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Copa do Mundo Feminina: como o feminismo tem mudado o futebol das mulheres

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE

 

Veja publicação original:  Copa do Mundo Feminina: como o feminismo tem mudado o futebol das mulheres

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O fato de sermos o país de um fenômeno como Marta, seis vezes consecutivas a melhor jogadora do mundo e maior artilheira em mundiais, com mais gols do que Pelé, deveria ser uma forte vantagem no futebol feminino. Não é bem assim

 

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Por Milly Lacomb

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Minha mãe e eu jantávamos em sua casa quando ela avisou que queria me mostrar uma surpresa. Saiu da mesa e voltou com alguns cadernos. “Coisas que escrevi como desabafo quando vocês eram adolescentes”, disse jogando os cadernos na mesa. Com um certo receio do que poderia encontrar ali, abri as páginas lentamente e encontrei o pranto de uma mulher silenciada pelo machismo, podada pelo patriarcado, dilacerada por uma sociedade que a impedia de se revelar, de gritar, de criar. Uma mulher confinada às tarefas do lar e incompreendida por aqueles que moravam com ela. Saí do jantar em estado de profunda perturbação.

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Todas nós temos experiências com o silenciamento, que vão desde sermos cordialmente interrompidas em reuniões até o feminicídio. Entre a geração de minha mãe houve mudanças, mas a verdade é que o mundo ainda espera as mesmas coisas de uma mulher: que sejamos agradáveis, que não falemos muito alto, que sentemos com as pernas fechadas, que não disputemos poder, que não expressemos ambição, que não falemos duro ou sejamos enfáticas. Não é, portanto, estranho que resida sobre o futebol feminino uma sobreposição e uma intersecção de preconceitos, discriminações e exclusões. Trata-se de um esporte dominado por homens, sequestrado por homens, administrado por homens e, até pouco tempo atrás, praticado apenas por homens.

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Mas a nova onda feminista, que começou sua ventania em 2015, não vai deixar nada em seu lugar e já está causando reviravoltas também no futebol feminino, um esporte que foi proibido no Brasil durante a ditadura de 64 – proibição que se estendeu a década de 80. “O Campeonato Brasileiro passou a existir em 2013, mas só foi ter premiação a partir de 2017”, contam a publicitária Angélica Souza e as jornalistas Roberta Nina Cardoso e Renata Mendonça, cofundadoras do Dibradoras, projeto que nasceu em 2015 para dar visibilidade a mulheres no esporte. Elas explicam que hoje há verba para todos os clubes, existem duas divisões nacionais com 52 times e que a CBF, depois de muito negligenciar o futebol feminino, está bancando a logística de viagem dos clubes. Muita coisa mudou para melhor, é verdade. Mas faltam outras tantas.

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Na luta por visibilidade, o fato de sermos o país de um fenômeno chamado Marta, eleita seis vezes consecutivas a melhor jogadora do mundo e maior artilheira em Copas, com mais gols do que Pelé, deveria ser uma forte vantagem. Só que não.

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Se Marta sozinha não foi capaz de alterar o rumo da história, o feminismo, essa praga, tem sido. Para as Dibradoras: “Se antes da onda feminista de 2015 a modalidade ficava praticamente esquecida, hoje as jogadoras começam a ter voz, a reivindicar valorização. Você vê movimentos de meninas na escola primária ocupando as quadras quando são impedidas de jogar. Você vê as escolinhas ‘só para meninas’ surgindo”.

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Para a comentarista do SporTV Ana Thaís Matos, a imposição da FIFA aos clubes masculinos, que agora são obrigados a contar com equipe feminina, mudou o jogo. “Isso fez com que os gigantes se envolvessem.” As Dibradoras concordam e dizem que os clubes espanhóis estão acumulando recorde de público, que o campeonato inglês tem patrocinador milionário e que a liga italiana está a cada dia mais forte.

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O feminismo invadiu os campos de futebol e talvez por isso os conservadores estejam estrebuchando dentro de seus assombrados castelos de cartas. “A ministra Damares Alves é a personificação de todos os padrões construídos historicamente sobre mulheres e o feminino”, dizem as Dibradoras. “E as mulheres do futebol rompem todos esses padrões: praticam um esporte considerado masculino, de contato, violento, e ainda rompem com a ideia da ‘família tradicional brasileira’ já que muitas são lésbicas.”

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Se o cenário extracampo é atraente, dentro dele as coisas não andam boas. Para a Copa da França, nossa seleção chega sem muita badalação: uma série de derrotas nos meses que antecederam o torneio deixa a impressão de que a seleção não se encontrou. E ainda que não tenhamos até aqui ganhado uma Copa do Mundo (embora já tenhamos conquistado o Pan-Americano de 2007 e uma medalha de prata em Pequim em 2008), a forma como as mulheres da nossa seleção jogam sempre encantou a gringa: pela leveza, pelos dribles, pela criatividade. Em 2007, praticando arte em campo, vencemos as poderosas americanas na semifinal e fomos à final, quando perdemos para a Alemanha. Na ocasião ficou evidente que, se sobrava técnica, faltava investimento em preparo físico. No pódio, a seleção soltou seu pranto abrindo a faixa: “Brasil, precisamos de apoio”.

