela dizia: ‘Os adultos nem sempre estão certos só porque são adultos, não acredite em tudo que te falam’.

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Assim, cresci questionando a tudo e todos, mas, sobretudo, a mim mesma. Logo após a separação, minha mãe achou necessário me colocar em terapia, e considero que essa foi uma das decisões mais importantes da minha vida. Com essa base, aos 21 anos interrompi o tratamento e comecei a faculdade de Design de Moda, onde me formei. Engatei em cursos de figurino e direção de arte, e comecei a trabalhar em curtas universitários e a construir meu nome como profissional do audiovisual.

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Paralelamente, me descobri uma pessoa trans, e tudo mudou. A leveza de ser quem sou constantemente é contrapartida pela raiva das pessoas disso, mas sigo resistindo e existindo, sem olhar para trás e sem hesitar em ser e questionar, como minha mãe me ensinou.

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Sempre entendi o que entendo agora: que eu sou eu. O que mudou foi descobrir que eu era uma pessoa trans. Até então, achava que isso significava coisas específicas negativas, que é como as pessoas trans geralmente são representadas na mídia. Quando pesquisei mais sobre o assunto, obtive a resposta para algo que me incomodava desde sempre. Minha mãe me apoiou completamente. Dei muita sorte de tê-la na minha vida. Meus amigos também me deram muito suporte. No ano passado, saí de casa e fui morar com amigas no Ingá, em Niterói.

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Já havia sofrido agressões transfóbicas diversas vezes. Ser trans no Brasil é ser agredida diariamente. Mas comigo ainda não havia acontecido uma agressão de caráter físico. Em nenhuma tinha temido pela minha vida. Isso até o último domingo.

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Eu estava com um grupo de amigos na Cantareira, em Niterói, um lugar que frequento. Por volta das 23 horas, meia-noite, fui pedir um isqueiro emprestado para um vendedor de uma barraca na praça, porque nenhum dos meus amigos tinha e eu queria acender meu cigarro. Já tinha visto a barraca, mas nunca tinha reparado nessa pessoa. E aí ele respondeu que não tinha de uma forma rude. Perguntei então se ele não tinha fósforo ou se não poderia acender no fogo, já que ele estava usando uma chapa quente. E, ainda mais grosseiro, falou que não era obrigado a me ajudar ou a fazer nada por mim. Questionei por que ele estava ele falando assim comigo e saí.

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Uma conhecida minha foi conversar com ele, tentar entender por que aquilo havia acontecido comigo. Ele se estressou, mas não chegou a ser agressivo. Alguns amigos nossos foram atrás dela, para tentar tirá-la daquele bate-boca que parecia não dar em nada. Aí, começou outra discussão. Fui atrás, porque eles estavam gritando e falando isso e aquilo de mim. Claramente dava para ver que eles estavam loucos comigo porque o cara tinha vindo de desaforo comigo e eu não tinha aceitado o desaforo. Fui tentar resolver, mostrar que ele que tinha começado me tratando mal. Mas, quando vi que não tinha muito o que fazer, que a coisa estava muito feia, saí. Porque não sou uma pessoa de briga.

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Me afastei um pouco e vi que um dos meus amigos tinha tomado um soco. E, no momento em que eu fui separar a briga, virei o alvo. Eles me batiam, eu tentava me defender, aí vinham por trás e me davam uma banda. Não sei quantos eram, acredito que bem mais que os dois que estavam envolvidos na discussão. A todo momento em que eu tentava me levantar e revidar, vinha alguém por trás e me derrubava. Minhas amigas que estavam próximas tentaram entrar na frente, tanto que todas ficaram ensopadas com o meu sangue, com as roupas e os corpos sujos. Mas em nenhum momento elas foram agredidas. Era óbvio que o alvo era eu. Até pegaram uma cadeira e quebraram na minha cabeça.

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Tudo só acabou quando a polícia chegou, e eu estava no chão, toda ensanguentada. Se não tivesse chegado, talvez eu não estivesse viva neste momento. Por um tempo, alguns policiais ficaram discutindo sobre coisas triviais com pessoas que estavam nervosas em volta, em vez de me prestar auxílio. Lembro de ouvir alguém falando que era para prender os agressores que estavam lá (muitos sumiram), e o policial batendo boca, dizendo: ‘Você está querendo me ensinar a fazer meu trabalho?’. Outros ficaram fazendo piada. Enquanto eu sangrava da cabeça aos pés, sem nenhum tipo de suporte.

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Entrei em um carro dos bombeiros, onde fui muito bem atendida e respeitada. Fui levada até o hospital Azevedo Lima, para levar pontos em dois lugares, porque tinham quebrado uma cadeira na minha cabeça. Fui direto para a emergência. Minhas amigas que foram comigo relataram que uma enfermeira ficou fazendo deboche com o ocorrido, rindo do meu nome social e falando meu nome de registro para quem quisesse ouvir, enquanto eu estava tomando pontos. Quando elas manifestaram insatisfação com isso, foram hostilizadas por essa funcionária do hospital.

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Alguns dos policiais que me atenderam inicialmente foram lá no hospital buscar minhas amigas e eu para irmos para a delegacia, 76ª DP (Niterói). Lá, me colocaram na mesma sala de espera de alguns agressores, que estavam tranquilos e dando risadas. Além disso, fui questionada e tive meu nome de registro exposto por um dos policiais. Perguntei a um deles a previsão de atendimento, porque eu estava sentindo muita dor, e ele disse que era de no mínimo duas horas — mesmo a delegacia não estando movimentada, mesmo em vários momentos eles estarem assistindo à televisão. Eu não fui atendida, nada foi feito. Por fim, esperei tanto que decidi ir embora, para me preservar, para me recuperar e lutar outro dia.

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Fiz um vídeo depois de ser agredida e postei nas redes sociais assim que cheguei em casa. Depois de todo o descaso, ficou óbvio que eu iria precisar de ajuda… A priori, não me senti confortável. Não me sinto até agora. Trabalho há alguns anos com audiovisual, são alguns anos tentando reconhecimento, lutando por oportunidades, e, após quase morrer, a sociedade consegue me olhar. Não quero ser definida pela violência que sofri, mas sou eternamente grata por todo mundo que ajudou isso tudo a tomar essa proporção que tomou, porque sei que, se não fosse assim, provavelmente nada teria sido feito. Há muitas como eu.

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Na terça, fui de novo até a delegacia com testemunhas e abri um Registro de Ocorrência. Espero que essas pessoas entendam que não têm o direito de agredir ninguém, que não têm o direito de dizer quem vive e quem morre, que tenham que sair da zona de conforto para aceitar, na cabeça pequena deles, a diversidade existente e respeitar todo mundo, quem é igual e quem é diferente. E que não ousem fazer isso com mais ninguém. Travesti não é bagunça!”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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