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Cabe ao Estado criminalizar o aborto?

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Veja publicação original: Cabe ao Estado criminalizar o aborto?

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Uma análise da ADPF nº 442 à luz da teoria crítica de justiça

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Por Mariana Campos

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Entre os próximos dias 3 e 6 de agosto, a ministra Rosa Weber abre as portas do Supremo Tribunal Federal para dar voz a especialistas, organizações e instituições interessadas em debater a descriminalização do aborto no Brasil. A pauta ganhou destaque no último mês, após a Congresso argentino aprovar a legalização da prática, em votação histórica que conduziu o país à posição vanguardista na América do Sul.

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No Brasil, o debate ressurge na próxima sexta-feira, na audiência pública relativa à ADPF nº 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em março de 2017. Apesar dos avanços conquistados no bojo da ADPF nº 54 e do HC nº 124.306, o STF lança mão de instrumento democrático de participação da população para, em um contexto global de luta das mulheres pelo crescente reconhecimento de seus direitos, entender o que os diversos setores da sociedade pensam sobre a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação.

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Daí, diante de todos os debates atuais sobre o tema, uma pergunta determinante salta aos olhos: cabe ao Estado interferir em uma decisão das mulheres sobre seus corpos?

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Nessa perspectiva, a teoria crítica da justiça – aqui representada por Jürgen Habermas, Axel Honneth e Nancy Fraser – fornece contribuições teóricas densas que podem ajudar os Ministros na elucidação de tal questionamento. Em síntese, a teoria considera justa a sociedade que garante a liberdade comunicativa por meio da qual os cidadãos podem desenvolver uma esfera de reconhecimento. Desse modo, as mudanças normativas seriam possíveis pela reivindicação de grupos que buscam o reconhecimento de determinados diretos. Dentre eles, no que tange à presente discussão, podem ser elencados os direitos à dignidade da pessoa humana, à cidadania, à não discriminação, à saúde, à integridade física e psicológica, além dos direitos sexuais e reprodutivos decorrentes dos direitos constitucionais à liberdade e à igualdade de gênero.

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Na visão habermasiana de democracia deliberativa, o Estado não seria representado como a institucionalização de uma comunidade ética, tampouco seria visto como agente regulador dos interesses privados. Ao mesmo tempo em que é distinto da sociedade, o Estado necessita dela para legitimar seus atos. Logo, é questionada cada vez mais a interferência estatal no exercício da autonomia individual quanto ao exercício desses direitos que resguardam a esfera privada. As ideias do autor indicam que a mulher, gozando da liberdade que lhe deve ser assegurada, está apta a decidir sobre questões de ordens privadas, íntimas, que apenas a ela concernem.i

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Para Honneth, os fundamentos para justiça deixam de ser a garantia da liberdade individual para aparecer a figura do reconhecimento, tendo como foco o processo de construção da identidade (individual e coletiva) movida pelas lutas sociais.ii De acordo com a teoria desenvolvida pelo autor, em um contexto intersubjetivo, seria injusta a criminalização do aborto realizado nos três primeiros meses de gestação, uma vez que a prática é contrária ao reconhecimento da mulher como sujeito dotado de direitos. A descriminalização representaria o respeito às estruturas de reconhecimento das mulheres, que devem possuir o direito de decidirem sobre os seus corpos.

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Cabe ressaltar, igualmente, a lição de Fraser. Para a autora, a ideia de justiça parte da noção do reconhecimento, mas se mantem atrelada à questão da distribuição de renda, na medida em que as lutas atuais estão apoiadas em contextos de desigualdades materiais. Com efeito, a criminalização, nos termos da exordial da APDF nº 442, “afeta desproporcionalmente mulheres negras e indígenas, pobres e de baixa escolaridade, que vivem distantes de centros urbanos”. Nessa narrativa, a desigualdade de renda permite que mulheres de classe alta exerçam sua autodeterminação quanto à prática abortiva em detrimento de mulheres com renda baixa, às quais cabem os procedimentos inseguros ou a maternidade compulsória, o que, aos olhos de Nancy Fraser, seria uma realidade injusta. Assim, deve ser prestigiada a autonomia no campo reprodutivo das mulheres.iii

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A aplicação da teoria crítica da justiça – sob o viés desses três autores – conduz, assim, ao resultado que os autores da ADPF nº 442 esperam: não cabe ao Estado invadir a autonomia privada das mulheres para decidir sobre o aborto realizado nos três primeiros meses de gestação; a mulher que livremente optar pelo aborto não pode ser punida nos termos do Código Penal. A atuação do Estado, portanto, deve limitar-se ao dever de informar as mulheres para que possam tomar a decisão, de prestar apoio médico e psicológico após feita a sua escolha; e dar suporte à sua reinserção no mercado de trabalho.

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i HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2ª edição, 2003, pp. 113-168.

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ii HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

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iii FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. (Traduzido por Ramayana Lira, com autorização da autora). In: Estudos Feministas, Florianópolis, 15(2): 291-308, maio-agosto/2007.

 

 

 

 

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