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As Dibradoras lembram de outros momentos de muita tristeza, como o do Brasileiro de 2015, quando seis jogadoras desmaiaram durante uma partida no Piauí, ou quando jogadoras do América precisaram se trocar em tendas improvisadas porque não havia vestiário para elas no estádio. É preciso muita paixão, coragem e teimosia para seguir tentando viver de um esporte que insiste em nos invisibilizar e maltratar. Mas no meio das muitas coisas que somos, paixão, coragem e teimosia estão como pilares. Não fosse assim, como colocar os pés para fora de casa em um país que mata uma mulher a cada duas horas? Nós nos recusamos a aceitar o medo e o ódio como únicos afetos políticos e seguimos na luta para que nossas vozes sejam escutadas, nossos corpos, respeitados, nossos dribles, vistos, nossos gols, celebrados.

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Ana Thaís Matos acredita que a Copa do Mundo na França pode ser um divisor de águas a despeito dos resultados de nossa seleção. “Espero que seja uma Copa para colocar o futebol feminino de vez na agenda comercial de marcas pelo Brasil e pelo Mundo. Por ter muitas mulheres envolvidas, espero também uma cobertura jornalística mais humana, menos pautada em polêmicas vazias. E cheia de histórias ricas para assim mostrar um lado que o esporte de alto rendimento esconde: o do recorte social do esporte.”

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Já a jornalista e apresentadora Fernanda Gentil se mostra otimista quando pensa no futuro da categoria. Para ela, a forma como as pessoas enxergam o futebol feminino mudou. “Mais respeito, mais atenção, mais audiência. Isso tudo se deve à luta das mulheres em todos os lugares da sociedade. A luta de todas é a luta por todas, e o futebol acaba sendo beneficiado por isso”, acredita.

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Embora a seleção seja feminina, a comissão técnica da CBF é masculina, com uma exceção: Bia Vaz, ex-jogadora que é hoje auxiliar técnica. Matos enxerga uma contradição. “O futebol feminino do Brasil tem de estar nas mãos de quem é do ramo” diz. “Vamos olhar para os nomes que construíram a história do futebol feminino no Brasil. São muitas ex-atletas que ficaram esquecidas pelo caminho.”

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Para a Copa da França, a expectativa é grande: “Nunca antes houve tanto investimento e visibilidade no futebol feminino”. As três Dibradoras lembram que a recente convocação da seleção da Inglaterra, por exemplo, envolveu a participação de algumas das principais personalidades do país. O príncipe William convocou uma jogadora, David Beckham outra e assim por diante, e o periódico Guardian chegou a chamar a Copa de “principal competição esportiva do ano”.

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O narrador Milton Leite, que comanda o Grande Círculo, um programa de entrevistas que vai ao ar pelo SporTV e pela Globo, diz que uma de suas grandes emoções foi ter transmitido a final dos Jogos Pan-Americanos de 2007. “Eram mais de 60 mil pessoas no Maracanã. Naquele dia o futebol feminino provocou na torcida e na mídia as mesmas reações que os homens costumam provocar.”

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Milton Leite é um de nossos narradores mais consagrados e, para ele, ter mulheres transmitindo jogos de futebol de forma regular é uma questão de tempo. “Depois de décadas ouvindo homens gritarem com suas vozes graves e terem moldado um jeito de transmitir, isso ainda gera estranhamento. Some-se a esse estranhamento aquele machismo do mundo do futebol e o caminho das mulheres fica mais difícil. Mas acho que à medida que as mulheres forem ganhando espaço, vão encontrar um jeito que se adapte melhor a elas. E espero que o estranhamento deixe de existir – e, com ele, o machismo.”

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Em 2018, o canal FOX Sport Brasil levou ao ar a primeira transmissão totalmente feminina de um jogo de futebol. Foi durante a Copa da Russia de futebol masculino, e as pioneiras foram a narradora Isabelly Morais e as comentaristas Vanessa Riche e Bárbara Barbosa, ex-goleira da seleção.

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Mas a história que melhor ilustra o que acontece quando mulheres ousam entrar em territórios dominados por homens aconteceu na Copa Moleque Travesso, em São Paulo, em 2016, quando o único time feminino inscrito no Campeonato (um time formado por meninas entre 12 e 14 anos que queria competir, mas não achou Campeonato feminino para se inscrever e acabou optando por um torneio masculino) ficou com o título. “Ao longo do torneio, as meninas ouviram gritos de desconfiança e preconceito por parte de treinadores adversários e também dos pais de meninos contra os quais elas jogavam”, contam as Dibradoras. Ao final, como em um filme, o time de mulheres venceu o torneio, e a história acabou virando obra de arte, imortalizada no documentário “Minas do Futebol”.

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O trabalho de mudar o mundo começa com o trabalho de mudar a história contada até aqui. Estamos reescrevendo algumas delas para que as meninas das gerações futuras cresçam com a sagrada consciência de que a todo ser humano é dado o direito de exercer livremente sua criatividade, seja nas páginas de uma revista, na liderança de uma nação ou dentro de um campo de futebol.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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